O Jogo das Escondidas – Capítulos 40 ao 50

– E a tua protegida, Wei Zi, já soube algo do subordinado de Max Wolf?
Antes de responder Ding Ling foi em busca de um roupão de seda e vestiu-o.
– Ele sabe alguma coisa. Mas não sabe tudo. Se o soubesse teria dito a Wei Zi. A questão resume-se a uma: ópio ou heroína? É isso que separa Macau do senhor Wolf. Se ele introduzir aqui a heroína destrói o negócio de muita gente. Mas ele está disposto a isso, mesmo que tenha de destruir os seus opositores. Para isso promete riquezas sem fim a piratas e elementos das tríades. É assim que se cegam os homens sem princípios. É preciso fazê-los acreditar, não no presente, mas no futuro. Desviar a sua atenção para o que ele vos pode vir a dar. E não o que ele te dá agora. Assim conquistam-se os tolos. Poderá ser uma luta terrível.
– Acho que estávamos mesmo a necessitar de um beco sem saída.
– Querido tenente, o problema não está muitas vezes na infinita crueldade de alguém. Está mais na sua cordialidade. Talvez por isso o senhor Wolf tenha escolhido a estratégia errada. E é isso que o pode fazer perder a guerra que se adivinha.
Ding Ling não lhe contou que Wei Zi conseguira saber a estratégia de Wolf para conseguir dinheiro. Ele tinha a mesma intenção que ela: assaltar o barco que transportaria ouro e dinheiro de Macau para Hong Kong. Wei Zi soubera quando, como e onde ele atacaria. O tenente começou a vestir-se, sem deixar de olhar para ela. A voz da chinesa voltou a escutar-se:
– Recorda que uma cobra nunca se pode transformar num dragão. Houve um sábio na China que nos disse que um sábio que se dedica a pôr ordem no mundo deve saber de onde vem a desordem, e só assim poderá cumprir a sua missão.
– Quem disse isso?
– Um senhor chamado Mozi. Para ele era claro que a desordem tinha origem na falta de amor mútuo.
– É isso que separa as pessoas?
– Sempre o será, não te parece querido tenente?
– Para isso é necessário que elas saibam distinguir o sabor amargo do que é doce. E nem sempre o sabem.

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– Esse será sempre o eterno problema dos homens. Por isso, na história da China quem atacou bem sempre ganhou. Quem teve dúvidas, perdeu. A vida também é assim. Foi assim que me conquistaste o coração.
– A ti ninguém te conquista. Tu deixas-te conquistar.
– Às vezes tu não me compreendes. E eu não te compreendo. Há assim algo de comum entre nós.
Amoroso sorriu.
– Não podes cometer um erro sem aprender uma lição, adorável Ling.
– Já pareces um chinês a falar, querido tenente.
– Aprendi contigo.
– Talvez. Mas não esqueças que quem nada deve é sempre senhor do seu destino.
Amoroso sentiu que alguém estava na escuridão. Não se enganou. Bei Li aproximava-se. Trazia um vestido transparente que deixava visível todo o seu corpo. Aproximou-se de Ding Ling e os seus corpos tocaram-se, por momentos. Ambas ficaram a olhar para ele. Mas o tenente não reagiu e saiu.

11.

O Bazar guardava segredos que nunca revelaria. Quando a noite caía e os silêncios e a escuridão convidavam ainda mais ao sigilo, as suas ruas estreitas e becos sem saída escondiam ainda mais um mundo que não se regia pelas leis escritas nos centros do poder. Ainda não anoitecera, mas o Bazar recordava, a Félix Amoroso, Alfama. Talvez fosse isso que aproximasse os portugueses dos chineses, o seu gosto pelos labirintos de onde não sabiam sair. Caminhava calmamente, mas sentia que olhos invisíveis o seguiam. Voltou-se mas não viu ninguém. Era uma sensação estranha, mas sabia que alguém seguia a sua sombra. O tenente tinha consciência do seu erro. Não fora prudente e tornara-se um alvo. O calor impiedoso ofuscava o seu pensamento. Não tinha nenhum mapa do tesouro entre mãos, que pudesse ser cobiçado. Era apenas o senhor de suspeitas que ameaçavam alguém. Percebera que, ao alertar Sofia Palha e, eventualmente, Max Wolf, poderia estar a pôr em causa um grande negócio. E quem queria lucros não se importava de colocar alguns prejuízos alheios nas contas finais.

