João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasUm explorador cansado Cisterna, Lisboa, 20 Agosto [dropcap]O[/dropcap]rganizado como poucos, a dois dias da inauguração, o António [Gonçalves] faz visita guiada à sua «Carnis Color», privilégio dos que se insinuam entre nos interstícios do afecto e da função: ele explicava as suas razões, eu tratava de beber os detalhes de quem pensa e executa, processos que se misturam um no outro de forma tão íntima que nem carne e pele. Irrompe logo aqui exemplo óbvio: nada sofre de acaso nesta pintura e óbvio se torna que esta carne tem por esqueleto a moldura. Não se trata de mero enquadramento, um modo de dizer fragmento, pedaço, fecho do olhar em limite imposto. A escolha da madeira, tomado o perfume, o peso e o corte, biselado, de esguelha, encastrado, em redondo, a oferecer a leveza do papel, obedece a escolhas com vista à revelação do mistério que cada corpo contém. E toda a massa corporal sem estrutura se faz amorfa. Daí propor como ilustração (algures na página) reverso de moldura, crispada de detalhes, sombra do rosto brilhante e ardente. Aliás, também a montagem se entrega em grande inteligência, propondo subtil retrospectiva, aconchegando-se ao espaço em caminho de espanto e surpresa que desemboca no grand finale de catedral, passe a rima. Perturba muito este caminho através do sujo e perecível, sangue e tecido, uma investigação de autópsia, que se faz de forma pensada, quase toda mental frieza, limpa de impurezas e impulsos, tratada com luvas e bisturi. Para nos devolver a cada momento o pulsar sagrado, do âmbito do religioso, que toca os mecanismos do mundo, que parece dizer como somos por dentro, subtil festival de cores, alimentado pelo gás do pequeno nada de vida que nos faz seres, que dá corpo ao ser. O António mostra que sob as nossas carnes lavra um fogo, ou até que as nossas carnes, se vivas, ardem em contínuo. Mesmo para além do encontro com as correspondências no mapa do desejo. Talvez sejam partes, o que vemos em combustão, mas não deixamos de sentir a soma ardente. Nada é sem corpo, se até a sombra os duplica. Tiro-te o chapéu, António. Convento do Espírito Santo, Loulé, 22 Agosto Por coincidência, a caminho de uns dias de sono e leitura, paro para acompanhar a apresentação do volumoso volume «O homem que só quer ser Tóssan», caixa com três volumes, dois para versão escrita e outro, bem maior para a parte desenhada da obra, qualquer que fosse o instrumento. Tropeço sempre na palavra delícia a propósito de figuras deste jaez e mal conhecidas, mas, contas feitas, tão capazes de compor vida assente no bem-fazer, no bem dispor. O testemunho emocionado de Vitor Aleixo, Presidente da Câmara de Loulé, mentor maior deste projecto, que inclui ainda a mais compreensiva exposição (entretanto prolongada), sublinha isso mesmo, a boa disposição como modo de se relacionar com os outros, o desenho a criar mundos, o riso a interpretar o real. O Jorge [Silva] foi reunindo com devida paciência o essencial dos argumentos para dizer da qualidade de outro artista esquecido, e não apenas das artes gráficas. Tóssan acabou sendo performer, dá agora para perceber, capaz de encenação e texto para ser dito, de cenário e presença, devedor do teatro e da composição no branco, fosse a página um dia. Li um texto mais melancólico, a querer afirmar que o humor nos abre que nem bisturi, que nos sabe interpretar, e que por vezes contém uma melancolia pungente. Agora que escrevo, surgiu-me outro verso côncavo ou talvez converso, dos que mergulham no caleidoscópio da palavra, uma só, e que diz tanto de hoje, assumamos nós o papel que nos convenha, de espectador ou