Hong Kong altera a “Portaria de Registo dos Dentistas”

Na semana passada, alguns órgãos de comunicação social de Hong Kong divulgaram que está em preparação por parte do Governo de Hong Kong a emenda à “Portaria de Registo dos Dentista”, de forma que os licenciados em medicina dentária não possam registar-se e exercer logo após a graduação. Precisam primeiro de praticar numa instituição pública, ou numa outra instituição credenciada, durante um ano antes de poderem ingressar no activo.

A Dental Association afirmou que o currículo odontológico actual exige que os alunos pratiquem todos os anos, e que as aulas práticas têm uma duração maior do que as aulas teóricas. Além disso, existem actualmente cerca de 40 clínicas dentárias públicas em Hong Kong, das quais 11 servem os residentes de Hong Kong e as restantes atendem apenas os funcionários públicos. Por conseguinte, a extensão dos benefícios que esta medida pode trazer aos residentes de Hong Kong é assunto do maior interesse para a população.

De acordo com o Secretário do Departamento Médico e de Saúde de Hong Kong, existem 371 postos de odontologia, dos quais 50 estão disponíveis. Contando com a taxa de rotatividade anual de cerca de 11,1%, pode vir a haver 90 a 100 vagas. Além disso, o Governo de Hong Kong precisa de investir cerca de 500.000 HK dólares por ano na formação de dentistas, sendo que a formação em medicina dentária tem uma duração de 6 anos, pelo que o Governo investe na formação de cada um deles um total de cerca de 3 milhões de HK dólares.

De acordo com os noticiários, os estudantes de medicina dentária não foram consultados sobre a proposta de alteração da lei, mas como podem vir a ser os mais afectados, alguns ficaram desconfortáveis com a situação. Há também quem se questione se o objectivo desta alteração da lei é atender às necessidades do mercado, ou alterar o currículo odontológico que está em vigor há muitos anos.

A questão que se coloca está sobretudo relacionada com a formação dos dentistas e com os direitos e o interesse dos residentes de Hong Kong. Formalmente, trata-se de alterar uma lei de Hong Kong. Do ponto de vista formal, o primeiro passo a dar quando se pretende alterar uma lei é realizar consultas, nas quais se incluem, naturalmente, as partes interessadas.

Esta alteração à Portaria de Registo dos Dentistas, sem a consulta a uma das partes interessadas, os estudantes de odontologia, é certamente inadequada. Simultaneamente, estes estudantes serão os mais prejudicados pela alteração da legislação. Um grupo de pessoas que será muito afectado não pode expressar a sua opinião. O seu mal-estar é compreensível. Quando se vierem a fazer alterações a outras leis de Hong Kong, devem ser feitas consultas mais abrangentes para evitar que algo semelhante volte a acontecer.

É sabido que o currículo actual de odontologia em Hong Kong inclui muitas horas de aulas práticas em todos os anos da formação. No entanto, o Governo de Hong Kong propõe um ano de prática antes de se poder exercer. Quer se trate de uma prática segmentada ou de uma prática unificada que se concentra na conclusão das aulas teóricas, são apenas questões técnicas que não fazem muita diferença.

A questão central é se existe alguma diferença significativa entre as aulas práticas incluídas no currículo e a prática pós-formação proposta pelo Governo. As mudanças propostas só fazem tentido se se apontar especificamente as diferenças entre as duas e se puder demonstrar que essas diferenças aumentarão o profissionalismo dos dentistas e melhorarão as suas capacidades de tratamento dos pacientes.

Actualmente, todas as Universidades de Hong Kong têm propinas fixas, ou seja, as taxas de matrícula de cada curso são iguais às dos cursos universitários financiados pelo Governo. Há alguns anos, o Governo de Hong Kong debateu a possibilidade da instituição de “propinas diferentes para os diferentes cursos universitários”. Os custos de formação dos estudantes de direito são os mais baixos.

O curso de direito dura quatro anos. Além disso, os alunos só precisam de ter acesso a aulas teóricas, às bibliotecas e a tribunais simulados. Se compararmos com os cursos de medicina, nos quais se incluí a odontologia, que precisam de estudar durante seis anos, de laboratórios e de muitas outras ferramentas, o curso de direito representa uma despesa muito menor. Os estudantes de medicina precisam do apoio do Governo para a sua formação num grau muito mais elevado do que outros estudantes. Porque o Governo de Hong Kong não implementou a prática das “propinas diferentes para os diferentes cursos universitários”, a maior parte dos subsídios governamentais para formação universitária recaem nos cursos mais dispendiosos.

A odontologia é um exemplo típico. Se estes estudantes podem registar-se e praticar assim que terminam os cursos, e ver a sua actividade muito bem remunerada, isso fica a dever-se ao investimento de 3 milhões de HK dólares que o Governo fez em cada um deles. Mal compreendemos esta questão, percebemos, naturalmente, porque é que o Executivo de Hong Kong quer alterar a lei.

