Contratações Públicas | População quer menos burocracia e mais informações

Não à obrigatoriedade de comissões para os procedimentos gerais de ajuste directo das contratações públicas e mais divulgação das informações acerca dos concursos foram algumas das ideias mais defendidas na consulta pública sobre a nova lei da contratação pública. O relatório foi divulgado ontem

 

[dropcap]A[/dropcap] obrigatoriedade de uma comissão de avaliação de propostas para a locação ou aquisição de bens por parte dos serviços públicos, por procedimento geral de ajuste directo “é impedimento à eficiência dos trabalhos”, apontam as opiniões recolhidas durante os dois meses da consulta pública relativa à nova lei da contratação pública.

De acordo com o relatório divulgado ontem pela Direcção dos Serviços de Finanças (DSF), muitos serviços públicos consideram que a constituição obrigatória de uma comissão de avaliação para a realização dos trabalhos do acto público e de avaliação da proposta neste tipo de regime contraria a própria finalidade do sistema de ajuste directo. Importa referir que este procedimento apenas se aplica aos casos que envolvem serviços com valores entre 10 mil e 100 mil patacas. Ou seja, ao invés de promover a eficácia dos procedimentos, a medida prevista no novo diploma, prejudica “a eficiência e a eficácia da Administração Pública”.

A constituição de uma comissão de avaliação de propostas está prevista mesmo no caso em que os serviços obtenham apenas uma proposta de um fornecedor ou de um prestador de serviços o que pode levar a situações injustas. A razão, aponta o relatório, prende-se com a avaliação das propostas ser “assumida repetidamente por determinados trabalhadores dada a escassez de pessoal dos serviços”.

As opiniões expressão na consulta sugerem que o procedimento geral por ajuste directo seja idêntico ao sumário, nomeadamente nas situações em que não seja realizado concurso público ou de consulta.

Há também quem considere que o Governo deveria optar por aumentar os valores do procedimento geral de ajuste directo caso queira manter a obrigatoriedade da formação de comissões.

Mais transparência

Do outro lado do espectro, o Governo justifica a necessidade da comissão com o objectivo de promover a transparência do processo. “Embora o valor da contratação seja relativamente baixo, para evitar que alguns trabalhadores incumbidos da contratação formulem, livremente, propostas de adjudicação inapropriadas aos serviços públicos, propõe-se no documento de consulta o dever de constituir a comissão de avaliação de propostas para assumir as tarefas relacionadas com o acto público e a avaliação de propostas”, lê-se.

Recorde-se que a nova legislação aumenta o limite mínimo do montante das contratações de 2 milhões de patacas para 15 milhões de patacas para que se proceda a um concurso público.

É preciso informar

Outra das áreas que também suscitou grande número de opiniões diz respeito ao artigo referente às “disposições legais para promover a transparência da contratação e salvaguardar o direito à informação por parte dos participantes e da população em geral”.

De acordo com o relatório, “a sociedade e a população entendem que, para além da publicitação das situações propostas no documento de consulta”, há outras informações a serem integradas neste âmbito. De entre as sugestões destaca-se a publicação das informações de projectos de contratação, independentemente do valor e do procedimento da contratação e a divulgação das informações relativas a projectos de contratação sob “dispensa de consulta”. “Em caso da tomada de decisão de não adjudicação, devem ser indicados os trabalhos subsequentes e as regras de acompanhamento”, acrescenta o relatório referindo-se às sugestões recebidas. As opiniões apontam ainda que após a conclusão da adjudicação, deve-se divulgar a lista do pessoal que compõe a comissão de avaliação de propostas, “podendo este acto reforçar mais reconhecimento da imparcialidade do resultado da adjudicação”.

Houve, no entanto, uma opinião contrária à da maioria, que defende que a divulgação de informações deve ocorrer de acordo com a protecção de dados pessoais “sendo necessário ter em conta a protecção da identidade dos membros da comissão de avaliação de propostas”.

Para a consulta pública, que teve aconteceu ao longo de dois meses e terminou a 4 de Janeiro, foram recebidas 120 opiniões. A nova legislação pretende actualizar o regime que está em vigor “há quase 35 anos, desde a sua promulgação em meados da década de 80 do século passado”, referiu a DSF. “Hoje em dia, as disposições da parte do articulado dos respectivos decretos-leis apresentam-se, notoriamente, desfasadas no âmbito das necessidades motivadas pelo actual desenvolvimento socioeconómico de Macau, das exigências da implementação de boa governação na administração pública e da elevação de eficiência administrativa, bem como das solicitações sociais sobre o aumento da transparência (…) e o reforço de fiscalização”, justifica o organismo no relatório.

