Carlos Coutinho VozesDiscrepâncias PENSANDO bem, há, mesmo entre cientistas, algumas discrepâncias de ordem conceptual e sistemática que me custam a engolir. É o caso, por exemplo, da configuração e definição do Antropoceno que é o período em que a acção humana interfere com o clima da Terra e com os seus ecossistemas. Não sendo eu perito em ramo algum da Ciência, mas sentindo-me com direito a ter e expandir opinião própria dentro do senso comum, considero que o Antropoceno começou há largos milhões de anos, quando o primeiro hominídeo se pôs a mastigar e a deglutir os primeiros cereais, raízes, folhas, frutos, cascas moles, etc., devolvendo-os seguidamente à Natureza transformados em dejectos que rapidamente passam a nutrientes da flora e até de alguns bichos escatológicos. Com a partida do primeiro primata humano para sua primeira caçada, o fenómeno acelerou-se notoriamente e ninguém me tira da cabeça que o Antropoceno começou logo a preparar o futuro, até chegar, caótico e autodestrutivo, aos precários dias de hoje. É a disrupção conceptual tende a agravar-se de tal modo que mesmo nas páginas do mesmo jornal do mesmo dia e em substâncias distintas – neste caso, o “Público -, ode aparecer um cientista a explicar que o grande facínora que é o CO2, aquele gás amoral que produz o efeito de estufa é assim ameaça gravemente a continuação da vida na Terra, afinal, tanto pode ser orgânico como inorgânico e, em ambas as condições, vai encontrando maneira de assentar nos leitos marinhos, onde agradece que não o revolvam nem de qualquer outra forma o incomodem. Oliver Moore, investigador na área da geoquímica da Universidade de Leeds, Reino Unido, garante que os oceanos absorvem 30 por cento do CO 2 emitido nas actividades humanas. Há vários processos que contribuem para isso e é mesmo o que acontece “o carbono orgânico se agarra a uma partícula mineral na coluna de água, tornando-se menos flutuante e por isso afundando-se mais rapidamente para o leito do. mar, diminui o tempo para os micróbios o degradarem” e tornarem prejudicial na atmosfera.. Ou seja, se a Humanidade encontrar resposta para isto, como sempre tem acontecido ao longo da história, estamos safos. Isto remete-me, aliás, para um artigo de Arlindo Oliveira, um engenheiro que preside aia INESC e que, também no “Público”, escrevia anteontem: “A expressão latina ‘sapere aude’, que se deve originalmente ao poeta e filósofo romano Horácio, é geralmente considerada como o lema central do movimento iluminista, tendo sido proposta pelo filósofo Immanuel Kant. Traduzida para português, significa algo como ‘atreva-se a conhecer’ ou ‘ouse conhecer’, a que eu acrescentaria “em vez de se reger pela fé, como supersticioso”. Até porque, no mesmo jornal, algumas páginas antes e no dia anterior, uma simpática enfermeira que parece ter deixado de exercer, escrevendo todos os domingos uma crónica de página inteira, zurzia os destituídos de fé num estilo caceteiro que nunca lhe vi. Confessa ela que também foi ao Papa e diz: “(… ) Mas eu que sempre soube lidar com estas coisas e até com a pretensa superioridade intelectual dos meus amigos ateus (…), confesso que não estava preparada para aquilo que vi durante a última semana e que foi, nada mais, nada menos que ódio mal disfarçado. Caramba, isto foi mesmo feio. Tanta gente cega por um ódio ao catolicismo a roçar o irracional.” Pobre Carmen Garcia, que rasteja angelicamente ao apelo da fé, tão crédula e devota como os que vão à bruxa, os que temem encontrar lobisomens em todas as encruzilhadas, os oram piedosamente nas procissões organizadas para pedir chuva aos céus, os que acreditam em moiras encantadas, os que rezam àquela virgem eterna que vinha, sempre vestida e calçada a rigor, esfregar os pés no ramo mais alto de uma azinheira e caucionar o milagre do sol dançante, os que vão à Kathmandu aspirar o ar espiritual, os que pagam a quem