arrumadeira. «Um espectador/ com o foco na cara,/ outros com cara/ e sem focos/ ainda outros/ com as mãos nas caras/ e a arrumadeira/ de foco na mão/ ou com a mão no foco./ Um outro à procura do foco,/ outros sem o foco à procura./ A arrumadeira apaga/ o foco/ e o foco sem saber/ o que procura às escuras.» Praia Verde, Castro Marim, 25 Agosto Estava tentando, por todos os meios, afastar-me do mundo, mas, estúpido, pego no smartphone e logo irrompe a notícia. Fernanda Young (1970-2019) morre de falta de ar, de um falhanço da ferramenta que nos permite comunicar com o fôlego do mundo. Estava condenada à rapidez, a mesma dos diálogos da série «Os Normais», a mesma vertigem da sua prosa, a mesma ânsia criativa do verso e de tudo o resto. Conheci a Fernanda, mas não cheguei a conhecer a Fernanda. Almocei com ela uma única vez, pro intermédio de irmã querida, e fiquei fascinado. Era um vulcão de intensidade e potência criativa. Encheu-me de romances, novelas e o mais, ideias até. Além da Playboy onde se mostrou inteira, a fenda sentada sobre volumes de Bukowski ou Araki, mas o rosto sempre em sábia mistura de melancolia e mistério – uma névoa? – longe da alegria que experimentei. Que outra possível autora terei capaz de se apresentar de nudez e fulgor? Vou aprendendo que este caminho se faz de bastos falhanços e neles tenho que incluir o não ter editado Fernanda Young, por exemplo, de «As Pessoas dos Livros». Ela era mais, muito de carne e osso. E sopro. O seu último post, na véspera da morte, nosso lugar-comum, falava dessa incombustível ânsia: «Onde queres descanso, sou desejo.» Jardins Palácio de Cristal, Porto, 5 Setembro Subo ao Porto para a montagem do pavilhão que partilhamos com a Ler Devagar. Estamos no lugar 62, em ponta extrema onde ninguém irá, nem para dar de comer aos patos do lago, esses bem-dispostos, obrigado. Agrava-se tudo com as obras da semi-esfera, que soltam ruído em contínuo e nuvens de pó a cada dez minutos. Se pensarmos que o interessante neste modelo a Norte ia sendo a programação, e que esta nos ignora, ou quase, o resultado acaba sendo bastante simples: que raio andamos nós a fazer em Feiras onde pouco mais se quer saber além de preços (baixos, baixinhos, baixíssimos, anões)? Jardins do Palácio Pimenta, Lisboa, 8 Setembro No âmbito do festival que tenta prolongar o Verão, «Lisboa na Rua», o mano Nuno [Miguel Guedes] concebeu um ciclo de leituras conversadas tendo por bússola as comemorações da circum-navegação de Fernão Magalhães: «Viagem em Busca do Espanto», assim o feliz título. Estava escalado para o Oriente, mas um homónimo baldou-se e comecei pela «Partida», isto é, pela mítica Ibéria, tendo por companheiros a Paula [Cortes], o [José] Anjos e o Tiago Inuit na irrequieta e eléctrica guitarra. Agradabilíssimo, este fim de tarde, para o qual convoquei Lorca e Luis García Montero, Al Mutamid, Al-Thurthusi e Felipe Benitez Reyes, além de Bernardo Atxga, de quem traduzi esta canção dedicada a «um explorador cansado». «Que outra coisa podia ver um explorador cansado/ Dentro dos limites de um metro quadrado de tristeza,/ A não ser Caminhos que os limoeiros acompanham, a não ser/ Colinas/ e ondulados Campos nos quais o vinho se pressente já;// Que poderia ver a não ser Ilhas de Cristal, Cidades/ Prateadas, áureas, Amanheceres, Barcos Ruivos/ que tripulações enlouquecidas levam sem rumo;// Serpentes gigantes, tigres, poderia ver também/ Baleias brancas submergindo em oceano cálido;/ Poderia ver duas mulheres de vestidos alaranjados/ Sentadas junto a uma parede incendiada pelo sol;// Poderia ver todos aqueles dias irrecuperáveis/ Pousando como um bando de pássaros imaginários.”