António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDeslizes civilizacionais [dropcap]A[/dropcap] forma trivial como Bolsonaro nomeia ministros tornou-se tão deslustrosa que hoje ninguém arrisca “credibilizar” a pasta da Cultura. O que já fora comentado, ironicamente, por Drummond de Andrade, numa crónica. É no livro De Notícias e Não-notícias faz-se a Crônica, num precioso microconto: « — Esse vai ser ministro, sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu. — E você, com esse ordenado micho de servente, tem lá poder pra fazer nosso filho ministro?, duvidou a mãe.» No baptizado, ao enunciar o nome do filho, o personagem de Drummond proclamou: «— Ministro. — Como?, estranhou o padre. — Ministro, sim senhor, teimou o pai, irredutível. A mulher ainda tentou corrigir: — Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente combinou?». Melhor, é impossível. O que era afinal a civilização democrático-liberal? A elegância, a leveza, a dignidade que nos eram consentidas no fluxo do quotidiano e o sentimento de que as instituições funcionavam capazmente (i.é, sujeitas a erros e acertos periódicos) na regulação social; tendo como base valores éticos que protegiam um sentimento de pertença comum. O que se conseguiu à custa da clivagem entre narrativas civilizacionais ou até de guerras e obrigou a novas formas de gerir o conflito e as mediações humanas, tendo mudado inclusive o estatuto das ficções, crescentemento palco de simulações das dinâmicas sociais. Isso mexeu com as próprias formas criativas, deu-lhes pano de fundo, mercados, complexidade, subtileza – refinou-lhe os processos. Vou dar um exemplo extraído de um filme que se encontra no Youtube. Trata-se de Youngs Lions, de Edward Dmytryk, de 1959; conta a história de três tipos: um tenente alemão gradualmente céptico com a razão da guerra e dois americanos que vão servir no exército a contragosto (um cantor da Broadway e um rapaz pobre de origem judaica). O enredo entrecruza os variados pontos de vista acerca do conflito e os elos humanos que nutrem os dois lados da batalha. Marlon Brando é Cristhian, da Baviera, instrutor de esqui, que será um tenente do exército incomodado com a nazificação do espírito alemão. Mandado para Paris, enfiaram-no na Gestapo, com cujos métodos discorda, e pede uma licença ao seu capitão para ir a Berlim. Este, que vê nele um bom militar a quem só falta obedecer sem se interrogar, pede-lhe que entregue uma mantilha de renda preta que comprou à sua mulher e lhe “transmita o seu afecto e como pensa nela constantemente”. Cristhian faz a visita à esposa do capitão. Esta, de uma beleza e sensualidade ímpares, está de saída (vai encontrar-se com um general), mas sugere que a aguarde “pois quer falar com ele sobre o capitão”. Ele fica por deferência, dir-se-ia que o seu gesto se entroniza na aprendizagem da obediência que o capitão lhe quer incutir. Ela volta de madrugada e acorda-o com suavidade. Ele quer compor-se, julga-se numa postura imprópria em casa alheia, mas ela mete-o à vontade e inverte os papéis, perguntando-lhe “se ele não lhe oferece uma bebida”. Depois, en passant, ele queixa-se de não ser soldado e de ter sido posto na polícia (nesta fala abre-se uma ética) e ela confia-lhe que pode mexer os cordéis para o transferirem. Como? Ela, despindo-se, insinua, “com esforço…”. Cristhian compreende que é uma questão de troca de “esforços” e, fiel à transmissão de afecto que lhe pediram que fizesse, satisfá-la sexualmente com uma obediência cega ao acto. O jogo destes matizes subtende uma ironia subtil, feroz, inteligentíssima: a cena vale o filme. À frente, uma segunda cena entre os dois dá-nos a chave do “ethos” de Cristhian. Fim da guerra. Cristhian, que vira o capitão em péssimo estado no hospital, volta a visitar-lhe a esposa. A casa está arruinada e a rua derruida, sob efeito dos bombardeios. Ela fala-lhe friamente da morte do marido, que entretanto se suicidou. Não se mostra alterada e atira-se de novo a ele. Ante as suas reticências, ela pede-lhe para ser “realista”. Cristhian percebe: o que antes se lhe afigurava uma marca de liberdade afinal não passa de um expediente de sobrevivência a todo o transe – mete-lhe agora repulsa a beleza dela, afinal um signo do degradado vaivém dos afectos com que o sistema corrompeu o espírito alemão e lhe ditou a crueldade. A corrupção, percebe aí Cristhian, começa na forma como cedemos