Teresa Sobral Manchete Voz HumanaPiménio Ferreira: “A retórica anti-cigana sempre funcionou em Portugal” Piménio Ferreira, mais conhecido por Gitelles Ferreira, militante anti-racista, 34 anos, engenheiro físico, nacional romani. É um homem com um discurso provocador, um humor corrosivo, gentil e com um sorriso que não deixa ninguém indiferente Gitelles, nós vivemos numa terra intercultural e os ciganos – em particular – vivem há cerca de cinco séculos em Portugal. O que se passa para as comunidades ciganas continuarem “à margem” da dita sociedade? Falta mudar o modelo de sociedade. Este é extremamente estratificado, colocando pessoas em lugares subalternos para privilegiar uma minoria violenta. A estrutura social branca é patriarcal e racista. O que se chama de ‘margem’ da sociedade é na verdade um lugar intrínseco à mesma, que lhe pertence. Dito de outra forma, as pessoas ciganas foram incluídas neste modelo de sociedade desde que descobriram a Europa e seus reinos. O problema é o modelo de sociedade que se mantém e o lugar para onde foram relegados e como foram relegados: com violência, em estatuto de inferioridade face aos brancos, sem direito à dignidade humana, a constituir família, a escolher a própria língua e religião, expropriados de todo e qualquer direito cultural e material. Um lugar construído e mantido até hoje por violências e perseguições genocidas e etnicidas. Em 1463, a um Vasco Gitano era-lhe aforada uma herdade. Em 1521, os gitanos, ou ciganos, eram já usados como referência para tudo o que é considerado mau no modelo de sociedade. O “contra-exemplo” face ao branco que se destacaria pela positiva. O ‘anjo’ e o ‘demónio’; o ‘outro’, o inimigo; aquele contra quem todo e qualquer ataque e perseguição é legítimo. Incluindo a proibição de se defender, de ter armas, qualquer tipo de bens, e direito de permanência. E é por lhes ser negado esse direito à permanência que ainda hoje temos comunidades ciganas nómadas dentro do país? Sim, sem dúvida. Há muitas formas de forçar o nomadismo: directamente, proibindo a permanência e expulsando com força policial ou militar; indirectamente, recusando habitação pública ou privada a pessoas ciganas, por serem ciganas; e ainda através do processo de gentrificação. Eu li o resultado de um inquérito da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, onde se diz que aproximadamente 80% dos ciganos inquiridos vivem abaixo do limiar de risco de pobreza do seu país; um em cada três ciganos vive numa habitação sem água canalizada; um em cada três ciganos pertence a uma família em que alguém se deitou com fome pelo menos uma vez no mês anterior; e 50% dos ciganos com idades entre os 6 e os 24 anos não frequentam a escola. Por que é que isto acontece assim? É a perseguição histórica, que continua. Não há empobrecimento que não tenha causa externa. No caso, um sistema político de expropriação total e imposto na base da violência. Já em 1648, D João IV, o Restaurador, proibia ‘dar-se ou alugar-se casas a ciganos’. O mesmo D João IV que conseguiu o reino de Portugal graças a D. Jerónimo da Costa e aos seus 250 Cavaleiros. O mesmo D. Jerónimo da Costa que morrera a defender a independência de Portugal face a Castela. Cigano, tal como sua mulher e filhos. Entre proibições de permanência, “que não entrem ciganos no reino e saiam os que nele estiverem” (D João III, 1526), com expulsões, degredos para as galés, expropriação de bens e propriedades, impostas com penas de açoites, mutilação e morte, sistematicamente realizadas até aos dias de hoje (ainda em 2011 a Câmara Municipal de Faro queria proibir ciganos no concelho). A proibição de trabalharem por conta de outrem (ninguém emprega trabalhadores ciganos, e os que aceitam fazem-no em total precariedade, para cargos mal remunerados e sem direitos e condições dignas). Não conseguem ficar dependentes de trabalho por conta própria, não conseguem meios de investimento, devido à extrema expropriação. Ficam dependentes da precariedade. Se quiserem saber como é viver em neoliberalismo puro, conheçam a vida dos ciganos. A realidade destes é paradigmática da agressão e desprotecção a que os “senhores” estão dispostos a ir, para seu proveito. Os senhores de que falas, é o poder económico