Rui Cascais Via do MeioDias melancólicos se encontram no Outono NASCIDO EM 1963, em Zigong na província de Sichuan, Zhen Danyi, vive actualmente em Hong Kong, onde publica na Sixthfingerpress, uma editora-oásis, digamos assim, no ténue contexto cultural de Hong Kong. A sua mãe era actriz, uma intelectual que a Revolução Cultural poupou lançando-a para uma fábrica de açúcar para o resto da vida. Algumas das primeiras palavras que Danyi disse quando nos encontrámos foram: “odeio açúcar”.Os poemas aqui apresentados são de “Wings of Summer”, uma colectânea que reúne poesia de 1984 a 1997 em tradução inglesa de Luo Hui. É curioso encontrar um poeta que, ao contrário do cinismo em moda na Europa, não aposta em desdenhar do seu ofício. Em Portugal, por exemplo, tornou-se fino entre poetas dizer que “a poesia não interessa” (um famoso dictum de T.S. Eliot). Até faz sentido, para quem escreve nos subúrbios da vida, por tédio. Não no caso de Zheng Danyi, onde a escrita e a vida não são separáveis. Na sua poesia, como em muita da arte contemporânea chinesa, há uma crueza e um desassombro por vezes quase brutais que têm obtido uma recensão fora da China que as considera como violência gratuita ou como estranheza deliberada. Mas que outra coisa esperar de uma crítica e de uma sociedade que se habituaram a ver a arte como mero exercício? Como posso fazer-te acreditar que isto é o /Outono Quando tudo aqui Prova o oposto! Quando a mais fria água pega fogo Quem sabe – colo o meu ouvido A um sino. Quem sabe – Encomendei uma rajada de vento! Num mês As folhas caíram O sino esgotou o seu repique Como pode ter sido vinho A privar-me do meu desgosto! Como podes tu, caminhando sozinho Ter-te tornado escravo da tua alma Como podem os pássaros, mortos há muito Subitamente reaparecer no céu? Outono. Dias indescritíveis Dias em que o fogo extingue fogo Não, como posso fazer-te acreditar Que estes são dias em que electricidade se / dobra em metal! Estes são dias de apocalipse! Quando eu, / para ti Escancaro a porta da morte… Agora entra. Perplexas faces, gloriosas faces Dias melancólicos se encontram no Outono! QUANTOS OUVIDOS DA ALMA OUVEM Quantos ouvidos da alma ouvem idade Ou solidão? A última, a única liberdade Está desfeita. Quando intoxicada No cume da felicidade Nas profundezas de enormes plantas Quantos ouvidos da alma ouvem Rodas de pequenos dentes, girando Infinitamente girando Violentas línguas enredadas sob água Prodigalizando flores e interminável / bom vinho Porém cada nascer é um salvamento Como banquetes, uns a seguir doutros Pois o terror é bastante. Pois a terra Rouba antes de dar de novo Demasiado obsoleto! Por favor – Quantos ouvidos da alma ouvem O seu próprio arquejar, ou as batidas / do coração De crianças cantando Em punido ar A derradeira canção de inocência PRIMAVERA Como uma palavra de veias cortadas Isto é Primavera Após numerosas Primaveras Certos inimigos acordam Como um suave jardim Ervas, chuva, ou uma aguda vedação Tais coisas, no passado poderiam ter sido Espadas e adagas Amor, solidão… deixa estar Entre sonhos e fantasias Estão essas flamejantes pétalas Línguas traindo o amor Ou veias Secretamente quebradas? O vidro faz progressos Carregado com órgãos internos…Árvores / palácios Fazem progressos Em direção a gentileza, ou a cristal ou sal? Olha, vermiculares dedos, rostos Como Terreiros de execução – Meras folhas de papel branco Como poderemos suportar assaltos de sangue Olha, o que faz Este planeta de valas comuns entontecer, / cansar Não! Certamente não Costumes, morte, nascimento…ou um jardim Nas margens da carne destinadas a rebentar A terra está preparar, a devorar Outra Primavera CONHEÇO OS SONHOS DESTA REGIÃO Conheço os sonhos desta região Ao lado de uma ave fugitiva e de um sino / que toca Em Nanjing. Rochas para rochas se retiraram De Edifício graves Deixando muito espaço para árvores Flor de primavera, lua de Outono, ano sim, / ano não Paisagem e beleza desfilam, ar púrpura Fugindo de templo e igreja Buscando um cheiro, um bando de corvos Paira sobre o quarteirão…Um bando / de corvos Relutantes na partida, até Turistas serem trazidos ao alto do monte A mais bela Capital que já vi – a invernosa Najing Na margem da morte Mostrando paisagem. Secreta, serena…Até Carnudos remoinhos São trazidos de