É sempre a primeira vez

[dropcap]A[/dropcap]s palavras vinham esparsas. Mas ele sabia que era uma espécie de amor, aquilo que sentia, um amor pelas coisas boas, e aguardava a transmissão. Sabia ainda que não havia rede e que nada o iria sustentar na queda, se ela existisse. As palavras chegavam sem sentido. Avulsas. “Circo”. Ele teria ouvido: “Vem ter ao circo”. Vindo assim, sem convicção, num fragor que despontara de parte nenhuma. Quem? Como? Quando? Porquê? Nada. Não havia esclarecimento. O fio terminava ali. Sem novelo.

Na sua cabeça só havia campo. Lugar vago. Livre. Uma configuração não alinhada com planície, mas sob a forma de colinas que se desenvolviam sem feição e sem regras. Como se dentro delas o respirar da terra, para cima e para baixo, as tivesse deixado assim, desviadas da sua existência. Desmanchadas, esquecidas, tumorais. Com vegetação disforme a preencher o demorado espaço. Alguns arbustos, árvores sem fruto e sementes que não se agarravam ao chão, que ficavam ali, sem enleio. Forma solta de pensar. Na expectativa de que a imagem das colinas se desvanecesse e que daí surgisse a vastidão e a solução para a soma dos seus infortúnios. A planura.

“Circo!”

Não um substantivo, mas um verbo. Eu circo, tu circas. Por baixo, matéria oca. Vazio. Indefinição. A terra seca. Um quase silêncio. O seu corpo em tumulto, cheio de sede de metamorfismo e clarividência, a aguardar as ordens da transmissão. As palavras que não vinham. E isso, sabia-o, era o prenúncio de coisas más, de tudo aquilo que não queria repetir. O seu corpo feito em colina, ali deixado, sem gema, sem força para suportar o passado que se avistava. Não era a queda, nem o circo, que temia, mas a sombra já vivida da desilusão.

Nem era à retaguarda que o torcer do relógio aludia, porque os instantes prosseguiam bem aconchegados na sua torrente, desaguando oportunidades que sem transigência era necessário ocupar. A hora e a sua ponta, apinhadas de resíduos de outras cronografias, a demandar recomposição. O estridente refrão. Uma nova cena. Claquete! A luz da alvorada a repetir-se, inscrevendo histórias similares com o corpo embutido como protagonista. Dia após dia. Uma narrativa desconhecida para viver. Sobre o que iria versar o novo enredo, seria sobre uma pequenina aldeia no campo? Era preciso transpor o despertar para alcançar a feição da nova presença. A vã promessa de um vocábulo ao acordar. O foco. Luzes! A dor faminta de existência que brotava sem ser notada. Retirava pronomes. Retirava preposições. Retirava-se.

Não se é gente, não há valor, nesta obediência. Na ordem da escrita. O génio não raia. Tudo é invisibilidade. Tanto e nada disso importa. Agora. Aqui. Depois. É sempre a primeira vez. Inicia-se amanhã? O pretenso texto, a pretensa crónica?

Hoje. Agora. Aqui. Este momento rigoroso que não existe e que não chega a ser abordado. É uma ocasião que descende de outra, que leva a um inexperto enlace, onde o tempo se dilata. Decorria o intervalo passado e já se sucede uma nova reticência. Um tempo de ninguém. Demarcações verbais. Ele circa.

A intermitência onde nada acontece. Alguma coisa desliza e se incrementa. Um braço que aperta. Uma noite. Será já dia? Fecha-se uma porta, abre-se outra. Vozes que reclamam. Vento que passa. Leva os sussurros de um momento para o outro. Os odores, os nervos, os gritos. De um flanco, nada, porque tudo se foi. Do outro, igual, porque ainda nada surgiu. Não há vez na derradeira obscuridade que antecede a palavra inicial, que se espera límpida. O primeiro passo, na mão que avança. Pede-se que integre uma frase, para que mais à frente nutra um sentido. Algures. Algures muito mais à frente. Acolá.

Não se é gente, não há valor, nesta obediência. Na ordem da escrita. O génio não raia. Tudo é invisibilidade. Tanto e nada disso importa. Agora. Aqui. Depois. É sempre a primeira vez. Inicia-se amanhã? O pretenso texto, a pretensa crónica? Um homem assente na fachada do seu desentendimento. Uma coluna dórica. Com uma tragédia grega a esmoer-se por dentro. De mãos largas, a desenhar a linha do momento preciso, contra as regras do que já se afixou. O friso, a arquitrave, o capitel. Desastres. Veículos de pernas para o ar. Aí sabe-se que vai existir uma história para contar, uma história das boas. E no outro dia, mais uma. No espaço. O momento da alvorada repete-se. Além.

E uma espécie de amor.