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Chegou à Rua do Matapau e escutou o som de diferentes pássaros, cantando o que parecia uma pequena ópera. Vinha de uma loja que conhecia, e onde há algum tempo adquirira um periquito. Parou por um momento para escutar a agradável disputa entre os pássaros, fechados em gaiolas. Depois passou por um pagode, de onde vinha um cheiro agradável do sândalo das oferendas queimadas. Lá dentro, sabia, um Buda observava os que ali vinham depositar as suas preces num altar. Entrou depois na rua das Estalagens. A actividade ainda era ruidosa e frenética. Chineses andavam de um lado para o outro, transportando mercadorias e produtos diversos. Muitos deles destinavam-se aos juncos do Porto Interior, que não ficava longe. Numa das lojas viu algumas pérolas, colares e braceletes. Pensou em comprar uma para Ding Ling. E assim fez. Adquiriu uma bracelete de jade, depois de ter regateado o preço. Pagou em patacas e dólares de Hong Kong.
Sentiu uma espécie de felicidade quando colocou a bracelete no bolso do casaco. No ar notava-se um odor de ópio que vinha de uma casa de chá. Muito perto estava a cozinha aberta para a rua assinalada pelo padre Benedito Augusto para o encontro entre os dois. Pediu um pouco de arroz com porco assado e um chá. O chinês ficou a vê-lo comer e beber e, depois, fez-lhe sinal para avançar até dentro do beco. Amoroso seguiu por um corredor muito estreito entre paredes esverdeadas da humidade até que chegou a uma porta que estava entreaberta. Entrou e, ao fundo, na semi-obsuridade, estava sentado um homem, com um cigarro que não estava aceso entre os lábios, e uma navalha na mão direita que ia retalhando um pedaço de madeira. Levantou a cabeça e fez um sorriso acolhedor. Benedito Augusto, de vez em quando, marcava encontros em locais que o tenente desconhecia, mas que faziam parte da cidade chinesa de Macau, o seu Bazar. Ali o padre movia-se como se estivesse em casa. E quem ele convidava entrava num labirinto de que não conhecia a saída. Era a sua forma de mostrar que controlava os movimentos e as informações. Amoroso não tinha dúvidas que ele criara uma rede de contactos muito rica e secreta.

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– Não sou um fantasma, tenente. Pode aproximar-se e ver que sou real. Se quiser tem aqui uma cadeira e uma cerveja para beber. Ou um cigarro, se quiser fumar.
Ao contrário do que dizia, Benedito gostava de se mostrar como um fantasma que governava as almas a partir do mundo subterrâneo. O universo que muitos não conheciam e outros não desejavam conhecer. Não era inocente esta escolha. No seu jogo, Benedito gostava de ser dono do baralho de cartas ou das das peças de mahjong. Ali não se estava num território neutro. Amoroso sentou-se e agarrou na garrafa de cerveja que o padre lhe estendeu. Bebeu um pouco e voltou a focar a atenção nele.
– Este mundo é curioso, não é tenente? Hipnotiza-nos. Vai mudar, não tenhamos dúvidas. Eu, por certo mudarei com ele. Mas ao contrário da sua amiga Ding Ling, não o quero mudar. Vou adaptar-me ao que me espera. E o tenente, que pretende fazer? Adaptar-se ou mudar o mundo?
– Eu já tentei mudar o mundo, meu caro Benedito. Mas sobre o futuro tenho apenas uma certeza: não conheço as respostas para a pergunta que me estás a fazer.
Benedito fez um sorriso e acendeu o cigarro. O seu rosto, por momentos, pareceu ficar rijo, como pedra.
– Realmente a minha pergunta era errada. E é inútil procurar respostas para questões como esta. Ninguém sabe que decisões tomará. Eu compreendo-o, tenente. Percebo como se sente. Não há muito tempo, eu também me sentia perdido. Sem amigos. Sem identidade. Achava que não havia vida para mim que fizesse sentido. Melhor, sentia que não havia via nenhuma. Depois houve um momento, em Singapura, em que descobri o meu espaço.
Fungou, antes de continuar:
– Não me pergunte o que aconteceu. Não lho vou dizer. Mas há sempre uma vida. Há sempre um futuro, se o quisermos construir. Mas há limites para o que sonhamos sozinhos. E se amamos alguém compreendemos melhor esses limites. Mas eu não sou como o tenente. Acho que há vida para lá do amor por uma mulher.
– Acha mesmo isso?
– Para percebermos essa dura realidade temos de ter informação. E termos bons espiões.