labirintos subterrâneos Abrupto ar de entardecer espalha ansiedade / e medo Uma ave fugitiva Sonhos de um sino que toca A capital foi para norte, as pessoas / ergueram-se E eu sei segredos mais profundos Para além da vista. Em delapidados Palácios, uma pérola única Ou uma cabeça tombada Causaram enorme incêndio Em Nanjing, metade do fogo penetrou / a poesia. A outra metade Contida por montes e lagos Imagens rectificadas por paisagem Torre subidas para ver – Nunca curta semana, a frente fria cruzou / o Yangtze Vestido em roupa almofadada Eu regressei À outra margem da morte…Oh Os meus passos apressados me envolveram Em sonhos desta região. Buscando um cheiro Repetindo faces fictícias A última noite trouxe grande neve Um par de sapatos de algodão me acenou Adeus às portas da cidade… A ave fugitiva, de novo, sonhou com um sino tocando Janeiro de 1989 OITO POEMAS CHAMADOS ESTILHAÇOS 1. O VENTO BATE COM SUAVES CASCOS O vento bate com suaves cascos nos vidros / da minha janela Eu balanço como água num copo No corredor branco do tempo Como um copo de água não me posso / inclinar O vento, depois dos bosques, varre agora / as ruas…. O vento, saindo da cidade…a um distante / vale Abre: castanha felicidade engarrafada Olho para dentro de mim…O vento Fica no copo, por isso só posso tremer Tremer. Ecoar O som das rochas despejadas nos tímpanos / do vale 2. POESIA O horário marcado, papel preparado, sangue / grita em calma Um som inclina-se para a frente Uma sombra varrendo diz: Agora A escrita começa Quando o vale mistura a sinfonia das canções / de amanhã Rasgo as ligaduras Rasgo a pele da dor para veres – Olha, aqui Poesia – este pássaro a ficar cor-de-rosa Penas cheias, músculos fortes, ossos / embrulhados Cordas vocais prateadas e finas como asas / de cigarra Todo completo…E aqui O crescimento no céu E fundos arranhões que deixou no papel… 3. RECUSA Toneladas de gelo flutuando no céu Chamamos-lhe nuvem Toneladas de raiva agitando-se no céu Chamamos-lhe trovão No cálice do universo Relâmpago gelado junta-se de novo a carne Toneladas de carne Chamamos-lhe amor Chamamos-lhe: qualquer coisa – Até que finalmente lhe chamamos; ódio Flutuando no coração Um pedaço de rugoso osso Entre estas linhas Nuvens de diferentes designações recusam-se / a fundir 4. VOCABULÁRIO BRANCO Então, deve ser assim que se cospe gravilha “Sobe rochas, esmaga…” Então, deve ser assim que se limpam / feridas mortas “Luvas, rochas, serra eléctrica…” Já não sonhamos para além de amanhã Nas rochas, vocabulário branco Paciente aguarda que a ordem esguiche, / em massa 5. MAS UM POETA É SÓ Mas um poeta é só um rádio amador No coração de sal e cristal, rápido nevoeiro / prevalece Cristal, olhos translúcidos, fixa blocos / de cimento Organizados como caixões ao longo / do céu Mais alto, num inferno de cimento, é salve-se / quem puder Mas um poeta pode voar – no sonho De um objeto voador feito de gralhas e papel / encharcado Mas um poeta é só alguém que fala no / nevoeiro Só um falante Em espesso nevoeiro Um archaeopteryx, exalando quentes / baforadas 6. COM POESIA Escuridão. Escuridão continua Um brilho branco no crânio Nunca pode ser esmagado Começo a limpar sangue em cadáveres Com poesia, começo a rezar Deixo sair calor aprisionado nos membros / de vocabulário Com poesia – o radiador inquebrado Quando no meu vas deferens algo se agita… 7. VIDA Vida, o que podes espremer agora A parte perecível pereceu A parte que abana foi abanada O que pode ser perdido, perdido O que pode ser sobreviver, sobrevive… Oh, Vida, a que me espreme Mas já não podes espremer mais, nem sequer Uma lágrima forçada 8. APARTAMENTOS DE CIMENTO Recuas perante ti mesmo, recebes O lençol branco com clavículas As portas estão sendo instaladas, uma a uma A cama, amarando as suas oito pernas, / não está disposta a suportar – Um frio Desejo de se erguer ocupa o leito de morte Desnecessariamente largo Com expressões presas e câmara lenta Novos inquilinos estão-se a mudar Erguendo-se, caindo, em fila As portas estão numeradas por dentro, / com endereços… Como pedras tumulares erigidas na mente “Não mais escrita – não mais!” Um cheiro ardente penetra as narinas Ela jaz na cama como suave fio Queimado por um sonho de alta voltagem… Maio de 1985 De Dezasseis Poemas, 1988 Introdução e Tradução de Rui Cascais