aos apetites, lhes obedecemos – paradoxal caminho da derrota. Rejeita-a, e nesse gesto repele a sua anterior cumplicidade com a abjecção. Nas duas cenas, através das peripécias da intimidade, transparece o arco e o declínio de uma postura civilizacional e por isso são magníficas – embora sejam ideias de argumento que Dmytryk se limita a ilustrar. Contudo, para se conseguir esta complexidade das personagens, esta filigrana que oferece vários níveis de leitura para as situações dramáticas e o implícito que abre chaves no jogo psicológico foi preciso uma tradição narrativa que levou séculos a apurar-se e que supunha um modo fecundo de relacionamento com o que seja a inteligência e o modus operandi da criativa ociosidade burguesa. O que está colocado em causa nesta época sombria. Estamos de novo na temperatura civilizacional de onde emerge a mediocridade e a confusão de valores que levou Cristhian a equivocar-se em todas as escolhas políticas. Como acontece ciclicamente, acomodamo-nos à patética fase de exibição narcísica em que não nos rala ficarmos mais tolos, egoístas, e naufragados na iliteracia. Escuda-nos a ilusão de que tudo tem um preço: primeiro efeito do triunfo niilista. A vaga anti-intelectual que sacode os orgãos de comunicação ajusta-se. Trump, que ridiculamente se diz o novo guardião do Cristo Redentor, ao “nacionalizar” as vacinas para o Covid-19 esvazia com isso os valores cristãos que protegiam a validade de uma pertença comum. A contradição não lhe importa, Trump, num lance de poder travestido de nacionalismo espera ter corrompido a vontade dos votos. Assim começam os fascismos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO encontro que nunca mais acontece [dropcap]U[/dropcap]ma das poucas coisas por que ansiava possíveis no meu tempo de vida era finalmente encontrarmos vida inteligente extraterrestre. Quando nasci, em 1974, a última missão tripulada à lua tinha ocorrido há dois anos. A febre das conquistas espaciais, alavancada em grande parte pela guerra fria, dissipava-se lentamente. Ainda assim não faltavam literatura, filmes e séries de ficção científica sobre o tema do espaço e da sua exploração, e sentia-se que de algum modo havia uma equivalência entre a produção de um fantástico aparente irrealizável e os romances de Júlio Verne acerca dos mais incríveis feitos humanos: era uma questão de tempo. Quando se perguntava aos miúdos da minha geração o que eles queriam ser, bombeiros e astronautas estavam no topo das respostas mais frequentes. De algum modo, ambas profissões estavam ligadas por uma espécie de abnegação heróica presente em cada uma delas. A maior parte dos putos conhecia apenas um ou dois astronautas – e provavelmente apenas o nome – e quase certamente nenhum bombeiro. Mas o que fascinava a gaiatada não era o lado concreto e desformalizado destas profissões mas, outrossim, a aura que elas transportavam e que claramente remetia para uma heroicidade com contornos de modéstia: uma propunha-se a salvar o mundo civilizado, uma casa de cada vez; a outra almejava expandir esse mesmo mundo, primeiro dentro dos limites das nossas parcas capacidades tecnológicas “um pequeno passo para um homem, mas um passo de gigante para a humanidade”, nas palavras de Neil Armstrong, mas – e sobretudo – mediante o alargamento ciclópico daquilo que era doravante concebível. Com 45 anos agora e espero que ainda algo longe do dia que sempre chega, já não nutro grande esperança de no meu tempo de vida a espécie humana encontrar qualquer sinal de vida inteligente lá fora. Não é só uma questão de pessimismo estrutural, condição que vai recrudescendo à medida que um tipo se aproxima da morte, mas sobretudo de uma manifesta incapacidade de encontrar quaisquer evidências, sejam estas directas ou indirectas, da presença, nem que seja arqueológica, de uma civilização extraterrestre algures. Apesar da quantidade propriamente astronómica de estrelas no universo que albergam planetas possivelmente habitáveis, não há qualquer notícia de que a vida tenha surgido e evoluído num deles ao ponto de podermos detectá-la. A esta contradição entre termos – biliões de estrelas por um lado, zero notícia de vida inteligente por outro – chama-se paradoxo de Fermi. As razões elencadas para justificar este silêncio ou dormência do universo são muitas. A terra parece ser, de facto, um planeta excepcional, a muitos níveis, e talvez a