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Deu uma pequena risada. E tentou ver a reacção que as suas palavras despoletavam na cara de Amoroso. Este manteve-se silencioso.
– Esta conversa não nasceu do acaso, ou porque me apetecia vê-lo. Tenho uma uma informação útil para lhe dar. Fu Xing colocou ao serviço do alemão Max Wolf a sua rede de espiões e de marinheiros. O negócio de heroína parece-lhe ter futuro. Pelo que sei, Macau será apenas um entreposto discreto para Hong Kong. Ali é que pensam fazer dinheiro. Aqui têm já um depósito bem defendido. Max prometeu-lhe que este pode ser o início de outros negócios. Legais. E ele quer a minha colaboração.
Amoroso fez um sorriso cínico e olhou-o fixamente. Seria possível ler a alma do padre Benedito? As suas motivaçõs eram obscuras e a sua história também. O tenente tinha recebido um relatorio de um dos seus novos agentes, colocado em Singapura. E percebera que o homem que tinha defronte dele tinha outras vidas. Não eram cartas que utilizaria agora, porque o jogo era outro. Mas, no futuro, nunca se saberia. Até porque ele sabia demasiado sobre o tenente.
– E que vais fazer, Benedito?
– Não tenho como fugir à teia de Fu Xing. Ele sabe que caminhos trilho e onde me encontrar. É um inimigo que não desejo ter.
– Compreendo. Farás o seu jogo. E o meu. E, sobretudo, o teu. Será um equilíbrio difícil, senão impossível. Tu o saberás. A luz é só a outra face das trevas.
– Também tem de decidir de que lado do tabuleiro está, meu caro tenente. O senhor Palha e a mulher não lhe darão tréguas. E investigar a morte do senhor Silva não lhe traz amigos. Pelo contrário. Eles cercam-no. Já descobriu mais alguma coisa?
– Não. Mas há indícios.
– Cuidado, tenente.
Era uma despedida. Benedito acendeu outro cigarro e ficou a olhar para Amoroso, enquanto este caminhava para a saida. Cá fora, a noite conquistara o Bazar. A única luz que via era a de um candeeiro de petróleo, junto a um local onde alguém vendia comida. Ouviu vozes abafadas. Na sombra estavam homens, mulheres e crianças sentadas em pequenos bancos ou no chão a comer o que as pequenas taças que tinham na mão continham.

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Continuou a caminhar para sair do Bazar. Ouviu um sussurro à sua esquerda. E um estronho, seguido de um silvo. Sentiu um impacto forte no ombro esquerdo. Caíu com o embate. Levou a mão ao braço e depois retirou-a cheia e sangue. Procurou a sua pistola, mas antes de o conseguir fazer, levou um pontapé na mão direita. Olhou para cima. Viu o cano de uma pistola apontada a ele e, mais acima, o de um chinês que o olhava fixamente. Ouviu a sua voz:
– Zōi gīn!
Ia puxar o gatilho. Mas o som do tiro não saíu da sua pistola e o homem que estava defronte de si caíu. O seu sangue jorrou para cima do tenente. Espantado, viu o rosto de Li Bei e de outros dois chineses que empunhavam pistolas. Agarraram-no e puxaram-no. Do nada apareceu um riquexó para onde o transportaram. Percebeu que seguiam a caminho da Rua da Felicidade. Antes de chegarem à “Noite Tranquila” pararam numa casa sem luz à porta e levaram-no para dentro. Amoroso deitou-se numa cama e procurou tirar a sua pistola Luger do coldre. Não lhe servira para nada, porque o ataque fora rápido. Alguém começou a tratar-lhe da ferida.
– A bala entrou e saíu do seu braço esquerdo. Não vai haver problemas.
A voz de Li Bei era reconfortante. A do tenente, um murmúrio:
– Como sabiam que estava ali?
– Ding Ling estava preocupada consigo. Tem sido seguido, dia e noite, tenente. Para seu bem. Descanse um pouco. Depois levá-lo-ei até ela.
Passada quase uma hora, em que dormitou, Bei Li veio acordar o tenente. Depois levou-o até ao “Noite Tranqila”. Ding Ling esperava-o. Agarrou num copo com vodka e deu-lho.
– Bebe. Faz-te bem.
Ele assim fez. O olhar dela era preocupado, mas doce. Disse, com uma voz aveludada:
– Sabes, às vezes sonho que quando estamos na cama, colados um ao outro, há algo no meio. Uma pistola. Pergunto-me: será sempre uma pistola o que nos junta e nos separa?
Ding Ling atravessava a fronteira do silêncio que tinham jurado respeitar. Falava do passado e, também, do presente. Fora uma pistola que os juntara. Aquela Luger que agora não lhe servira para nada.
– Queres falar disso, querida Ling?
– Não. Mas penso nisso.
– Porque me mandaste seguir?
– Foi o que fiz de bem, não foi?
– Talvez. Neste momento estaria morto, por certo.

