Eliot 1

A arte não começa senão no instante em que resulta e não pertence à esfera dos objectos mas dos acontecimentos.
Atesta-o o sucesso de T.S. Eliot e a sua influência por décadas, apesar de A Terra Sem Vida (1922) ilustrar a ruína do espírito humano.

Para se perceber o grau de sucesso de que Eliot gozou, lembremos que, em 1956, catorze mil pessoas se juntaram no estádio da Universidade de Minessota para escutar a sua conferência sobre “As fronteiras da crítica”, ou, como dezasseis anos depois de ter falecido, em 1981, se estreou “Cats”, o musical de Andrew Lloyd Weber baseado em “Old Possum’s Books of Pratical Cats”, com um tal êxito popular (desiderato que o poeta, com sete peças escritas, havia perseguido em vão) que, após a sua estreia em Londres, se manteve em cartaz na Broadway por dezoito anos.

Eliot foi uma figura unânime e tão grande a sua irradiação que na Europa central, na Polónia, um poeta central, como Zbigniew Herbert, escreverá:

«Não muito permanecerá de verdade não muito/ da poesia deste século enfermo/ certamente Rilke Eliot alguns outros grandes xamãs/ que resgataram o segredo de conjurar/ uma forma com palavras que resiste/ à acção do tempo/ porque sem essa forma não há frase/ digna de ser lembrada/ e a linguagem se esboroa como areia».

Aliás, podemos medir a inusitada transversalidade da sua popularidade pela deliciosa correspondência trocada entre T.S. Eliot e Groucho Marx, nos anos 60, e traduzida por Helder Moura Pereira, para o nº2 da revista “Magma”, dirigida por Carlos Alberto Machado e que eu coordenei. Transcrevemos, desse corpo de missivas, um excerto da final, de Groucho Marx para Gummo Marx, referindo o jantar em casa de T. S. Eliot, jocosamente, assinada como Tom Marx:

«Junho, 1964,
Querido Gummo:
A noite passada a Eden e eu fomos jantar a casa do meu famoso pen pal, T.S. Eliot. Foi uma noite memorável.
O poeta recebeu-nos à porta na companhia de Mrs. Eliot, uma senhora de meia-idade, loira e com muito bom aspecto, cujos olhos se enchiam de adoração sempre que olhava para o marido. Ele, por sua vez, é alto, magro e encurvado; não sei se isso se deve à doença, à idade ou a ambas as coisas. Devo dizer-te que este que te escreve chegou à casa dos Eliot completamente preparado para o que desse e viesse, no caso da conversa se tornar mais literária. Durante a semana li duas vezes “Assassínio na Catedral”, três vezes “A Terra sem Vida” e, pelo sim pelo não, li também umas coisas do “Rei Lear”.

Bom, passou-se então, meu caro, que, enquanto serviam os aperitivos e durante um daqueles silêncios sempre inevitáveis quando estranhos se encontram pela primeira vez, eu, a propósito de coisa nenhuma (e “não com o som de um estrondo, mas com o de um lamento”), lancei para o ar uma citação de “A Terra sem Vida”. Isso demonstraria, pensava eu, que costumava ler umas coisas para lá das notícias do mundo do espectáculo.

Eliot sorriu vagamente – como a querer dizer que sabia os seus poemas de cor e salteado e não precisava que lhos recitasse. Posto isto, atrevi-me a uma incursão pelo “Rei Lear”. Disse que o rei era um velho incrivelmente tonto, Deus bem o sabia; e que, se fosse meu pai, eu teria fugido de casa aos oito anos – nem esperava até aos dez.

Também não foi coisa que impressionasse o poeta. Parecia estar mais interessado em conversar sobre “Os Galhofeiros” ou “Uma Noite na Ópera”. E contou mesmo uma piada – uma das minhas – de que já nem eu me lembrava. Foi a minha vez de esboçar um sorriso vago. Eu não ia deixar ninguém – nem mesmo o poeta britânico de St. Louis – estragar o meu serão literário. Assinalei que o discurso de abertura do “Rei Lear” era o cúmulo da idiotia. Imaginem (disse eu) um pai a perguntar aos três filhos: Qual de vocês gosta mais de mim? E renegar depois a mais nova – a doce e amável Cordélia –, porque, ao contrário da irmã mais nova, uma perversa, era incapaz de se desfazer em falsas bajulações. Além do mais, Cordélia era, lembremo-nos, a favorita do pai!

Os Eliot escutavam educadamente. Mrs. Eliot começou então a defender Shakespeare e também Eden, lamento dizê-lo, se pôs do lado do Rei Lear, apesar de eu ser a única pessoa em todo o mundo que a apoia. (Para ser justo para com a minha mulher, devo dizer que, tendo representado o papel de Princesa numa produção escolar de “O Cisne”, soube reter da peça o calor humano que advém da dignidade).

Quanto a Eliot, perguntou-me se eu me lembrava da cena do tribunal em “Os Grandes Aldrabões”. Felizmente que eu nem de uma palavra me lembrava. E assim chegámos ao fim do Serão Literário, que foi, apesar de tudo, muito agradável. Descobri que Eliot e eu temos três coisas em comum: 1. uma verdadeira paixão por bons charutos e 2. por gatos; e 3. pelo vício de fazer trocadilhos – um vício que tento deixar há muitos anos. T.S., pelo contrário, faz gala disso – até sente um certo orgulho. Inventou o Gus, por exemplo, o Gato do Teatro, cujo “verdadeiro nome é Asparagus” (Espargos).

(…)  Quando lhe disse que a minha filha Melinda andava a estudar a sua poesia na Faculdade de Beverly, ele afirmou que o lamentava, pois não tinha o mais pequeno desejo de tornar-se leitura obrigatória.
Não ficámos até muito tarde, dado que ambos sentimos que ele não aguentaria uma longa noite de conversa – sobretudo comigo.

Já te disse que o tratámos por Tom? Se calhar por ser esse o nome dele. Eu, como é óbvio, pedi-lhe que me tratasse também por Tom, mas só porque detesto o nome Julius.
Teu, Tom Marx!

21 Jul 2022