e político? O grupo do poder político, social, cultural e económico. O proprietário, o colonizador. Esse grupo que está no poder desde que instituiu o sistema de dominação actual. E que só tem sentido dentro do modelo sociopolítico hierarquicamente estratificado em que vivemos. Daí a necessidade de acabar com ‘senhores’ e instituir um novo modelo de sociedade, saudável, livre, sem hierarquias nem estratos, sejam de raça, classe ou género. O modelo em que vivemos leva a comunidade cigana (e não só) à exclusão económica, afastando-a do acesso ao consumo de produtos ou excluindo-as do seu processo de produção; à exclusão política associada à falta de acesso a informação; à educação e consequentemente a exclusão social que se vê na desigualdade de acesso a áreas comunitárias de qualidade como restaurantes, bibliotecas, teatro, cinema, concertos, cuidados de saúde, etc. Como se sente uma criança cigana ao perceber que não faz parte de um todo? Crianças que nunca se vêm representadas, nem em filmes, nem em livros, nem em desenhos animados, nem sequer num anúncio a comer cereais, por exemplo? Isso é um desastre para a auto-estima, é uma condenação à priori? A questão é mesmo essa. As pessoas ciganas não estão “excluídas da sociedade”, ao contrário, estão incluídas nela. O problema é a existência do que cinicamente é chamado de ‘exclusão social’, qual termo orwelliano, e aí estarem sob coacção, as pessoas. Qual campo de concentração e extermínio. Aliás, os campos de concentração nazis são uma concretização mais visual do que se chama ‘exclusão social’ e, tal como aqui, não eram uma parte ‘excluída’ da sociedade nazi, mas antes a sua estrutura fundamental e caracterizadora. É um lugar de violência, onde as pessoas são mantidas pela violência, dedicado ao seu extermínio, e desenhado para que pouca gente consiga sair. E mesmo assim resistem. Tal como nos campos de concentração nazis. E o que elencaste como exemplo de ‘consequência’ dessa ‘exclusão’, é na verdade o meio pelo qual essa exclusão também acontece e se mantém. Pessoas ciganas estão fora dos cinemas, quer como consumidoras quer produtoras (mas vão ao cinema). Estão fora da escola, da educação e da Academia. Quer como ‘utentes’ quer como produtoras (mas vão à escola e estão na base da construção de conhecimento e de debates académicos e científicos). Até no ataque à autoconfiança da criança cigana, falamos de um mecanismo de manutenção desta situação. Mas as pessoas ciganas respondem muito bem: com o orgulho cigano. Outra resistência, a mais uma agressão. As pessoas ciganas estão assim incluídas na sociedade. Num lugar que pertence a este modelo de sociedade moderno. E resistem e contrariam o poder de dominação e fazem questão de estar na cidade, no cinema, no teatro, na Academia, em todos os espaços. Com muita luta e sempre resistindo, mas estão lá. A exclusão social, mais do que um “lugar fora da sociedade”, é parte da sua estrutura social. Queres dizer que há uma resistência colectiva? No trabalho, já num contexto de precariedade absoluta, durante a pandemia, as pessoas ciganas arregaçaram mangas e mostraram mais uma vez, proactividade e criatividade na adversidade. Aprenderam vendo fazer e fazendo. E aqui, são novamente as mulheres quem salta para a linha da frente, dão a cara, aprendem a usar as ferramentas digitais com as suas filhas ou filhos, e lançam-se na rede. E assim exploram as vendas online bem como os trabalhos por aplicativo (transporte ou estafetas). Na habitação, num contexto de pandemia em que os despejos não foram travados – como deviam e dita a própria lei – moradores não deixaram de se organizar e lutar contra despejos injustos e reclamar a dignidade na habitação; associações de moradores aliadas na sua ação a outras organizações de luta pela habitação e anti-racistas. De notar também como se reinventaram e intensificaram para angariar e distribuir bens alimentares e kits de máscaras/álcool gel para as pessoas mais expropriadas. Ciganas e não ciganas. Na luta anti-racista, novos movimentos surgiram e as suas acções intensificaram-se pelas redes sociais. Pessoas que nunca antes se tinham organizado ou militado, iniciaram os seus primeiros passos no activismo, engrossando esta via da organização e