Ele. Ainda a aguardar a transmissão, ponderava em contínuo sobre o “Circo” e o seu entendimento. Quem lhe terá dito, de onde terá surgido a alusão? Colava memórias que inventassem itinerários. Subterfúgios isolados. Talvez se tratasse de um monólogo. Uma cena desconexa num enredo de curta duração. A criação de um plano. Uma cama ao fundo da sala. Seria um quarto, seria o fim da noite? Um candeeiro de pé alto. Um tapete. Roupa espalhada no chão. Colinas. As sementes que se desprenderam e recomeçaram a raiar descendência. A querer apontar para o génio. Para o sabor do ânimo. “Vem!”, disseram-lhe. Os dedos visíveis. O ar que passa.

Lembra-se de coisas para contar, sobre os homens que viu. Figuras desagregadas, perdidas do seu domínio. Árvores que jamais darão fruto. Mas nada disso terá importância que se faça notar. Ou fome de dor. Não quis ir, ao circo, é o único elemento que reconhece. A solitária certeza que considera. O indefeso NÓS. Nós não circamos. E aqui vai. A história de um fim sem princípio e sem novelo, que na inocência da manhã trará outra realidade. Outro mundo. Um novo sol. Outra vinda. Que continua por contar. Para que possa dizer e indicar o sentido do caminho por percorrer. O famigerado termo. Em exclamação. Quantos são? Quantos se alinham? Quantos gritam?

Numa espécie de amor, o silêncio impera. O amor pelas coisas boas. Dissipado. As colinas não deram lugar à planície. Em seu lugar, surgiu a cidade. Onde se circa. A queda que levanta a palavra que não cai. Nem o remoer da urbe se ouve lá fora. Nem as frestas de outra vida. Apenas a resposta muda, sem boca, sem corpo. Sem gente. Nada mais do que um papel. E uma caneta. Até aqui.

A noite cai. Levanta-se o dia. O dia exacto.

  BANDA SONORA 

23 Mai 2019

O criador e a mentira

[dropcap]O[/dropcap]lhando bem para o infinito, e há pessoas que o fazem, conseguimos observar o início de NÓS e descrevê-lo. Lá, nessa obscuridade sempre em expansão – cegueira, ignorância, melancolia -, diz-se que em preciso momento, do nada, a luz se acendeu. Especulação total. Nada se pode confirmar. Não existiam observadores para ver.

Mas existem agora. E vemos. Porque a velocidade a que o passado se desloca não é suficiente para chegar até aqui, agora. Não é que o passado já se tenha ido, na verdade, o início disto tudo ainda não chegou. Pior, não se sabe qual será o primeiro a dar de caras com esta coisa a que chamamos presente, se o fim, se o princípio. Ontem é amanhã.

Tenho quase a certeza que o mais fascinante que há na vida, mais do que ver, embora esta faculte a outra, é a leitura. Processo que mexe com todos os sentidos e que coloca a mente noutras alturas, não há muitos assim. Atilhos de palavras que constroem uma visão sem ela existir. Uma utopia a cada folha. O rigor de uma cascata, a chegar no fluxo, sem ordem. Por isso, leio. Observo. Escrevo. E sinto-me nutrido.

Inicio uma nova experiência em páginas de jornal. Como um passageiro, deixo a torrente desabar e fico à espera do resultado. Gostava que estas crónicas saíssem de forma natural como quem colhe uma peça de fruta do ramo de uma árvore. Uma peça de fruta, o ramo da árvore, é o que esta crónica vai ser. Percorrem-se estradas sem querer fazer contas ao destino. Sigo pelo pavimento, não sei onde vou desaguar. Não é relevante.

Certa vez, não sei porque me lembro disto, fui cicerone da região onde habito para uma estrela cadente da televisão. Mostrei-lhe o que havia, vistas, artesanato, costumes e gastronomia. Pelo meio, falámos do medíocre panorama televisivo, sem perceber que estava a participar nessa paisagem. O programa era péssimo, vi mais tarde, dando laivos de humor barato àquilo que levava desta zona. Respondeu-me: “É o que as pessoas querem”. Mas terá de ser assim, não se consegue vencer este estigma e nivelar um pouco mais alto?

Nesta mesma terra, um homem de descendência algarvia, com apelido de uma família de artistas macaenses, está revoltado com o que se passa por cá. Viveu na Germânia, onde foi bem recebido e aceite pela comunidade local; e passou alguma parte da sua vida nas américas, tendo feito grandes amizades com os aztecas, onde ainda é respeitado. É uma pessoa só, no sentido em que na terra onde vivemos há muito poucos do lado dele, a gritar em consonância e a contestar os desígnios da autarquia, enraizada até aos cabelos nos poucos habitantes que a compõem. Um sítio grande, pequeno. Vem isto a propósito de quê? Vem a propósito do mundo bloqueado que se sintoniza todos os dias.