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Ela não respondeu. Ele fechou os olhos e depois procurou no bolso do casaco cheio de sangue e tirou uma bracelete de jade. Deu-a a Ding Ling:
– É para ti. Comprei-a antes do atentado.
Ela aceitou-a e retorquiu. Não simulou os seus sentimentos:
– Já não sabemos o que é a bondade. Ficamos surpreendidos quando nos confrontamos com ela. Obrigado.
Ele sorriu e depois disse:
– Imaginas quem foi? Só vejo três hipóteses. Max Wolf. Joaquim Palha. Sofia Palha.
– Eu riscaria o primeiro. Não lhe interessa problemas com as autoridades portuguesas. Os outros, sim. Podem ter tudo a perder com a tua interferência.
Amoroso levou a mão ao braço. A dor continuava lá, para o recordar dessa noite.
– Precisas descansar, querido tenente. Eu estarei aqui. Mas tens de dormir.
Ding Ling falou com doçura. O seu rosto enigmático estava agora exposto à luz que iluminava a sala. Amoroso sentiu-se protegido. Algo que não acontecia há muito tempo. Muitas horas depois, Félix Amoroso foi levado até a um riquexó por Bei Li. Esta, com voz cândida, disse-lhe:
– Tanto somos filhos do que queremos recordar como do que queremos esquecer. Mas é bom que o tenente não esqueça o que se passou.
– Não esquecerei.
– Faz bem, tenente. O problema não é a dor nem o amor. É sempre as desculpas que as pessoas dão para ficarem com o dinheiro. E sobre o que fazem para o ter. O resto, seja a violência, as traições ou a guerra não são os problemas principais. Só o dinheiro o é.
Amoroso concordou. A luz encadeava-o. Despediu-se e partiu. O caminho, cheio de solavancos, foi penoso. Quando chegou a casa deitou-se, relembrando as últimas horas. Depois foi lavar-se e mudar de roupa. Quando voltou à rua foi até ao Grémio Militar para almoçar. Comeu um bacalhau cozido com grão que lhe fez recordar uma velha tasca junto ao quartel do Carmo, em Lisboa. Cumprimentou colegas militares e depois saiu, procurando evitar o sol inclemente que queimava as ruas e os prédios de Macau. Sentia-se dorido mas mais determinado do que nunca.

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12.