acção popular cigana e anti-racista. As pessoas esquecem, ou não querem valorizar, mas a acção cigana tem ajudado a determinar resultados na disputa política. Munícipes ciganos mobilizaram-se em grande e determinaram resultados eleitorais nas autárquicas de 2017, quer no Alentejo, quer na Área Metropolitana de Lisboa, causando inclusive terremotos eleitorais. E mesmo nas Presidenciais, o segundo lugar foi resolvido por um valor equivalente ao número estimado de eleitores ciganos. Fora os votos não ciganos que foram mobilizados pela acção de eleitores ciganos. Pessoas ciganas estão inclusive a co-construir poder nos espaços de opinião, nos media local, nas redes sociais e na disputa política partidária e institucional. E mais importante ainda, na açcão popular e em alianças com outros movimentos sociais. Nunca parámos de lutar por todos os meios e continuamos a resistir. Em contrapartida há cada vez mais discursos de ódio, da extrema direita em particular. Que tens a dizer sobre isso? Para começar esses discursos são históricos e europeus. Não sendo nem actuais e menos ainda “da extrema-direita”. Esses discursos são adoptados e proferidos há muito tempo, mesmo em ‘democracia e liberdade’, por vários representantes do centro-direita, conservadores, centro esquerda, liberais, esquerda liberal, até representantes do PCP. A retórica anti-cigana sempre funcionou em Portugal, por ser a retórica mais brancogénica [de génese branca]. Isto é, que permita criar e dar o “branco” como o superior de todos. E assim agradar ao eleitorado branco que, ao sentir-se bem, compensa com o seu voto. Mesmo que as políticas implementadas pelos seus eleitos o prejudiquem ainda mais. Para terminar gostava que falasses um pouco da tua experiência pessoal e como chegaste a activista? Estudei, lutei pelos estudos, fiz alianças, formei-me, enveredei no mercado de trabalho da “precariedade formal”. Iniciei a minha acção militante e aqui estou hoje. Nós podemos transformar esta sociedade numa melhor. Essa certeza aliada ao facto da actual ter tanto sofrimento, faz qualquer pessoa querer ter uma atitude transformista. Eu quis ser ‘inventor’ (engenheiro físico) e militante antirracista. E através do estudo (não necessariamente escolarização) e da organização com outras pessoas, por sua vez, com outros estudos, formações e visões, fui aprendendo como o mundo funciona e como pode ser mudado. Mas antes de transformar, precisamos sobreviver. Daí surgem dois tipos de acções: transformativas e de sobrevivência. A luta contra o discurso de ódio surge como sobrevivência, mas a sua derrota será uma vitória transformativa. Há muita coisa que – como pessoas que querem um mundo melhor – temos de fazer, nomeadamente trabalhar para criminalizar o discurso de ódio; condenar e proibir organizações com discursos e práticas racistas; denunciar a estrutura e lógicas institucionais racistas que organizam o Poder e gerem os recursos comunitários. E nesse sentido, têm havido vários tipos de ações, de petições, a manifestações. E precisamos de mais. Eu, além de militar no movimento SOS RACISMO, participo no Podcast “Viemos Para Ficar”, com Mamadou Ba e Joseph da Silva. E se tudo correr bem, iremos em breve iniciar um novo projecto. Com pessoas amigas, temos também o projecto “Iniciativa Cigana”, dedicado a refletir e promover movimentos transformativos. Focado essencialmente em educar contra o anti-ciganismo, denunciando o genocídio histórico e continuado e trabalhando para um novo projeto de sociedade. Também com novos projectos na calha. E por fim, há sempre as acções voluntárias, sem uma organização, onde procuro partilhar o que descobri sobre o Anti-ciganismo e a história Romani em escolas e com pessoas interessadas. Além disto, há ainda a luta pela habitação, porque os despejos não pararam durante a pandemia. Devido à precariedade habitacional e laboral, os sujeitos racializados especialmente os nacionais Roma, são os que mais vulneráveis ficaram ao Covid-19. É fundamental haver acções nesta área; de todas as lutas, esta é a mais estrutural, pois vai contra um dos principais inimigos de uma sociedade saudável: a especulação imobiliária deste sistema capitalista, que coloca o lucro e os bens acima das pessoas e sua humanização.