lhes lê a sina na palma da mão, os que adoram as serpentes emplumadas de Macchu Pichu, os que suportam a espiritualidade das vacas hindustânicas, os que contam e beijam as cagalhetas místicas de uma cabra animista no Vale do Rift, porque, senhores, para com nenhum destes fiéis devotos, destes iluminados exemplares do “homo sapiens”, a cronista do “Tanto faz não é resposta” é incapaz de mostrar superioridade intelectual. A fé é a fé, chiça! E nada há mais digno de respeito e reverência, caramba! Por mim, tudo bem, porque percebo que a Terra, afinal, é menos que um micróbio unicelular num sistema planetário que também é menos que um micróbio pluricelular, num dos prováveis quatriliões de quatriliões de galáxias que perfazem o incomensurável Universo que Deus criou por desfastio e para arranjar um poiso discutível para as pessoas com fé, mesmo que obrigadas a conviver com ateus, aqueles desalmados dialécticos que, tal como os agnósticos – estes mais timoratos – exigem provas para todos os teoremas e fundamentos para todos os acórdãos.
João Luz VozesO crente [dropcap]N[/dropcap]ão precisa fazer sentido, aliás, apenas funciona sem cabimento, desprovida de razoabilidade. A fé continua a dominar os homens, nas suas instâncias mais primárias, nos recessos da condição humana, substituindo a luz nos recantos mais escuros onde nem um raio de razão brilha. Na ausência de resposta, o crente não se contenta com a digna e edificante ignorância, com o ponto de partida. O conhecimento virá de cima e de forma imediata, a rendição total é o preço a pagar. A ideologia funciona através de mecanismos semelhantes. Fundada em asserções sobre o indivíduo, o grupo social, o mundo e o além, a ideologia é um corpo musculado por doutrinas orientadoras. Tal como a sua mística irmã, a fé, os ideários políticos impõem-se de cima para baixo, numa verticalidade esmagadora da razão e do bom-senso, na aniquilação da máxima de Descartes “penso, logo existo”. Neste domínio, “sigo, logo existo” é a essência do crente e do ideólogo. A subjugação às palavras do líder funda a sua existência. Até o homem mais temperado, sob a influência alucinogénica da ideologia acredita nas mais bárbaras monstruosidades. Precisa delas, precisa do sentimento de pertença a algo maior que si. Precisa da redenção gnóstica dos crentes. Ambas as irmãs (fé e ideologia) actuam perversamente no mais belo e inexplorado enigma que a natureza nos ofereceu: a consciência. Algo que está muito para além da compreensão, que seduz os místicos, que confunde a ciência e que é um empecilho aos líderes espirituais e políticos. Só com fervoroso dogma se pode acreditar nas mais estapafúrdias teorias, um intoxicante tão poderoso ao ponto de mascarar a mais óbvia e assumida propaganda numa verdade inabalável. Hoje não quero sujar as mãos nesse lodaçal que é a política local/regional, mas apenas dirigir-me aos factores entorpecedores da razão que poluem os nossos dias. A polarização política chegou a um ponto tão extremo que as intenções e acções de grupos antagónicos se confundem em alianças magnéticas, como dois imãs esquizofrénicos que se abraçam repudiando-se ao mesmo tempo. Sem nuance de teatralização política, vemos teorias de neonazis que lutam por representação democrática, teses de comunistas que defendem com unhas e dentes cartelizações capitalistas rebentando recordes de pequena-burguesia, moderados a salivar por infinitas penas de morte por infrações de trânsito, pacifistas a encher os bolsos nos mercados do armamento pesado, vampiros a limpar o sangue dos queixos enquanto gritam slogans vegans. O mundo virou-se de pantanas e a crença voltou a predominar lançando-nos, outra vez, para uma idade de trevas. Nada de bom pode surgir daqui, apenas ganância desmedida, sangue e morte. Até chegarmos a um novo iluminismo, será feita farinha dos ossos esmagados dos mais pequenos. Nada sobreviverá à