Dia-V

[dropcap]N[/dropcap]os Estados Unidos, o dia de São Valentim de 2020 foi o mais consumista de todos com um gasto de 27.4 mil milhões de dólares. Houve mais jantares, mais presentes, mais dinheiro gasto. Mais amor consumista que se espalhou. Amor é amor. Mas o Dia V pode referir-se a outras coisas.

No Dia-V o mundo também se chateia com a violência contra as mulheres e raparigas. Assédio, violação e mutilação genital feminina. No dia do amor e dos namorados aproveita-se para falar de coisas sérias. E há quem estique a discussão para a violência no namoro em particular, já que é o dia de se celebrar a relação amorosa. O amor é tão inequivocamente claro nas campanhas de marketing. Ninguém imaginaria que com ele também vem outro pacote de emoções e dificuldades que são difíceis de ser identificadas. Por vezes, e infelizmente, o amor é confundido com formas de violência, abuso e controlo. Ainda há pouco tempo decidi ver uma série romântica chinesa onde o amor obsessivo e controlador era de alguma forma legitimado. Um homem cheio de dinheiro faz uma miúda acreditar que ela tem leucemia e que ele é o único dador compatível para se aproximarem. De alguma forma isto foi entendido – depois de alguma zanga – como um gesto romântico. O amor é assim, faz-nos fazer coisas incompreensíveis, como às vezes nos querem fazer acreditar: ‘sempre para o bem do outro’. Amor bem-intencionado, era como se chamava a série em inglês.

As estatísticas sobre a violência no namoro continuam más. A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) em Portugal fez um inquérito onde 67% dos inquiridos naturalizavam alguma forma de violência no namoro e também onde 58% identificou já ter sofrido alguma forma de abuso. É muito. E como é que se identifica o abuso? Há o erro de pensar que as relações de antigamente é que estavam cheias destas confusões, de papéis de género ultrapassados, do tapa na cara quando o jantar não está pronto a tempo e horas. O amor destas gentes jovens e emancipadas pode não ser ultrapassado, mas carrega alguns legados que são traduzidos para as práticas sociais contemporâneas. Um novo milénio de telemóveis e híper-conectividade que em vez de libertar criou outras formas sofisticadas de controlo e de abuso. Sempre com o pretexto que o amor é bem-intencionado.

Há quem entenda o Dia-V como o dia da vagina, se quiserem ainda o tom reivindicativo, mas menos violento. Um dia para o amor próprio para quem tem vaginas (que não precisa de ser necessariamente uma mulher, já cobrimos isso) e para quem não tem e que se identifica com a causa. Todas as vaginas precisam de uma dedicada atenção se quiserem atingir o seu potencial máximo. Vaginas de dinâmicas complicadas, onde é ainda difícil falar do prazer e de saúde. Onde se possa discutir as menstruações porque são um símbolo de transformação corporal que muitos preferem ignorar (em alguns países do mundo pessoas a menstruar têm que ser isoladas de tudo). Tantos direitos ainda por serem garantidos por esse mundo de gentes com vaginas menstruantes.

Os dias especiais podem ser apropriados para re-significações importantes. No dia catorze de fevereiro, mergulhar na loucura de honrar namoros perfeitos com jantares perfeitos em restaurantes perfeitos é tão antiquado. Celebrar o amor, claro, e discutir abertamente as suas dinâmicas que vão desde à forma como se entende o sexo e o género às suas relações de poder. Discutir o amor até que nos sintamos confortáveis para praticá-lo nas suas formas relacionais, sociais e políticas.

19 Fev 2020

Celebrando o Namoro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]is que o dia dos namorados voltou! Se eu procurar ‘valentine’s day’ nas bases de dados académicas, são as áreas de gestão e consumo que mais andam a publicar acerca deste dia. Porque o pessoal do marketing sabe que ‘celebrações que exigem troca de prendas tem um grande impacto na economia’.

Consumir para celebração do amor romântico é, no mínimo, discutível. Que se ande a escrutinar as motivações para o consumo romântico, também me parece pouco… ia dizer ético, mas num mundo neoliberal não se discute a ética do consumo, só o promovemos desenfreadamente. Os resultados destes estudos, que equiparam a importância dos gestos amorosos com a troca de prendas, tentam compreender os significados associados a este dia, tão recentemente globalizado. Parece que as camadas americanas mais jovens (particularmente masculinas) acreditam que caso não presentearem as suas ‘mais que tudo’ no dia 14 de Fevereiro, que as suas relações podem ficar em risco. O pior é que a ideia de que esta é uma celebração que só existe para fazer mexer certas economias não lhes é desconhecida, mas simplesmente é negada em prol de expectativas sociais e relacionais.

Vive-se num mundo muito estranho quando gestos de amor estão calendarizados e associados a comportamentos economicistas. Porque não há nada de errado em oferecermos coisas uns aos outros, nem ter um dia disto e daquilo: todos os dias do ano estão muito provavelmente associados a uma causa ou outra. O amor romântico tem todo o direito (e o dever) de ser celebrado, partilhado, reflectido e praticado. Se forem necessárias desculpas externas para ajudar a fazê-lo, ninguém tem nada contra. Aliás, dizem outros investigadores que o dia dos namorados obriga a que os casais pensem no seu amor. Ora tendem a enaltecer os aspectos positivos do relacionamento, para quem tem vindo a construir uma relação forte. Ora tendem a separar-se com mais frequência durante a semana anterior e posterior ao dia dos namorados, para os que têm o relacionamento por um fio. As más línguas acrescentam que uma ruptura antes do 14 serve propósitos de poupança. Acreditem ou não, mas há quem julgue que quanto mais cara a prenda, mais amor se presenteia.

A preocupação é real. Há algo de perverso na forma como muitos namorados lidam com o dia São Valentim (de Roma!) – esse mártir que a igreja católica reconhece mal. O São Valentim continua a ser das histórias pior contadas no Martirológio (a palavra nova da semana). A história que se eternizou, mas que não se sabe bem se é real, é que o Valentim era o padre que andava a celebrar casamentos cristãos, a pessoas que não se podiam amar. A celebração do amor romântico a partir destes rumores de um santo no séc. V tiveram notoriedade dentro dos círculos ingleses medievais. Nessa altura começaram-se a escrever cartas uns aos outros finalizando com o que a tradução literal para português seria ‘queres ser o meu Valentim?’, i.e., ‘queres ser um mártir pela causa do amor?

Desde o séc. XIV até os dias de hoje muita água já rolou, muito amor já se deu, e agora muitas prendas continuam-se a dar! Esta celebração até altera a nossa percepção das rosas e dos chocolates, e de toda a representação do amor romântico ocidental que tenta ser globalizado. Porque este dia anda agora a moldar as expectativas relacionais com uma preocupação excessiva pelo consumo, quando a reciprocidade romântica precisa de de um trabalho de intimidade e de uma reinvenção do que é romântico, para cada um de nós, e para cada casal.

14 Fev 2018