Teresa Sobral Manchete Voz HumanaAndré E. Teodósio: “O meu trabalho é a desmontagem de um dogma” André E. Teodósio tem 43 anos. É encenador, músico, cantor, actor, escritor, apaixonado, excêntrico, activista e defensor das comunidades mais desprotegidas. É um dos directores do colectivo Praga e foi considerado em 2012 pelo jornal Expresso um dos portugueses mais influentes A distinção do Expresso em 2012 é uma responsabilidade muito grande. Sente-se bem nesse lugar? Isso surge de uma coisa muito específica, provavelmente de eu ter conseguido, muito cedo, acesso a determinados modos de produção que outra pessoa da minha idade anteriormente não tinha. E acho que tem a ver com a acessibilidade aos modos de produção … não sei se terá necessariamente a ver com a própria prática artística em si. Não faço a mínima ideia. Mas isso também não me motivou muito, porque as relações de escala laborais variaram muito mesmo quando fui nomeado. Creio que sempre lutei ou pautei a minha prática artística por uma saída do preponderante. Não sei se terá alguma influência mas sei que de alguma forma contribuí para a disponibilização de pessoas, de práticas, de modos de olhar o mundo e de formas laborais que eram bastante atípicas no seio institucional. E até mesmo enquanto prática colaborativa e solidária com várias pessoas, portanto isso se calhar poderá ter sido mais visível para as pessoas. Mas isso já existia com outros colectivos, tanto no Colectivo Praga – eu não estou lá desde a fundação – como no Cão Solteiro, na Sensurround, na Casa Conveniente como em muitas outras estruturas que desapareceram ou por asfixia ou simplesmente por mutação de projecto. Portanto, não sei em que sentido é uma grande influência porque eu é que me senti sempre influenciado por muitas coisas. Ao contrário de Harold Bloom não tenho nenhuma “angústia da influência”, pelo contrário acho que é mesmo a contaminação … bom, dizer esta palavra hoje em dia … mas é a contaminação que é importante, que é fundamental. Mas é muitas vezes mal compreendido, ou mesmo mal-tratado. Já o ouvi dizer que isso acontece desde sempre na sua vida. Há duas coisas, uma é a maneira como eu me apresento fisicamente, isso desde cedo foi bastante problemático porque não foi consentâneo com aquilo que era esperado de um rapaz, eu sempre vesti roupas da minha mãe. Mas quando não me apetece “levar com nada” mascaro-me de pessoa – entre aspas – normal. Na maior parte dos dias sou insultado. Conto esta história várias vezes, eu estava na rua com um amigo e disse-lhe que todos os dias era insultado e ele responde-me que isso era com certeza um exagero, nisto passa um carro e ouve-se “eh paneleiro”. Todos os dias é a mesma coisa, há um insulto. Porque a minha indumentária, os meus gestos, a minha apresentação física não se coaduna com uma ideia cristalizada daquilo que é um homem e então há esse lado, que é um lado diário, que infelizmente perdura ao longo de 43 anos. Ainda no outro dia a minha mãe me ligou e disse “espero que não tenhas saído de vestido” – depois do lançamento do livro da Joacine Katar Moreira eu estava de vestido – “porque estamos a atravessar momentos políticos em que isso já não é possível. As ruas estão vazias há uma direita em ascensão”. Com 43 anos ser a minha mãe a ligar-me, preocupada com uma coisa que nunca foi uma preocupação sua, é bastante significativo de uma consciência do espaço que eu quero ocupar e do espaço que a sociedade me está a dar ou não. Depois há um lado, eu não lhe chamo de irreverência mas sim de consciência crítica, em relação a tudo o que me é dito. Eu sou gémeos, tenho este traço de não estar contente comigo próprio, portanto eu também exijo à sociedade estar à altura do não comprometimento com uma ideia fixa daquilo que a sociedade quer para si própria. E tendo isso em conta coloco sempre a dúvida. Alguém me diz que “não se pode fazer assim”, ou que uma determinada coisa “é assim”, e eu automaticamente questiono e tento reflectir as razões que levam a criar determinados tipos de dogma. E depois não tenho pejo em dizer, porque a minha liberdade, a liberdade pela qual os nossos pais lutaram, é a liberdade democrática e de comunicação e não assente numa mediação por gestos vazios, uma espécie