autofagia deste monstro místico de duas cabeças. Polos sul e norte magnéticos unidos num abraço homicida/suicida. Este é o fruto da era da ultra-ideologia, a atracção entre extremos e a asfixia de tudo o que está no meio. A minha postura hoje é de niilista contemplação. Que se esmaguem, “que esta quilha rompa e me engula o oceano”, que ateiem todos os fogos e nos sepultem em mil sarcófagos de estrelas. Sinceramente, não me interessa. Se não posso viver em verdade, viverei feliz em alucinação, livre de amarras, sem dogmas ou crenças a ditar sabedoria suprema ou pertença tribal. Se querem acreditar no que vos dizem, força nisso, fiem-se na supremacia da vossa verdade, na superioridade do dogma que habita debaixo da vossa pele, no mundo bipolar do irmão Karamazov caído em desgraça porque na ausência de Deus tudo é permitido. Vivam nesse sistema binário de 0s e 1s, preto e branco, norte e sul e multipliquem-se na demência de serem 0 e 1 ao mesmo tempo. Por mim, tudo bem. Mas façam-me um favor: poupem-me a evangelizações, projeções absurdas e limpezas encefálicas. Há muito que deixaram de ter piada.
admin h | Artes, Letras e IdeiasO carro à frente dos bois [dropcap]H[/dropcap]oje, é o grande acontecimento, mais um pouco e esquecia-me. O senhor padre avisou que tinha de ser neste dia, ainda procurámos adiar, não estávamos preparados. Temos medo. Eu e os meus primos não vamos à escola, temos dificuldade em fixar o que nos dizem. Até as rezas que a minha mãe me ensina ficam sempre pelo princípio. Que posso fazer? Não me lembro. Não sou boa para teatros. E fico ali a dizer a cantilena que nunca mais acaba. Depois fico com fome. Com um formigueiro nos pés. E distraio-me. A barriguinha a fazer gluglu. A minha mãe e o padre Faustino insistem, contam-me histórias, que veio um senhor à terra, e eu pergunto se é a nossa terra de Aljustrel e o que veio cá fazer. Se vai voltar. Ela a perder a paciência. Grita-me! Gosto sempre de visitas. É bom ver caras novas. Às vezes, trazem-nos rebuçados e colam-se aos dentes. E ralha-me. Diz-me: presta atenção, Lúcia! Está calor e imagino, quando me contam estes mexericos, o que estará a acontecer lá fora e que fazem os meus comparsas; podíamos estar a brincar no arneiro e a beber água fresquinha. No pátio grande da nossa casa há cinco figueiras, depois há umas escaditas até onde fica o poço, onde há macieiras, pereiras, cerejeiras e mais. No Verão, com a canícula, fico muito transpirada e só me apetece saltar para cima de uma árvore. Escorregamos por ali abaixo e deixamo-nos estar sentados no muro, que não é de pedra miúda, a roer caroços até à última. Em certos dias, quando é tempo disso, ficamos todos a esmigalhar o milho no meio da eira. Mas à noite, a querer dormir, a minha mãe não deixa de me ler o livro da Missão. À candeia. A Jacinta e o Francisco são mais novos. Também não aprenderam. E por isso, demoram mais a ouvir o senhor padre, como se pelo meio, entre a boca de um e os ouvidos dos meninos, existisse uma grande cova, com uma charca e tudo, cheia de passarocos a chapinhar, no meio do olival, onde os homens se põem a arrancar ramos nos troncos junto ao chão, eu digo-lhes para não fazerem isso, que as cabras gostam de os comer. Os meus primos também devem querer mais estar a brincar do que estar ali. Mas o padre Faustino diz que é importante. Foi como se fez em França. E não precisamos de nos preocupar. Por via das coisas, é melhor dizer que o Francisco é mouco, assim não vai explicar nada. Não te esqueças que tu és mouco! Mas tem de se lembrar do que vê. Eles preparam tudo. Têm uma marioneta ainda mais baixa do que a Jacinta, onde puseram uns fuminhos e uns pirilampos, que se acende e começa a brilhar, com um vestidinho branco debruado a ouro e uns brincos amarelos. Um balão que voa. Se bem que lá fora – eu já disse ao senhor padre – não se deve notar muito e devíamos fazer as coisas mais no