confluência de motivos pelos quais a vida floresceu neste cantinho não seja facilmente repetível. Talvez as civilizações tenham tendência para se autodestruírem antes de conseguirem explorar o espaço em seu redor – sabe Deus como caminhamos sobre esse fio de navalha há largos anos. Talvez as distâncias cósmicas sejam impeditivas da comunicação: olhar para fora, na perspectiva astronómica, equivale a olhar para trás no tempo, e as distâncias são tão avassaladoras que um pingue-pongue de mensagens trocadas pode facilmente levar mais de mil anos a cumprir-se. Talvez o ponto de vista humano seja tão primitivo que não consegue perceber uma possível presença não tão rara de civilizações extraterrestres evoluídas. Ou talvez estas existam, e em abundância, e nos considerem incapazes de as compreender adequadamente – pelo menos por ora. Talvez sejamos apenas a colónia de formigas de uns tipos que se entretêm a olhar para nós quando não têm mais nada que fazer. Por minha parte, e independentemente da justificação que melhor se adequa ao silêncio do universo, reduzi grandemente as expectativas com a idade e proponho-me a uma tarefa bem mais humilde, ainda que igualmente espinhosa: encontrar vida inteligente aqui mesmo, neste cantinho, coisa que parece ser cada vez mais rara.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasRevisão da matéria dada [dropcap]U[/dropcap]ma reportagem no Notícias, de Maputo, relembra-nos como pode descer o homem, na escala dos ratos. Aí se lê: há mulheres moçambicanas a serem forçadas a actos sexuais em troca de ajuda humanitária, na sequência da destruição causada pelo ciclone Idai. Emergem, em todos os lugares, em estados de crise, comportamentos deste tipo – da Croácia, ao Ruanda, ao Brasil de Bolsonaro: um artista é morto com oitenta tiros e ao Ministro da Justiça só lhe ocorre comentar, “acontece!”. Como em todos os períodos sombrios, flirtamos com o pior da pluralidade humana, à escala global. Uma educação a sério conseguiria inculcar uma maior humanidade, a civilidade, no comportamento das criaturas? Face à insensibilidade de Moro levantam-se dúvidas mas atenuaria o número de ocorrências bárbaras; uma verdadeira educação humanista reforça o respeito pelo outro e a compaixão. Entretanto, li um livro a vários títulos interessante, Le Battement du Monde (A Pulsação do Mundo), um diálogo entre dois pensadores: Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut. O livro surpreende pela actualidade, apesar de ser de 2003, sobretudo no diagnóstico traçado no capítulo O Estádio e a Arena. Vou resumir alguns dos delineamentos aí esboçados. Nada de muito novo, simplesmente bem sistematizado: «Na hora actual, a psicose de massa mediática substituiu integralmente o senso comum, esse maravilhoso órgão de uso democrático da inteligência colectiva». Isto é muito claro para quem acompanha no Youtube a caricata evolução política no Brasil, onde enxameiam os canais, individuais ou colectivos, que pretendem substituir o papel dos media tradicionais. No geral, percebe-se que o que move o homem é a ilusão. Depois, a prática prevalecente (muito mais nos representantes da direita do que nos da esquerda) não é a de esgrimir argumentos mas a de taxar os adversários com etiquetas infamantes ou denúncias moralizantes. Modo de ser que se locomove segundo uma espécie de princípio da razão insuficiente herdado da retórica de guerra (em frívolos mas agressivos jogos de linguagem) fomentada pelos jacobinos no período de radicalização da Revolução Francesa. Eles compreenderam, explicam-nos os autores, que, para sobreviver na turbulência permanente, é preciso ser o primeiro a caluniar. «A calúnia é a primeira arma do povo, ou melhor, dos amigos do povo», e o volume das calúnias urde rapidamente uma “sociedade do escândalo”, a qual garante uma rede à prática da calúnia e nos reenvia para o primeiro teatro da crueldade: o circo romano. «Se, agora, alguma coisa não funciona no sistema mediático mundializado é por causa desta conversão cada vez menos secreta, cada vez menos decente, do espaço público num circo (…) O espaço público é penetrado por dois mecanismos de competição: aquele das acções de opinião e o das sensações circenses. Nos nossos dias, a questão é de saber se existe uma vida fora do circo. A maior parte dos nossos contemporâneos responderá pela negativa. Eles estão convencidos que só o circo proporciona a vita