de terceira via que é bastante característica de pessoas que cultivaram uma esquerda profunda e que se desviaram para uma esquerda centro; a ideia de um aburguesamento dos ideais e da liberdade, uma higienização dos comportamentos, até críticos, dizia eu, não vou abdicar dessa liberdade conquistada pelos nossos pais e de alguma forma conquistada por mim diariamente através da violência a que estamos todos sujeitos, a que muitos de nós estamos sujeitos, por discordarmos, por nos vestirmos de maneira diferente ou por termos ademanes que não são esperados. Não vou abdicar dessa liberdade. Até ao momento em que tiver que abdicar dela. E depois logo decido se saio de novo, se vou para outro sítio, ou se estou pronto para dar o corpo às balas. Mas não aceito uma ordem de ninguém. E acho que isso é muito comum em muitas pessoas, na verdade eu só estou provavelmente num spot light qualquer, ou estive num spot light qualquer, que permitiu isso ser visível. Mas não acho que a luta seja feita sempre de uma forma visível, há muitas pessoas que estão a fazer a mesma luta que eu, mas uma luta invisível. Em Setembro de 2020, a sua criação Inverted Landscapes apresentada em Berlim, foi alvo (segundo palavras suas) de abuso de poder, xenofobia, queerfobia e racismo, ao serem expulsos da rua por um segurança da Axel Springer. É um forte ataque à liberdade individual e artística. O que é que aconteceu? Tendo decidido deixar de usar o espaço do museu e ir para o espaço público confrontamo-nos sempre com vários problemas em relação ao nosso tipo de comportamento. Muitas pessoas acharam que era indigente apesar de ainda não haver a obrigatoriedade do uso da máscara e mantermos o distanciamento. Havia pessoas que passavam por nós diariamente na rua e nos chamavam inconscientes indigentes etc., por estarmos a ensaiar em jardins públicos. E diziam-no bem alto para serem escutados por uma audiência. Mas essa situação não aconteceu em Berlim? Foi cá em Portugal, no jardim da Estrela e no jardim do Campo dos Mártires da Pátria. Depois em Berlim aconteceu que um senhor, ao ver um homem negro e duas mulheres que não parecem as mulheres icónicas ou que não são consentâneas com uma ideia canónica, a ocupar um espaço público e a “fazer umas coisas esquisitas” expulsou-nos da rua. Expulsou-nos da rua sem qualquer tipo de pejo em dizer que a rua lhe pertencia. Que os monumentos lhe pertenciam, que o prédio lhe pertencia, não a ele mas à Companhia, e que ele estava a zelar por ela. O que gerou uma grande insegurança em relação àquilo que para nós era um território de liberdade. E veio provar de facto – e a performance é sobre isso, Inverted Landscapes – que nós não temos território em lado nenhum. Não há espaço para nós. Há uma historiografia, mas essa historiografia não tem espaço. Pode ter determinadas comunidades que o abraçam determinados “safe spaces” mas são sempre coisas enclausuradas, reservas onde nós nos podemos auto qualificar ou manifestar lá dentro mas que não são transversais à sociedade toda. Quem são esses “nós” de que fala? Pessoas que têm opressões variadas, pessoas precarizadas, marginalizadas etc. As categorizadas “minorias”?! Exacto. Depois o episódio final deu-se quando eu ia a entrar no avião com a Ana Tang e o Paulo Pascoal (actores da performance). A mim, enquanto pessoa aparentemente branca, não me foi colocado nenhum entrave para entrar no avião, mas a Ana Tang e o Paulo Pascoal foram subordinados numa espécie de avaliação da sua nacionalidade e da sua aptidão para entrar naquele voo (Berlim/Portugal) …eu não posso falar muito sobre isso porque na verdade o processo está em tribunal na Alemanha com o caso do Paulo. No caso da Ana, perguntaram-lhe se falava inglês – porque presumiram que ela era “não europeia” – e supõem uma capacidade comunicativa que não é a real. Em relação ao Paulo foi um entrave do princípio ao fim, foi chamado pela polícia, foi levado pela polícia …foi bastante grave. Só porque é negro? Porque é um negro angolano. E viajávamos os três em conjunto. Mas qualquer pessoa que não seja coincidente com os interesses da maioria tem sempre entraves de acessibilidade a recursos e meios. Mas eles não queriam que o Paulo entrasse no voo? Qual a justificação dada? Porque