Os factos são lendas – A mulher do padeiro, de Marcel Pagnol

[dropcap style=’circle’]I[/dropcap]nserido no ciclo “Os Padrinhos da Nouvelle Vague”, a Medeia Filmes está a passar alguns filmes que considera terem sido fundamentais para a geração posterior do cinema francês. Neste contexto, convidaram-me a assistir a um dos filmes e a escrever acerca dele. Deixo-vos aqui o texto que escrevi precisamente há uma semana acerca do filme de Marcel Pagnol, A Mulher do Padeiro.
Os factos são lendas. E isso fica muito claro neste filme. Se nos ativermos à história, ela é muito simples: numa aldeia do interior de França, a mulher de um padeiro, muito mais nova do que ele – ela poderia ser sua filha –, deixa-o por um homem mais novo e ele não faz mais pão. Mas isso é como a vida, se nos ativermos à história, ela é muito simples. O facto em si não existe, aquilo que aqui se designaria por facto – a mulher deixar o homem – não é visto da mesma maneia por nenhum dos intervenientes. Todos vêm e sentem diferentemente o facto. Isto é, o facto, de um ponto de vista objectivo, não é uma coisa palpável. A maior das divisões de ponto de vista é, evidentemente, aquela que opõe o padeiro Aimable a todos os outros. Aimable sente o acto da mulher por dentro, sente a perda – mais até do que a traição – enquanto todos os outros não sentem a perda, mas julgam o acto. E neste julgamento do acto as posições dividem-se, desde a pura chacota até ao medo, por parte do padre e da mulher mais beata da aldeia, que isso possa ser um mau exemplo. Mas pode-se querer continuar a dizer que o facto está lá, pois esses modos diferentes de olhar não fazem desaparecer o que aconteceu: a mulher do padeiro tê-lo deixado. Por outro lado, e em contradição com esta posição, aquilo a que se chama facto, aparece constantemente no filme como uma vivência diferente; e é esta vivência que dá forma ao acontecimento. De tal modo, que o próprio padeiro está continuamente a recusar que a mulher o tenha deixado, projectando diferentes possibilidades de acontecimento, como o ela ter ido visitar a mãe ou, mais tarde, o pastor ter enfeitiçado a mulher, por ser uma espécie de encarnação do diabo, pondo em causa junto do padre o livre arbítrio.
E tudo isto se passa numa contínua tensão entre o humor e a tragédia. Aliás, humor é já uma forma de tragédia, um entendimento profundo de algo que sob a capa aparente do riso esconde uma tristeza. Não podemos aqui deixar de nos lembrar de Pirandello acerca da diferença entre humor e comédia. Num texto teórico chamado Humorismo, Pirandelo escreve: “Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untada não se sabe de qual pomada horrível, e depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela senhora é o contrário do que uma velha e respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cómica. O cómico é precisamente um advertimento do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela senhora não sente talvez nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor do marido, muito mais moço do que ela, eis que já não posso mais rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me faz passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre o cómico e o humorístico.”
Não que não haja também comédia neste filme, porque há. Há cómico, em A Mulher do Padeiro, mas o tom contínuo e de fundo é o do humor, tal como Pirandello o define: um sentimento do contrário, isto é, o sentimento daquilo pelo qual Aimable está a passar, e que não é um facto. Pois o filme não trata de lendas, mas da vida humana. E nesta não há factos, mas vivências, afectações, modos como vibramos com o que acontece. E este modo de vibrar com o que acontece não é um facto. Ainda no mesmo livro de Pirandello, ele continua com o célebre exemplo de Marmeladov – o bêbado, pai de Sónia – na hospedaria a falar com Raskalnikov, em Crime e Castigo de Dostoiévski: “– Senhor, senhor! Ó senhor! Talvez, como os outros, julgais ridículo tudo isto: talvez eu vos aborreça, contando-vos estas estúpidas e miseráveis particularidades da minha vida doméstica; mas para mim não é ridículo, porque eu sinto tudo isto…” Precisamente! Ele sente tudo aquilo, tal como Aimable, em A Mulher do Padeiro. E esta diferença, a de sentir tudo aquilo, não é modal, é existencial. No humano tudo é sentido. E é este sentido que faz toda a diferença e simultaneamente confere significado ao que acontece. Os factos são lendas.

14 Ago 2018