Ana Cristina Alves Via do MeioA Ciência com características chinesas e a Grande Unidade Falar sobre a cultura e a civilização dos outros requer precauções ou pelo menos a consciencialização de que tudo pode suceder, desde a incompreensão, passando por uma abordagem superficial até à sintonia, como nos alerta David Wong no seu trabalho “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”, relativo à filosofia numa perspetiva comparatista, publicado no âmbito de uma colectânea realizada pela sinologia brasileira, organizada por Matheus Oliva da Costa (2022), intitulada Textos Seleccionados de Filosofia Chinesa 1, onde Wong defende que mais importante do que a comensurabilidade ou incomensurabilidade metodológica, epistemológica, ética e metafísica é a tentativa de ir ao encontro do outro, à procura, mais do que das semelhanças, do respeito pela manifestação filosófica diferente, o que só é possível se em lugar de nos colocarmos numa posição avaliadora tentarmos entrar no mesmo comprimento de onda, buscando “ imagens de mundo baseadas em sintonia versus imagens de mundo que cortam a conexão entre entendimento e sintonia” (Wong, 2022:400). Para tal será necessário cultivar a abertura de espírito ou largueza de vistas, donde provirá um exercício criativo híbrido que poderá trazer resultados surpreendentes, com todas as partes envolvidas na comparação a crescerem e a reunirem-se na aprendizagem de novos caminhos intelectuais. Um dos filósofos e historiadores da filosofia que mais procurou aproximar a filosofia chinesa da ocidental foi, consoante o registo fonético, Fung Yu-lan ou Feng Youlan (馮友蘭/冯友兰,1895 -1990) e começou por fazê-lo numa posição de grande humildade, concentrando-se numa abordagem à ciência ocidental, defendeu que a ciência na China, praticamente inexistente, de acordo com os parâmetros ocidentais, muito tinha de aprender com o Ocidente. Na sua expressão, “aprender com o estrangeiro (estudar com o Ocidente (…) 以夷為師(向西方學)” (Feng Youlan, Apud Alves, 2022: 61). Na verdade, como bem notou Lisa Raphals (2022) em “Ciência e Filosofia Chinesa”, num trabalho inserido na colectânea já referida o esforço de Feng Youlan é de tentar desenvolver o espírito científico à maneira ocidental na China da época, já que o filósofo defendia em “Por que a China não tem ciência” (1922) que “o que mantém a China atrasada é que ela não possui ciência” (Feng Youlan, Apud Raphals, 2022: 341). Para compreender a perspectiva do filósofo temos de o situar no seu próprio tempo. Hoje não faria qualquer sentido uma posição deste tipo, já que os chineses ao longo de todo o século XX partiram rumo ao Ocidente e aprenderam bem a lição da ciência ocidental, do espírito científico em actuação nos seus vários domínios, os parâmetros e, sobretudo, a aprendizagem com a experiência, bem como a quantificação dos dados, a testagem, verificação e confirmação dos resultados. E a verdade é que nada impediu os cientistas chineses de se encontrarem ao mesmo nível dos seus congéneres nos campos da matemática, física, química, astronomia e astrofísica e todas as outras ciências ditas ocidentais, nem mesmo como argumentavam certos sinólogos de renome, por exemplo Bodde (1991) em Chinese Thought, Science and Society: The Intellectual and Social Background of Science and Technology in Pre-Modern China, ao repetir o que muitos sinólogos pensavam, a saber, que a língua chinesa, certas concepções filosóficas conservadoras e organicistas, bem o autoritarismo imperial tinham afastado os chineses do pensamento científico à maneira ocidental. Voltando ao texto de Lisa Raphals sobre a ciência e filosofia chinesas, a autora termina com uma questão interessante à qual não responde, a saber, se a filosofia chinesa poderia contribuir para a constituição de uma ciência chinesa. (Raphals, 2022: 361). Pela minha parte, respondo sem hesitações que sim. Aliás é, de facto a união entre filosofia e ciência o que torna possível no País do Meio a referência a uma ciência com características chinesas. E não é preciso irmos muito longe, basta pensarmos na Medicina Tradicional Chinesa. O que a caracteriza e distingue da Medicina (Tradicional) Ocidental é precisamente o seu ponto de partida ser filosófico. Ora isto foi o que Feng Youlan, condicionado pelas circunstâncias, teve dificuldade em reconhecer, quer dizer, o estatuto extremamente original e único da ciência chinesa. Ele estava preocupado com o alegado atraso do seu país em termos científico-tecnológicos face aos avanços da ciência e tecnologias ocidentais e não via vantagens numa postura filosófica que considerava livresca e conservadora. Diz-nos