lusque-fusque, quando as pessoas estão a voltar para casa, dos campos. Mas ele teima, que tem de ser assim. Quando o Sol está no pico. Hoje não era preciso grande coisa, repetiu. Depois, quando me perguntassem, teria de contar todo o preparo, que uma senhora cheia de luz se tinha assomado ao cimo daquele arbusto e falado connosco, os três. Não me posso esquecer das palavras. Que os homens tinham de se portar bem e rezar muito, senão o mundo ia acabar. Como castigo. Que durante seis meses ia aparecer ali, no mesmo dia do mês, mais ou menos à mesma hora. Pode ser que das próximas vezes seja mais para o anoitecer, se o padre Faustino deixar. É melhor! E para construir uma capelita naquele lugar e lojas para vender aquelas bonequinhas, de vários tamanhos e feitios, e uns cartõezinhos com as rezas, para as pessoas não se esquecerem. O terço, chiça! E velas, muitas velas. Para a noitinha? Mas o senhor padre não me respondeu. E mais tarde poderiam fazer ali uma grande praça, onde os carentes podiam chegar a arrastar-se com os joelhos todos esfolados, ou em camionetas da carreira, para cumprir promessas, acreditando que a senhora ia fazer milagres. Curar as doenças, pagar as dívidas, fazer com que os filhos tivessem boas notas. A uns sim a outros não. E todas as guerras iam acabar nesse mesmo dia, para os militares retornarem aos seus lares. Espero que não nos façam voltar à escola. Aquela terra iria ser tão grande que não ia caber dentro do monte. Que até lhe iam pôr outro nome com mais letras. Não me lembro bem qual, tenho de perguntar ao senhor padre. Na brasa das ideias, ouvi Maria do Rosário, não sei se era por causa disso. Lúcia, presta atenção. Reza! – berra a minha mãe. Eu com a cabeça a ferver. Pai nosso que estais no céu. O pai está no céu, mãe? Não tinha ido à taberna do senhor Silva? Tenho fome, mãe! A candeia a fazer sombras na parede. São as alminhas, confirma, temos de as resgatar. E diz-me que não é o senhor Silva, nem o meu pai. Que é o Senhor que está no Céu, com letra grande, e junta as mãos para cima, o filho da Santíssima, também com S. Mas àquela hora já não enxergo, só penso no que vamos comer: umas batatinhas e umas couves, que a nossa terra dá sempre muito. Quando o Sol perde a última pontinha de luz, a minha mãe a pôr mais petróleo na lamparina – Lúcia? – e eu já a sonhar. A degolar rifões: em Fátima nada nos lembra Maria, é tudo negócio, pura idolatria. Tanto que ali ia mudar. Era melhor os meus primos findarem mais cedo, porque não eram de confiança e podiam dar com a língua nos dentes. Isto disse outro homem, todo vestido de escuro como a cruz da igreja, a falar com o senhor padre. Que não lhes iam cortar os gasganetes, mas tinham de ver. Facilitava. Pensa nisso, Faustino! Foi o que ouvi quando voltei atrás para buscar a sacola, ali esquecida, porque tinha de ir fazer um mandado à minha mãe e não podia chegar de mãos a abanar senão ela batia-me. E a mais crescida vai dentro, disse ainda. Eu a sair porta fora. Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão. Arranjado foi, à hora da merenda já íamos a caminho da carrasqueira. Não me podia esquecer de aviar o recado. Vou depois da aparição, assim se chama. Os meus primos estavam esmorecidos a dizer que não queriam ir, que era melhor o gado pastar na serra, que ali não há erva da boa. Mas convenci-os, as cabras podiam comer algumas folhas da tal azinheira, já foi cortada e voltou a nascer. Eles que não prestaram atenção ao que o padre Faustino disse a seguir à missa. Se não rezam vão ficar de castigo na catequese. Castigados pela virgem. Não sei ler, mas sei que é com v de vitória. O meu pai diz que sou uma intrujona, mas vou ser a artista principal e já decorei as minhas falas. Se não me alembrar também não será muito custoso, há-de-me aparecer alguma coisa à frente dos olhos. Falo no demónio, que é sempre coisa ruim, ou se estiver trovoada posso