4 Jul 2019

Direito | Ex-juiz diz que lei de contratações públicas “é permissiva”

João Valente Torrão lança esta quinta-feira um livro que põe o dedo na ferida quanto à desactualização do regime de bens e serviços em vigor. A obra, intitulada “Regime jurídico da contratação pública da RAEM”, expõe as falhas de um diploma “desactualizado” e “permissivo”. O antigo juiz e formador de magistrados defende mais do que duas formas de contratação, com implementação do sistema online

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muito que a adjudicação de bens e serviços por parte da Administração é o calcanhar de Aquiles de um Executivo que afirma governar em prol da transparência. Numa altura em que o ex-procurador da RAEM responde em tribunal por ter autorizado demasiadas adjudicações directas de bens e serviços para o Ministério Público, sempre às mesmas empresas, alegadamente de familiares, e sem concurso público, é lançado um livro que espelha os problemas do actual regime.

João Valente Torrão, antigo presidente do colectivo de tribunais em Macau nos anos 90, formador de vários magistrados do território, lança esta quinta-feira a obra “Regime jurídico da contratação pública da RAEM”, na Fundação Rui Cunha (FRC). O livro será apresentado por Vasco Fong, ex-comissário contra a corrupção, actual director do Gabinete de Protecção dos Dados Pessoais.

Em entrevista ao HM, João Valente Torrão defende a revisão do regime das despesas com obras e aquisição de bens e serviços, em vigor desde 1984. “A lei de Macau é uma lei que, em Portugal, já foi alterada várias vezes. A aquisição de bens e serviços é um diploma de 1985, o de Obras Públicas é de 1999. Mesmo o de 1999 não é um diploma muito vanguardista, digamos assim”, começa por apontar.

Quais são, então, as maiores falhas? “Em primeiro lugar, a lei actual não obedece às regras internacionais, como a consagração de princípios como a transparência, imparcialidade, publicidade. Como digo no livro, o tribunal pode superar, e a Administração tem superado, através do Código do Procedimento Administrativo [a falta de uma lei actualizada]. O Código do Procedimento Administrativo é uma lei válida, que para mim tem o mesmo valor da Lei Básica. É possível ultrapassar essas questões.”

João Valente Torrão defende ainda a criação de um sistema electrónico para as adjudicações feitas no seio da Função Pública. “Há o aspecto do uso electrónico da contratação. Em Portugal, e para que se tenha noção da importância disto, registaram-se em 2013 175 mil procedimentos electrónicos. Em Macau, entre 2000 e 2013, a contratação pública subiu de dois mil milhões para onze mil milhões de patacas. Em termos monetários, é muito importante.”

João Valente Torrão defende ainda a criação de mais formas de contratação. “Há um atraso nos procedimentos, há apenas o concurso público e o ajuste directo. Em Portugal, na União Europeia e em toda a parte já existem vários procedimentos para a contratação pública.”

Para além disso, a obra lançada pela FRC defende que a nova lei terá de apontar “as garantias dos interessados” no processo de contratação. “O principio da audiência prévia, antes da adjudicação, não está na actual lei mas está no Código do Procedimento Administrativo.

A indemnização seria uma das garantias necessárias. “No caso da contratação pública, tem alguma gravidade, porque apenas se pode recorrer para o tribunal depois de estar adjudicado o serviço ou adquirido o bem. Em Portugal temos um serviço de contencioso que permite ir a tribunal logo enquanto o processo decorre. Tem alguns riscos, mas em Portugal está claramente identificada a possibilidade de indemnização. No livro também defendo que é possível uma indemnização.”

China à nossa frente

O antigo juiz, já retirado dos tribunais, não encontra uma explicação para a ausência de uma lei, quando a China já tem legislação avançada. “Essa importância é dada através das organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio. A China já tem uma legislação mais avançada sobre esta matéria face a Macau.”

“Se a própria China já tem esta legislação, não vejo porque é que aqui há-de continuar assim. Não garantem os direitos dos adjudicatários, porque não se conhecem melhor certos aspectos, e adoptar a contratação por via electrónica. Tudo isso é bom para garantir a imparcialidade, para diminuir as possibilidades de corrupção”, defendeu.

Em Macau, muitas das adjudicações de bens e serviços acabam por ser feitas sem a realização de um concurso público. Não é ilegal, alerta o autor do livro, mas não está certo. “A lei é muito permissiva. A lei diz que se o concurso público não tiver êxito, vai-se para o ajuste directo. O ajuste directo exige a consulta de três entidades, mas isso pode ser dispensado ‘em caso de’. É provável que às vezes haja um abuso do ajuste directo.”

A ausência de análise

Para João Valente Torrão, o facto de só agora o Governo estar a elaborar um novo regime de aquisição de bens e serviços pode advir do facto de haver pouco debate sobre o assunto. “Este diploma é de 1985, já poderia ter sido actualizado pelo menos em 2000, no início da RAEM. Como não se levantam muitas questões, talvez seja por isso que o Governo não está pressionado a fazer alterações.”