Aqui, parto do princípio, não sei nada. Pego disto e daquilo e misturo. Agito. Um, dois, três. Já está! De um beco surge uma rua, um ponto cardeal que aponta para aquilo que é vivido, no cerne deste turbilhão. Estatela-se nas folhas deste papel. E vice-versa. A cascata, o fluxo, a desordem. A questão. Quero elucidar as pessoas mais novas para a necessidade da leitura. Ler e desprender a imaginação para outros mundos, como alimento. Escrevo com essa intenção primária, de explorar o planeta cinzento atrás dos olhos. Os germanos, os aztecas, o infinito. A roupa suja.

O que sei e o que não sei. Não importa. Aquilo que se sabe é uma ínfima parte do que não se sabe. A luz que se reacende. Ininterrupta. Relatá-lo como verdade é uma incoerência tão grande como a ignorância de um animal rastejante acerca da desventura humana. O passado é a única coisa que temos à frente. Se serve de alguma prova.

Inventar é mentir. As pessoas deturpam o verdadeiro para chegar mais longe. Quando estou a criar estou a mentir. Estou a lutar contra a precisão. Contra os factos. Ou o estado das coisas. Uma invenção, uma nova descoberta, com pouco se torna palpável e com contornos de realidade. Inventar é dizer a verdade. Cegueira, ignorância, melancolia.

E a crónica segue. Rasura o tempo corrente. Aventura-se na geometria do acaso. Despede-se. Tudo o que experimenta é desconhecido. Conheço-te, sei quem tu és, murmuras. Frase por frase, vai por aqui, a tentar encontrar o texto. E a poesia. Levando água entre as mãos e escrevendo-a no papel. Esse líquido cristalino que é um poema, que é uma ideia. Não fica lá tudo porque, a ideia e o poema, não se compadecem com uma superfície plana e limitada. Mas no pensamento, vago e alheio, fica alguma coisa, se tiver habilidade para isso. Para não entornar mais do que de menos, talvez reste algo perceptível. Cosendo as linhas de um poema. Ou de uma ideia. Que interessa isso dos nomes, e das verdades, se podemos voltar sempre ao início.

Mas, diz este descendente de algarvios, aqui todos têm medo. Medo até de o cumprimentar. Não vá estar ligado a forças progressivas que impugnem – porque nem tudo tem o formato visível da Lua– o edil camarário. E sabe-se lá o que existirá amanhã. “Estavas a falar com aquele, não era? Escreveste num poste. Não apareceste na cerimónia. Agora, amola-te”. Não é assim, porque a indiferença vem primeiro. A invisibilidade. Nem se chega às falinhas mansas, a coisa morre ali, muito antes de chegar ao vislumbre de terra firme no horizonte. A ilusão é plena. Cheia de estrelas cadentes e coisas por lavar.

Desventura, é certo. Parecemos animais rasteiros, sem ser de laboratório, esses sempre têm mais categoria, mas daqueles que abandonam primeiro o navio, antes das crianças e dos idosos. Muitas vezes, vejo as palavras dos outros – as entranhas, o sentir – e deparo com aberrações, com intolerâncias, com vacuidades. Humor barato. Sinónimos.

“O que o povo quer.”

Há sempre o nome. Joel, Martins, Sambuca. O que seja. Nomes que vêm à cabeça. Não importa a designação ou o número. Por isso não é de se ligar. As palavras, sim, importam. Vão caindo. Referem, ditam, apropriam. Mesmo deturpadas, porque as mãos não conseguem levar toda a água ao seu moinho, deixam uma raiz. Uma erva daninha. É preciso pensar nelas. Regá-las. Dar-lhes vida. Enxertá-las para que gerem mais peças de fruta. E possivelmente mais árvores. E lençóis por lavar, claro.

O criador e a mentira, ditei como ponto de navegação, em letras mais gordas. No início, quando nada há, antes do tudo, a raiz aflora. A realidade não consta. Não há o eu, não há o outro. Não há a saudação, nem a ameaça da mão apertada. Só o coração aperta. Que fazer, senão inventar e criar uma realidade qualquer? Coisas vãs e alheias. Choques. Caos. Caroços. Restos de coisa nenhuma. Revejo esse ponto lá ao fundo, não tão longe como isso, do primeiro momento, um sopro, um evento singular. Luminárias a piscar.

Cosmologia física. Densidade infinita. Filosofia quântica.

Vivemos num mundo irreal, que não sentimos. Que rodopia numa espiral catastroficamente controlada, composta por fórmulas atómicas não possíveis de percepcionar. Uma vírgula, um ponto final. Vive-se na impossibilidade, é tudo recreio. A invenção do dinheiro. O poder. A água, as palavras, os poemas. Para que serve tudo isso, se não está cá ninguém para nos cumprimentar?

9 Abr 2019