Precipícios interiores

“Lembro-me de ter pensado que

há coisas que só se engolem
com muita fome e uma flor à frente.

Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem

qualquer dia
já nem vai precisar da flor.”
André Tecedeiro

[dropcap]É[/dropcap] a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero. Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles.

No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser “muita coisa”. A estranha do lado de cá, com ironia, respondia, “Eu sei muito bem o que dá para comprar com esse dinheiro.” Seguiu-se um “Nada”, mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco. Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a ser feita em tempo útil.

Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo. Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento.

Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam outros a preparar a nossa comida. Então, porque é tão estranho que alguém no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua. Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim?

A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão, ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher, como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona, transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação, e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias melhores.

18 Abr 2019