é negro? Sim, porque é negro e angolano e estamos a atravessar uma pandemia por isso não podia ir no voo. Como assim? Eu perguntava “mas se for um americano”? Responderam “um americano é um europeu”. Um americano não é um europeu. Exacto. Foi o que nós dissemos. Muito grave, foi muito grave. Foi mesmo muito grave. Nós tínhamos uma declaração da embaixada e o Paulo tinha um comprovativo de residência. Pedimos para fazer uma chamada para a pessoa da embaixada que nos contratou e que nos passou as declarações e eles não nos deixaram ligar. Estavam sempre a inventar mecanismos e razões para a não inclusão ou aceitação do Paulo no voo; para o expulsar. Mas foi detido? Ele foi detido, entre aspas. Não foi levado algemado mas foi detido pelo SEF. Foi levado para uma sala própria para ser inquirido. Conseguiram trazê-lo? Entrámos no último minuto antes de fechar a “gate”. Foi horrível. Foi mesmo horrível. Disse numa entrevista recente que o próximo passo é a identity bender. “Hoje sou uma cadeira, amanhã sou uma flor. ” É sem dúvida um lugar de total liberdade – o oposto do que aconteceu em Berlim – e eu pergunto-lhe, para si há um Ser e um estamos a ser? Sim, há duas coisas. Eu estou a falar de alguém que já teve capacidade de ter uma identidade firmada, o que não é tão comum assim socialmente. As pessoas negras, migrantes transgénero, a sua identidade ainda não está firmada não têm o seu espaço. E parece-me um pouco impossível poderem sair de uma coisa que ainda não conquistaram ou a que não tiveram direito. Acho que há duas coisas, uma é o meu estado a partir do estado onde eu tenho capacidade de escolha e outra é alguém que não tem capacidade de escolha. Quem não tem capacidade de escolha precisa de ter todos os meios para poder conquistar a sua identidade. Em relação a mim, acho que já tendo uma identidade firmada não porque a quis ter, mas porque me foi dada socialmente, processualmente, legalmente até, o meu trabalho é o mesmo de uma desmontagem de um dogma. Acho que as pessoas podem ser o que quiserem. Mas também podem encarar a sua vida como “estando a ser qualquer coisa” como estando a ser um protocolo de verdade, como estando a ser um protocolo legal, como estando a ser um protocolo médico, etc. Então o meu processo de criação o meu processo ontológico vá, é essa ideia de que “eu não tenho de ser” mas “eu posso estar a ser o que quiser”. E o “estar a ser” está em relação com o mundo. Eu sou o peso de uma cadeira. Os nossos corpos em termos quânticos são isso tudo – já existe – é uma retração, uma simplificação da linguagem para nos entendermos a nós próprios ou para nos espelharmos através de uma imagem. Mas na verdade nós já somos muita coisa, uma matéria descartável dessa força e dessa vitalidade que é a energia e que é a vida. Somos uma matéria descartável disso, nós existimos mas o que conta é o “o que é”, o que está a sair do nosso corpo, porque é aí que a nossa vitalidade, a nossa energia está a surgir, porque o nosso corpo vai lentamente sendo abandonado como uma metamorfose. A minha identidade está relacionada com as várias partes de uma totalidade na qual eu faço uma morfose consoante a minha condição. Quando o meu cão se senta ao meu colo eu sei que estou a ser alguém que tem uma relação com o cão, mas também estou a ser uma cadeira e tenho um propósito uma finalidade. E pronto tem a ver com isso, sair de um dogma daquilo que me é imposto que é “eu sou o André sou um homem branco blá blá blá” e poder sair desse simplismo que é a minha presença no mundo ou a nossa presença no mundo. A arte é em si uma identity bender? Onde tudo é tudo e onde tudo é nada? O sítio para o pensamento?! Sim, é uma ferramenta cognitiva é uma forma de entender o mundo mas que provém de um excesso de tempo e de um excesso de meios. Só quem de facto tem algum tempo livre e alguns meios consegue estar nesse processo em que sai da prisão de ter de estar no mundo de uma determinada forma; a prisão do corpo, a prisão da língua, a prisão da alimentação, a prisão da sociedade, a prisão legal…e acho que a arte é essa saída da prisão. A libertação de tudo? Sim, é dobrar a língua. É partir a língua que aprendeste…é partir a identidade que aprendeste, partir o teu nome, partir a nacionalidade… é