vitalis, essa vida desdobrada de um sentimento de significação». Acresça-se a isto, que decalca o que se passa (eles terem-no detectado em 2003 só confirma que há várias velocidades na globalização), duas outras características concomitantes: A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa. Repare-se em como o circo da opinião dos canais se transforma numa caça ao níquel. Quem mantém um canal lucra na proporção do número de likes e de visitas; daí que seja preciso dramatizar, acrescentar elementos de sensacionalismo à matéria, para que o vídeo seja mais impactante. Rapidamente as mensagens se convertem em slogans e os argumentos preterem à verdade os efeitos da retórica. O que imita a lógica televisiva. Quando vejo o Olavo de Carvalho a perorar para as centenas de milhares de pessoas inscritas no seu canal, e a usar-se da soberba que o faz afirmar ser o único escritor brasileiro que conhecerá a posteridade, tentando convencer os seus fiéis sobre o geocentrismo e que o Einstein era “um babaca”, só me lembro daquela questão de Brecht: “Que é roubar um banco, comparado com fundá-lo?”. Esbateu-se a consciência do valor civilizacional, o sentido do respeito pelo adversário e as boas regras intelectivas. O que faz a grandeza das personagens num filme como A Grande Ilusão, de Renoir? A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa Aquilo que parece uma ideia inócua a borbulhar numa proveta burguesa, é mais sério do que se afigura. Não apenas à superfície isso sustente a vaga de anti-intelectualismo que vemos emergir por todo o lado, como é sintoma disto: «Os novos denunciantes, no momento do insucesso, tentam mudar as regras do jogo. É isto, o fascismo. Deixa-se cair as boas maneiras do combate quando se compreende que na arena actual há risco de se perder a vantagem. Produz-se então um último esforço desesperado para negar a derrota. É por esta via que o terrorismo jacobino se volta a instalar na nossa cultura.» Onde fica a ética no meio desta amálgama de tudo ao molho e fé na calinada? Talvez um princípio dela seja esboçado pelos autores quando defendem: «(…) é preciso reformular um código de combate, implicando o cuidado do inimigo. Quem não quer ser responsável por um inimigo já cedeu à tentação do tanto pior melhor. Querer ser responsável pelo seu inimigo: o gesto primordial de uma ética civilizadora dos conflitos. Se a forma do “celerado” é a única maneira de conceber o inimigo, aí estamos já embrulhados no massacre imaginário.» Será isto entendido por poucos, paciência. Começa-se sempre por poucos. Na Grécia antiga inventaram-se os Jogos Olímpicos como uma emulação da violência e a competição agónica substituiu a guerra. São de soluções deste tipo – que implicam um reforço da simbolização, i. é de um retorno da astúcia, da persuasão, da inteligência e da capacidade interpretativa articuláveis no espaço público, contra a literalização cognitiva e a calúnia que aí se jogam – que o futuro necessita para se proteger.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs idiotas úteis [dropcap]A[/dropcap] penúltima cena do filme Sicario, de 2015, mostra um dos protagonistas da história, um advogado de acusação mexicano chamado Alejandro Gillick – protagonizado por Benicio del Toro –, a participar numa operação da CIA que culmina na invasão da mansão de Fausto Alarcón, capo de um dos cartéis de droga mais sangrentos do México. Alejandro, separado da equipa da CIA que lhe permitiu descobrir o caminho para a casa de Alarcón, tem um motivo muito pessoal para não desistir da perseguição: este, quando Alejandro era um incómodo advogado de acusação, mandou matar-lhe a filha e a mulher. Quando chega à mansão de Alarcón, Alejandro encontra-o a jantar no jardim, tranquilamente, com a sua mulher e os seus dois filhos adolescentes. Fausto Alarcón, reconhecendo o antigo advogado de acusação e os motivos que o levam a estar ali, diz: “à frente dos miúdos, não”. Alejandro, como resposta, mata a mulher e os filhos de Alarcón antes de atirar sobre o capo di tutti capi. Brazil, 2018. Bolsonaro terá sido eleito chefe de Estado da República Brasileira ontem mesmo. Multiplicam-se as dezenas de análises políticas versando sobre as condições que levaram a que isso pudesse acontecer. Uma coisa é clara: muitos daqueles que votaram Lula e Dilma em eleições anteriores votaram agora Bolsonaro. O povo brasileiro, diz-se, ou ensandeceu