No geral, aponta, há falta de estudos na área do Direito. “A questão também não é levantada em tribunal. Sobre esta matéria encontrei apenas meia dúzia de artigos. Aqui não se estuda muita coisa porque as pessoas não têm o espírito de litigância [de levar casos a tribunal]. Como não aparecem muitos casos, os advogados não estudam e os tribunais não decidem.”

O facto do Governo ter começado a reagir tarde a diversos relatórios do Comissariado da Auditoria e Comissariado contra a Corrupção não é, para o antigo juiz, uma forma de descredibilização destas entidades.

“ O Governo tem as suas prioridades. O facto de responder tardiamente não significa menos respeito por essas entidades. Até vejo os órgãos do Governo dizerem que aceitam as conclusões. Talvez seja uma forma de actuação do Governo.”

Caso Ho Chio Meng “denegriu a justiça”

Convidado a comentar a detenção do ex-procurador do Ministério Público, João Valente Torrão assume que nem era preciso ir tão longe para denegrir a justiça. “Nem era preciso ser um antigo procurador, bastava ser um juiz ou alguém de categoria inferior. Basta isso para denegrir um pouco a justiça. Sei que ele está acusado de uma série de crimes, 1500, o que me impressiona um pouco, mas não sei quem fez a acusação. Claro que é uma mancha na justiça. Tudo depende do que se provar em tribunal.”

Questionado sobre o facto de continuar a ser prática do MP a adjudicação directa de serviços, prática de que está acusado Ho Chio Meng, João Valente Torrão avisa que “não vê qualquer ilegalidade”, mas que, em “nome da transparência, para que não haja suspeitas de corrupção, talvez fosse bom não abusar muito dessa forma”.

“Magistrados não escrevem em português”

João Valente Torrão alerta para o facto de muitos dos magistrados em funções não utilizarem muita a língua portuguesa nos processos. “Todos esses magistrados [formados na década de 90] falavam e escreviam português. Mas agora o que se diz, e sei por experiência própria, é que nem se dão ao trabalho de escrever em português, e há apenas um mero despacho em chinês.”

Sobre a falta de magistrados, João Valente Torrão não dá muitas sugestões. “Não tenho processos neste momento e os advogados estarão em melhores condições para avaliar a situação. Posso dizer que fui formador, juntamente com alguns colegas, e todos nós nessa altura demos o nosso melhor para formar magistrados e a ideia geral é que, todos aqueles que formámos, eram magistrados muito bons. Temos de saber se é possível formar cá magistrados. Sei que há um curso a decorrer agora, mas não tenho mais informações.”

Sobre os actuais atrasos na Justiça, o antigo juiz prefere recordar o seu tempo. “Não sei detalhes, sei que o número de processos terá aumentado muito. Quando cá estive éramos quatro juízes portugueses e fazíamos todos os serviços atempadamente. Mas, não tenhamos ilusões, eram menos processos, e talvez menos complexos.”

“Em Macau não interpretam a lei”

O antigo presidente do colectivo de tribunais de Macau prefere não dramatizar em relação ao gradual desaparecimento do Direito de Macau. “O Direito é o mesmo em todo o lado. Há a tendência para os princípios serem gerais. O que noto em Macau é que, muitas vezes, não interpretam a lei, mas isso não é por ser português ou chinês, é porque não sabem as bases da interpretação. Uma lei interpreta-se pelo seu espírito e a sua história.”

“Talvez o problema não esteja no Direito, porque o Direito é igual em toda a parte. Na China, em 1999, o sistema chinês tinha mais tendência para se aproximar do ocidental do que do inglês. Quando me dizem que isto pode acabar, penso que não acaba”, adiantou.

Sobre a má qualidade dos cursos de Direito no território, João Valente Torrão prefere lembrar que “talvez os estudantes não aprendam bem os princípios do Direito, que são iguais em toda a parte”.

Código do Procedimento Tributário “desactualizado”

Especialista em legislação na área dos impostos, João Valente Torrão lança mais um alerta face à desactualização do Código do Procedimento Tributário. “Há uns anos que está para ser reformulado e ainda não foi, e esse é um dos casos em que há uma profunda desactualização. Não apenas ao nível dos impostos, porque a Lei Básica diz que se trata de um regime altamente favorável. É o procedimento. Dou um exemplo: caso se queira impugnar uma decisão da pessoa que liquida os impostos, a lei não é clara. Ainda temos as leis de há muitos anos, a execução fiscal data de 1951. Uma modernização não fazia mal, e que indicasse claramente os direitos dos contribuintes e dos adjudicatários.”

14 Fev 2017