partir. É sempre partir. É amplificar uma experiência a partir desses suportes… sim, é isso… ampliar a experiência. A propósito de partir, agora noutro contexto, há um relatório anual da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa que alerta para o crescimento dos discursos de ódio, o aumento do racismo, da discriminação racial e da intolerância. Estão a surgir vários movimentos conservadores, ou ligados à extrema-direita contra a chamada “ideologia de género”; rejeitam a distinção de sexo e género, argumentando que qualquer género separado do sexo biológico não deve ser reconhecido. O que podemos fazer para combater estas ideias? Não sei…é uma resposta que não tenho para dar. Não será uma acção colectiva como foram em anos anteriores … mas pequenas bolhas de mudança. Existem vários grupos activos na reivindicação de direitos e de mudanças e todos eles têm de ser escutados pelo poder e de alguma forma fortalecidos pela nossa presença e pela nossa audiência. Agora …não sei na esfera civil como é que isso politicamente é possível uma vez que a fragmentação que existe na ordem civil existe também no poder. E aí já estamos a falar no âmbito global e geral onde todas as mudanças e todas as reivindicações pequeninas podem acontecer, ou não, mas que não influenciam ou abanam o status quo desse poder. Não sei como é que se faz. Mas tenho tentado estar engajado politicamente e socialmente de diversas formas … mas não sei mesmo como é que isso tem alguma consequência geral a não ser uma consequência prática de os grupos onde os quais me incluo conseguirem conquistar algumas coisas. Pode haver uma mudança através de todas estas mudanças pequeninas mas ainda é muito difícil vê-las e acho que passam por estratégias maiores como repensar a participação social, repensar aquilo que são os meios de comunicação, repensar a responsabilidade na internet individual e também nacional, repensar a economia, repensar a distribuição, repensar a presença exterior de determinados países e a sua relação ou conivência com determinadas formas de agir … muitas coisas que é preciso ir fazendo e que eu acho que estes microcosmos podem ir desencadeando aos bocadinhos. Não acho que a arte tenha de pensar sobre estas coisas, mas acho que a arte que perpetua a lógica que até aqui chegou não é uma arte que sirva neste momento. Não é que seja negativa, mas não é operativa para aquilo que é necessário neste momento. Para terminar, pedia-lhe que desenvolvesse esta ideia que li num post seu. “Um determinado tipo de mundo está a definhar, preso aos seus costumes e práticas de sustentação do seu status quo, mas nós continuamos a ser a seda vibratória impossível de ser detida. Porque até à morte e nela, “A body convulsion / is our dance version”.” Isso fazia parte dos textos do Inverted Landscapes, e tem a ver com tudo isto na verdade. Nós não vamos parar, nós sabemos que estamos aqui numa fase transitória, e que somos simplesmente carne para esta vida ganhar mais força mais eco e, portanto, há uma coisa que é superior a nós. Não precisa do nosso corpo e da nossa voz, temos de ser obreiros dessa força e dessa voz e caminhar para a frente porque ela vibra em nós. Essa mudança vibra em nós, não precisa de nós para nada. Quando já não estivermos à altura daquilo que a vida nos exige, ela abandonar-nos-á mas o nosso sopro vai continuar e a nossa matéria vai continuar, e os ecos das mudanças que fizermos vão continuar para os outros; as conquistas sociais, as conquistas estéticas etc. Então é isso, esta força da vida que é uma seda vibratória. É uma coisa que se mexe sem nós, neste corpo que está aqui entre um espaço e um tempo que habita este planeta. E é isso, esta performance é isso. Não parar. Nós não vamos parar. Mesmo que venha um senhor dizer-nos que não podemos estar ali, que no teatro nos digam que o que fazemos é dança com texto, que os políticos nos digam que nós não podemos existir, mesmo que nos insultem todos os dias na rua, nós vamos avançar. Vamos avançar com as nossas saias, com as nossas cores, com os nossos corpos, com as nossas identidades por conquistar, outras já em completa transformação, vamos avançar. Vamos avançar e não vamos parar. ENTREVISTA Teresa Sobral FOTOS Inês Oliveira