dizer que é uma batalha nos céus. Onde devem estar o senhor Silva e o meu pai. E o meu irmão Manuel que já foi às sortes e talvez vá para a guerra. A menos que os pirilampos façam mesmo o que dizem, dá-me para acreditar. Rogai por nós pecadores, cochicha a Jacinta, a rodar o seu colar entre as mãos. É o que devemos orar quando lá chegarmos. Ajoelhando. O dia estava como o pêlo de uma ovelha tosquiada, começámos a correr porque vinha aí uma chuvinha e era melhor despachar aquilo não fosse a senhora molhar-se. Íamos só ver, para nos avezarmos ao lugar. Ficava ali perto, ainda no fosso do olival; a arvorezinha tinha uma fita num dos ramos, era fácil de ver. Formigueiro, formiguinha, formigão, vais ver que te vão dar razão. Desde que me tornei pastora, já lá vão três anos, fico a tratar do gado o dia todo, pelos montes afora, a saltitar. Mas naquele dia, com os amanhos, pegámos tarde. Sou boazinha. E digo à minha mãe que não pequei, que tenho sono. Isso é uma reza? – desperta o Francisco, que só é surdo para o que tem de ser. Orações, sacrifícios, a graça do Senhor. Que está muito ofendido, sentencia a minha mãe. Que será que queriam dizer com o vou dentro? Dentro de onde? De uma raposa a passar, não é. E continuamos. Como se chama aquele homem que morreu na cruz? Esqueço-me sempre. Será pão o que ela me pediu? Uma pouca de sal? Os panos para oferecer ao sacristão? Decoro outras coisas, mas nomes não é comigo. O senhor padre não gosta que esteja sempre a tratá-lo por vossemecê. Padre Faustino, caramba! Será o pavio para o candil? O Francisco sabe, diz que se chama Cristiano. Mouco, o filho da santíssima sua mãe. É Domingo, os pais foram à vila, só a venda do chinês está aberta. Se isto fosse a sério, gostava de perguntar à senhora pela Maria das Neves e pela Amélia, que se findaram no Inverno. Também terão ido no balão? Anda, chegámos! – avisa a minha prima, olho para ela como se já tivesse partido. Podes começar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasActos de fé & Fumo negro 03/02/2017 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a primeira vez que aterrei em Maputo, em 1995, encontrei à entrada do Hospital Central um amputado, de ambos os pés, que vendia sapatos só de pé esquerdo. Impecavelmente engraxados. Cem meticais por sapato. E o par, perguntava o traunseunte curioso. Há-de chegar… – jurava com aquele brilho fanático nos olhos que encontramos nos aficionados da agricultura biológica – o mister passa cá pra semana… e lhe garanto o par. O eventual comprador era convidado a um acto de fé. Ai de quem pusesse em dúvida a convicção de que o vendedor completaria a entrega da metade que faltava. Tão insubornável fé só a reencontrei num vendedor de cautelas em Cacilhas, no outro lado do Tejo. Ia apanhar o cacilheiro e apanhei-o a limpar com papel de jornal as lentes de casco de garrafa dos seus óculos, de haste presa à armação por um arame, enquanto a sua boca de um verdete desdentado, proferia para um tipo de fato Boss, sapatos italianos e pingente de ouro na gravata: Eu há vinte anos que jogo no mesmo número! Apanhei a frase no ar e desviei-me para um balcão, no fito de beber um café e de ruminar três minutos no absurdo de um maltrapilho tomar a miséria por oráculo. Gente que acredita cegamente em «factos alternativos», tal como Kellyanne Conway, a assessora de Trump, que, para justificar um decreto idiota, inventou um alegado atentado que nunca se verificou, o massacre do Bowling Green. Simultaneamente, e não é acaso se na moldura da comédia humana tais actos coincidem com a institucionalização dos «factos alternativos», foi destaque da semana a ímpia permissão que esteve quase a ser sancionada pelo parlamento romeno, o qual queria legitimar o desvio de fundos públicos, por abuso de poder, desde que não se ultrapassasse a irrisória quantia de duzentos mil euros. Esta piedosa imoralidade ganhou o seu primeiro