o filósofo em 《中國現代哲學史》(História da Filosofia Chinesa Contemporânea), o essencial para que a ciência e a filosofia ganhem é justamente ambas deixarem de assentar em tanta teoria e leitura de clássicos, como tem sucedido ao longo da tradição chinesa, e usufruam da possibilidade da aprendizagem pela experiência. O professor Feng Youlan, da linha neoconfucionista, defende, em termos filosóficos, a necessidade de se pensar numa Grande Unidade (大全 Dà Quán) entre os reinos da experiência e da razão, sendo que os princípios racionais (理 li) não se colocam num mundo à parte, à maneira platónica, mas estão incrustados na própria experiência. Pelo que o seu apelo é que na filosofia não se afaste o corpo, a sensibilidade e as vivências da racionalidade que as animam. As duas dimensões, a da verdade, à qual pertence a razão, e a da actualidade, o mundo, apenas se distinguem por comodidade analítica, sendo este todo, animado por um princípio vital, que viabiliza o estudo das essências por método indutivo e lógica experimental, porque nada existe fora da realidade imanente. No entanto, do ponto de vista filosófico, muito ficou a ganhar a filosofia de Feng Youlan com esta “viragem experimental”, já que, por um lado, veio recuperar o espírito ecológico que animou os seus primórdios da filosofia chinesa, por outro, aproximou-se do Ocidente, permitindo a criação de uma filosofia comparada, como se pode ler nas Actas do Oitavo Congresso Internacional de Filosofia de 1934: “Estamos agora interessados na mútua interpretação do Oriente e do Ocidente mais do que no seu mútuo criticismo. Eles são vistos como ilustrando a mesma tendência humana de progresso e expressões do mesmo princípio da natureza humana. Desta forma, o Oriente e o Ocidente não estão apenas ligados, mas estão unidos” (Feng Youlan apud Baskin, 1984: 737). Quando à recuperação do espírito ecológico e holístico, eles irão caracterizar o grande princípio da nova humanidade, que é saber fundir-se na Grande Unidade “自同於大全” (Feng, 2006: 211), totalmente imersa no Céu e na Terra, que na obra são identificados com o Criativo (乾 Qián) e o Receptivo (坤Kūn)), ou seja, os dois primeiros hexagramas do Clássico das Mutações (《易經》). No entanto, o filósofo não estende esta grande unidade filosófica à ciência, porque considera que esse foi um dos motivos que levou ao atraso na China do desenvolvimento da ciência à maneira ocidental. Hoje percebemos quão redutor e limitativa pode ser apenas uma abordagem especializada e quantitativa dos dados científicos e até consideramos que o Ocidente tem muito a ganhar e aprender se não distanciar as suas ciências das perspectivas filosóficas e de abordagens holísticas e organicistas, essencialmente qualitativas, seguindo os passos da ciência com características chinesas, na qual o espírito filosófico reina mantendo a unidade entre os domínios. Voltando ao Clássico das Mutações, o Hexagrama 45 é Reunir-se (萃卦 Cuì Guà), na classificação seguida por Richard Wilhelm, que segue a linha neoconfucionista, a mesma de Feng Youlan. Este hexagrama é constituído, na base, pela Terra receptiva (坤 Kun) e, no topo, pelo Lago alegre (兑duì). Afirma-se no Juízo do hexagrama que o reunir-se traz sucesso, seja quando o governante se aproxima do templo, seja por se buscar sabedoria e pelo melhor método de a alcançar, através da perseverança ou via oferendas. Mas o mais importante chega-nos, a meu ver, através da imagem, onde lemos: “Sobre a Terra, o Lago: A imagem do reunir-se. Assim, a pessoa superior renova as suas armas De modo a responder ao imprevisto” (象曰: 澤上於地,萃,君子以除戎器,戒不虞。) Concluindo, apenas unindo o que estava desligado se podem alcançar excelentes resultados, como a água reunida num lago acima da terra para criar vida e alegria através e em torno dela, ou a ciência reunida à filosofia para a criação de uma ciência com características chinesas. Bibliografia Alves, Ana Cristina. 2022. Cultura Chinesa, Uma Perspetiva Ocidental. Coord. Carmen Amado Mendes. Coimbra: Almedina, Centro Científico e Cultural de Macau, I.P. Baskin, Wade (ed). 1984. “Yu-lan Fung”. Classics in Chinese Philosophy. New Jersey: Helix Books. 馮友蘭 (Fung Yu-lan/ Feng Youlan).2006.《中國現代哲學史》香港:中華書局有限公司. Raphals, Lisa. 2022. “Ciência e Filosofia Chinesa”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel. Wilhelm, Richard (Trad.). 1989. I Ching or the book of changes. London: Arkana, Penguin Books. Wong, David. 2022. “Filosofia Comparada: Chinesa e Ocidental”. Textos Selecionados de Filosofia Chinesa 1. Organização de Matheus Oliva da Costa. Pelotas: Editora UfPel. 張中鐸(編) (Zhang Zhongduo)《易经提要白話解》台南市:大孚,民84.