António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasEstudo sobre síntese passiva I [dropcap]Q[/dropcap]uando olhamos para uma coisa, achamos que a temos aí, inteira, toda ela, tal como ela é. Edmund Husserl voltou a ensinar-nos que o destino dos grandes problemas da filosofia se encontra nas maiores trivialidades. Haja olhos para topar-se com elas. O que vemos de uma coisa é o lado que está virado para nós, melhor: o lado que está entre os nossos olhos que funda a nossa perspectiva, no caso da percepção óptica, e o objecto para lá da superfície dos seus contornos. O lado do objecto que está visto é uma estrutura não é real. É como a piada que procura saber dos lados de uma bola. Tem dois: o lado de fora e o lado de dentro. Todas as coisas têm dois lados: o lado que está virado para nós e o lado que está de costas para nós. Estes lados mudam. São formas variáveis. Posso ver as costas da cadeira, depois o assento, depois as pernas, depois, a cadeira de pé, de frente, de lado, de cima, de baixo, sentado nela e quando dela me levanto. A cadeira tem sempre os seus lados objectivamente os mesmos, reais, mas os lados visíveis para mim, tocados por mim, sentidos por mim, são determinados pelo espaço estruturante do contacto. Husserl põe este problema de diversas maneiras ao longo do seu encaminhamento filosófico. Há uma diferença entre o que está à vista, alguém que eu vejo de frente, e o que não está à vista mas que é pre-suposto: o seu interior: órgãos internos, aparelhos, sistemas, epiderme revestida pela roupa, a nuca, as costas, a parte de trás do corpo que eu não vejo. Se vir alguém de costas eu pressuponho que a pessoa tem rosto, barriga, parte da frente no seu todo. O mesmo se passa de lado. Quando alguém gira em torno de si, vai dando a ver de si lados para fazer desaparecer outros, que logo vai fazer aparecer para deixar desaparecer. Só vemos sempre a presença que vem à nossa presença. O estranho é que o que não vemos, o que desaparece não é como se não fosse e desaparecesse do universo, está lá de alguma maneira. Mas qual é compreensão que temos desta maneira como alguma coisa que não se manifesta, que está desaparecida, que não está lá, que está ausente, não está presente, de alguma maneira ainda é, existe, pode aparecer? Podia acontecer que, ao contornar alguém que vejo de costas, para ver se é alguém que me pareceu ter conhecido, não tivesse rosto, nem barriga, nem parte da frente, fosse côncavo no seu todo. Do mesmo modo, podia acontecer que se eu abraçasse alguém que vejo de frente, não sentisse as suas costas. O que existe entre a nossa perspectiva e os objectos que tocamos com o olhar são as superfícies dos objectos. Não vemos para lá da pele dos objectos, não vemos para lá da casca dos frutos, das árvores, do revestimento de qualquer coisa. Não conseguimos antecipar o que será para lá da camada superficial, epidérmica do que quer que se apresente, mesmo que seja logo a seguir a esse contorno.