Às vezes as coisas são o que parecem. Para Ding Ling isso era óbvio. Sentiu a presença de Bei Li e o seu corpo ganhou vida. Olhou para a bracelete de jade verde que Amoroso lhe oferecera e colocou-a no pulso esquerdo. Era luz num mundo de escuridão, onde forças contrárias se opunham. Como num poema antigo chinês, sentia-se muitas vezes a dançar com a sua própria sombra. Mas, em momentos como aquele, parecia que a vida poderia ser um romance. A vida era sempre a história de um caminho e de um caminhante. A dela, sempre entre a força da água e a do fogo. Não sabia, nem podia renunciar, à missão a que se comprometera. Mas olhava para Amoroso ou para Bei Li e sentia que havia um espaço para a esperança.
Nas longas noites observava muitas vezes aqueles que no “Noite Tranquila” buscavam a fortuna e que estavam perdidos num mundo sem passado e sem futuro. Presos por fios num presente onde eram simples marionetas. Personagens de um jogo de sombras que não manipulavam. Eram refugiados do tempo, sobreviventes de um mundo que não tinha contemplações, muitas vezes fantasmas de si próprios, incapazes de ver o reflexo dos seus fracassos. Jogavam a vida numa noite. Viam-se ali, com dinheiro e com uma garrafa e uma mulher nas mãos, e julgavam-se eternos. E senhores de algo que nunca seria seu. Tal como aqueles que se viam ao espelho e imaginavam ser estadistas ou líderes. Mas então chegava o vento forte e destruía esse país de fantasia onde reinavam.
A quem é que interessava a verdade? A ninguém. Bei Li aproximou-se e passou-lhe a mão pelo pescoço e pelo cabelo. Arrepiou-se e Bei Li não deixou de notar isso.
– Os nossos homens estão prontos, Ling.
– Está na hora, não é? Pensas que temos a hipótese de sobreviver a tudo isto? Penso nas coisas que destruí para chegar a este momento.
– Que destruímos.
– Não me esqueço de ti, querida Bei Li. A confiança é uma coisa estranha. Quando te conheci percebi que haveria uma ligação indestrutível entre nós. Não me enganei.
– Nem eu.
– Sim, foi um prémio para ambas. Porque muitos vêem a vida como um tráfico. É certo que passamos a vida a fazê-lo. Traficamos tudo. Mercadorias, ideias, afectos, recordações, amizades. Alguns fazem-no por gosto. Outros, por necessidade. Outros ainda por obrigação. Nós traficamos confiança e lealdade. É uma coisa bela.

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Bei Li nada disse mas o seu olhar mostrava o que sentia. Amor.
– Vamos?
O caminho até ao Porto Interior foi feito através das ruas mais escuras. Quando ali chegaram, Li Bei dirigiu-se aos homens e disse-lhes o que esperava deles. O ataque à casa dos seus inimigos teria de ser inesperado, rápido e fulminante.
Aquela hora Amoroso regressara ao refúgio de Benedito, aquele local escondido da rua dos Mercadores. Este, quando o tenente entrou, não se mostrou surpreendido.
– Já sabia que tinhas sobrevivido. Sentia o que poderia acontecer. Mas estava longe de imaginar que te tentariam matar aqui, no coração do Bazar.
– Talvez tenham tentado por ser aqui. Para a polícia seria o resultado de um assalto numa zona onde os portugueses não costumam vir à noite.
– Mas tu és militar. Tens uma missão secreta. Não acredito que o Governador não mandasse investigar o que te pudesse ter acontecido.
– Quem sabe?
Benedito não respondeu. Sentou-se para fumar um cigarro.
– Percebeste agora o perigo que corres. E que eu também me arrisco a correr. Quem sabia que estavas aqui, estava ciente de que vinhas ter comigo.
– Quem sabe que vives aqui?
– Fu Xing. Alguns dos meus contactos. Quem vive aqui perto. Eu espio. Mas também sei que posso ser espiado.
A sala onde estavam praticamente não tinha móveis. Três cadeiras, uma mesa onde estava uma lamparina que pouca luz dava e uma escrevaninha encostada a uma das paredes. A simplicidade perfeita. Se tivesse de fugir, Benedito pouco tinha para levar. Este disse:
– A luz garante a segurança na escuridão. Por isso gosto de me refugiar nas sombras. Mas não é suficiente. Especialmente neste mundo onde todos preferem evitar mostrar a cara. Meu caro tenente, estás a aprender uma arte muito difícil e arriscada. Ver sem ser visto, saber sem dar nada, ou quase nada, em troca, seduzir sem ser seduzido. Há quem tenha lido os mesmos livros.
Amoroso aconchegou-se na cadeira de bambu onde se sentara. O formigueiro gerado pela ferida no braço não ajudava à sua concentração. Sentia a falta de ópio para afastar as dores. As físicas e as da alma. Mas isso agora era secundário. Sentia que estava próximo do assassino de João Carlos da Silva. O atentado não fora por causa dos negócios de Max Wolf, estava convicto. (Continua)

23 Jul 2021