Claro que existem problemas no planeamento governamental para a odontologia pública, Existem actualmente cerca de 40 clínicas dentárias públicas, das quais apenas 11 servem residentes de Hong Kong e as restantes apenas funcionários públicos. Esta disposição põe inevitavelmente em causa o objectivo da alteração da lei. Só quando o Governo de Hong Kong fornecer mais serviços dentários públicos para beneficiar mais residentes é que a população pode desvanecer as suas dúvidas.

Quando se escolhe uma profissão, o mais provável é vir a exercê-la a vida inteira, e claro que esta assumpção se aplica aos dentistas. No que se refere à proposta de alteração da lei, não há dúvida que dentistas e estudantes de medicina dentária deveriam ter sido consultados. Uma mudança no programa curricular de um curso universitário só deve ser feita quando é necessária, especialmente se se tratar de um curso de medicina. As alterações curriculares não afectam apenas os estudantes e as universidades, mas milhões de pacientes, e devem ser efectuadas com cuidado.

Na realidade, é impossível que as universidades cobrem a cada estudante de medicina dentária 500.000 HK dólares por ano. Por conseguinte, é inevitável que o Governo de Hong Kong os subsidie. Mas o financiamento do Governo de Hong Kong vem do dinheiro dos contribuintes, ou seja, o dinheiro dos residentes de Hong Kong. Assim, os estudantes de odontologia devem retribuir à sociedade depois de receberem o financiamento para concluírem os seus cursos. A forma de retribuir é por vezes problemática. Idealmente, as partes interessadas poderão chegar a um acordo que a todos beneficie.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão do Instituto Politécnico de Macau

4 Abr 2023

Dilema do dentista culto

[dropcap]N[/dropcap]ão faço teatro para dentistas!” Terá exclamado o mercurial, mas não menos genial Peter Stein.

À frente da companhia teatral berlinense Schaubühne, embora se considerasse um mero primus inter pares, Stein havia cometido o prodígio de harmonizar erudição e kritik (ou seja a discussão dos fundamentos, termo que demonstra cabalmente como a banalização acarreta degradação), de articular o classicismo com a vanguarda e de conjugar insurreição com racionalidade.

Ao capturar as bandeiras até aí brandidas pelos conservadores, resgatando a tradição e a identidade, Stein – assim como outros bravos da sua geração do pós-guerra – logrou o feito admirável de extirpar o mal que pairava sobre a cultura alemã como uma maldição.

De impolutas credencias em virtude da sinceridade e da integridade política da sua obra e cabalmente ratificado nos círculos idóneos Peter Stein estava no caminho certo. Contudo não lhe escapou que as plateias que pressurosamente acorriam ao Schaubühne, quem se encantava e deslumbrava com as suas encenações, quem por estas era persuadido a compenetrar-se no exercício de reflectir sobre a ordem do mundo desde a perspectiva esclarecida e emancipada desbravada pelo seu teatro, que o seu público, enfim, era a burguesia urbana.

Viviam-se os anos 60 e 70. Doutro modo apelidada de classe média esta variante da vetusta burguesia alcançava um trem de vida confortável apenas pelo trabalho, sobretudo na área dos serviços, por conseguinte desligados da produção de mais-valias intensivas exploradas pelo capital, actividade essa que rapidamente se tornou maioritária nas cadeias de produção europeias.

O determinismo das ideologias que não previram esta evolução reprimiu-as de reconhecerem a factualidade da classe média. Isto operou um curto-circuito entre a existência e a consciência.

Ninguém mais do que a classe média detesta a classe média. Por um curioso efeito de negação individual muitos elementos da classe média têm a firme convicção de que na classe média se integram outros que não ele e essoutros é que assimilaram os valores da classe média. Mas dada a recorrência deste fenómeno é viável tomar tal repúdio como um traço distintivo da classe média. Decidida a obliterar a sua própria condição de classe, esta nova burguesia investiu com idêntico e voraz apetite tanto no consumo material como no consumo cultural. Aí estavam os famigerados “dentistas” verberados por Peter Stein, que percebeu bem o dilema.

Num determinado estado de coisas político não é invulgar na história encontrarem-se no seio daqueles que mais dele beneficiam os que mais se lhe opõem. É escusado fazer profissão de fé na dialéctica para assentir que todos os regimes encerram os seus próprios paradoxos. O que será inédito e paradoxal é que esta modalidade chamada de “democracia liberal” não só se congratule, como pareça alimentar-se desse paradoxo.

A classe média que se auto-renega está metida num labirinto fazendo por ignorar que nele vive o devorador Minotauro. Por exemplo, não falta na classe média quem pretenda qualificar-se exibindo repugnância pelo consumo de massas. Mais reitera do que atenua este tique de Maria Antonieta a noção de que semelhante forma de elitismo no consumo em vez de se consignar à proeminência financeira se meça por uma espécie de acumulação de capital moral. Atitude que proporciona quadros burlescos. Como a classe média pretensamente conscienciosa se leva muito a sério ela tende a desperceber que o marketing, esperto como um alho, transforma em paródia os seus preconceitos ciente de que venderá melhor um shampô se o carimbar de “sustentável.”

Ao fim e ao cabo a má-fé ou a alienação assomam como o traço predominante da classe média que se julga culta. Tinha razão Peter Stein – os dentistas são insuportáveis.

17 Mai 2019