argumento em plena Europa. Porque foi com certeza uma primeira tentativa e este novo guião para uma futura regulação política dos bens e dos erários públicos irá repetir-se e vingará, dado que cai como ginjas no estado pantanoso em que se locomovem inúmeros Estados. Lembremos o caso do Brasil. Há-de pois espantar-me o que li hoje nos jornais moçambicanos, sobre o ex-genro do ex-presidente Guebuza, o mesmo que assassinou a filha deste, há dois meses atrás? Relatava-se assim no novo «facto alternativo»: «Zofino Armando Muiane, segundo consta da acusação particular da família Guebuza, é um espião sul-africano que usava o nome de Washington Dube». Hesitamos, se rimos se choramos. A seguir, na grande maioria dos estados africanos, virá impor-se a nova lei, imitada da desenvolvida Europa. 04/02/2017 É uma coisa maravilhosa a força com que as mulheres sobressaem no actual momento da literatura portuguesa. Tanto na poesia – e bastam-me cinco nomes: Raquel Nobre Guerra, Joana Emídio Marques, Rita Taborda Duarte, Inês Fonseca Santos e Maria João Cantinho – como na prosa, aonde, dentro do que pude ler (e mais não refiro por não terem chegado a Maputo), dois nomes se destacam com livros recentes que são a todos os títulos excepcionais: Ana Margarida Carvalho, com Não se pode morar nos olhos de um gato, e Alexandra Lucas Coelho, com Deus Dará. A literatura no feminino dá cartas, aparenta ser um feixe de enorme energia que veio para ficar, o que não significará apenas uma afirmação individual como um insofismável avanço na paridade social, cunhada nos patamares simbólicos, E interrogo-me no mal-estar que estas mulheres emancipadas, inteligentes, maduras, poderão sentir perante a notícia de que a lei russa despenalizou a violência doméstica, mormente se o homem a não pratica mais do que uma vez por ano. É que tudo o que é mau, tende a repetir-se em todas as latitudes. Uma vez por ano, argumenta-se, não faz um agressor, é um mero problema de comunicação no casal, que muito carinho posterior pode atenuar. Bom, há casos em que a violência no casal pode ser mútua. Mas são minoritários. O que interessa é o pano para mangas que o retrocesso desta lei dá ao álibi, esquecendo que as relações assimétricas são claramente maioritárias. E ficando o agressor sem cadastro isso não dará azo a novas investidas? Ao fim de quantas vezes se considerará ser a primeira vez? O que me faz lembrar certas tradições rurais moçambicanas pelas quais se ensina a seviciar a mulher sem deixar marcas (consulte-se sobre estas e outras matérias o portal da Wlsa. Talvez por isso tenhamos assistido a esta aberração: a independência de Moçambique, durante 35 anos, não produziu uma única poeta à altura das duas que o colonialismo fez brotar: Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna. 07/02/2017 O que é um ateu? Agrada-me esta definição: alguém que é imune à idiolatria e que livre, até de si mesmo, não teme contradizer-se. O que autorizará o caso de ateus-que-são-intermitentes, como eu, no sentido em que têm fé, na graça epicurista do vestido amarelo que esculpiu o corpo da macua que passou agora à minha frente na esplanada, espalhando no ar uma intensidade que contamina, por exemplo, como num género de inteligência-não-circunscrita – sem que para isso necessitem de acrescentar um nome à origem dessa energia transpessoal. O Budismo, neste sentido, alheia-se da necessidade de nomear Deus. Vem isto a propósito de uma das palavras que mais tem inundado o imaginário popular dos últimos tempos e que está de facto a ter um peso terrorista: a apostasia e o seu praticante, o apóstata. Palavra que julgava banida. Considero insultuoso que metade da humanidade me considere um apóstata. O ateísmo e o laicismo tem sido vilipendiados, nestes últimos anos, e considero que um dos combates do século passará por recuperar o direito e o bom nome de uma espiritualidade sem Deus.