ou eclodiu em fascismo. Não sendo politólogo, graças a Deus, posso avançar com o meu bitaite descomprometido de necessidade de rigor conceptual acerca do que vem acontecendo um pouco por toda a parte no mundo ocidental. Os partidos de consenso – o centrão, como sói dizer-se – têm vindo a distanciar-se cada vez mais uns dos outros e dos cidadãos. A política do possível, aquela que aproxima a vontade de partidos de eleitorados distintos e que permite a negociação de interesses opostos, foi substituída pela política de claque: confrontos hostis entre forças de esquerda e de direita fazem com que a zona de consenso tenha sido terraplanada. Ao invés de negociações e permutas, que fazem a democracia funcionar sem sobressaltos, porque se atendem a petições de sectores muito diferenciados da sociedade, temos imposições de agendas únicas: a esquerda é cada vez mais esquerda (ainda que esta esquerda de causas e de identidades não seja a esquerda de há 50 anos) e a direita cada vez mais direita. E ambas são cada vez mais surdas às necessidades de quem não lhes pertence ideologicamente. O bom senso deu lugar à radicalização. As razões de fundo a razões de forma. O apelo à calma ao apelo à turba. Há cada vez mais eleitores a não se sentirem representados por ninguém. A sentirem-se injustiçados. Há cada vez mais pessoas solidárias com o gesto aparentemente redentor de Alejandro Gillick. Frente a Fausto Alarcón, frente ao sistema que as injustiçou e que as torna mais indefesas e minúsculas que formigas à mercê de uma bota, há cada vez mais pessoas que não têm dúvidas: antes o fascismo, antes a anarquia, antes o sangue do que isto. Do que este estado ignominioso de coisas que parece beneficiar apenas e sempre os mesmos. Os do sistema. Os votos em Trump e em Bolsonaro são votos anti-sistema. São votos anti-surdez. São votos de um profundo desencanto com o estado de decomposição a que o sistema e a política que o sustenta chegou. E não perceber isso, rotulando de doidos ou de fascistas inúmeros milhões de brasileiros e de americanos que elegem fascistas ou extremistas, é não perceber sequer porque é que o vizinho insiste em não pendurar a roupa do avesso. É estar tão intoxicado de superioridade moral que se dispensam todas e quaisquer perguntas ao outro e às suas razões. Chegamos terrivelmente a este ponto por nossas próprias mãos, quando nos convencemos de que o outro – e não estou a falar dos fachos e dos nazis, que são uma minoria – é apenas um idiota útil a quem não endereçamos perguntas, mas reprimendas, quando ele age como não esperamos ou queremos que ele aja.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasUma história de outro mundo [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ra um pequeno planeta muito semelhante ao nosso, no qual hominídeos em tudo semelhantes a nós tinham chegado ao topo da cadeia evolucionária e alimentar. Tinham aprendido muito cedo a dominar a natureza; faziam chover onde era necessário chuva, o sol acontecia onde era necessário o sol acontecer e debelavam tempestades e terramotos com comandos vocais que accionavam complexas contra-medidas. Tecnologicamente, eram muito mais avançados do que somos hoje. Como tinham inventado o teletransporte, não havia acidentes de trânsito ou engarrafamentos. Mas, como contrapartida, não havia ninguém na rua ou nas praias, ou junto dos lagos e das montanhas. As pessoas eram transportadas de uma casa para outra casa, consoantes as suas necessidades. O trabalho tornara-se obsoleto. O complexo industrial de produção de tudo quanto podia ser produzido entrara em autogestão. Não havia guerras, não havia doenças, não havia poluição. Quando as pessoas morriam, eram desintegradas e convertidas numa sopa de partículas que reencontrava o seu lugar no universo. Existia um Deus, embora fundamentalmente não interventivo, ao contrário do nosso. E esse Deus estava tão velhinho que a sua omnipotência já não era o que a omnipotência deve ser. Já não conseguia, por exemplo, ver dentro de espaços cujo revestimento fosse sólido. Esta aberração óptica – comum a muitas divindades de provecta idade – aliada à tendência de recolhimento que progressivamente se instaurara naqueles hominídeos, faziam com que este Deus desfrutasse cada vez menos da sua condição divina. Era como ter um formigueiro de estimação num terrário, em casa, no qual as formigas evitassem teimosamente fazer túneis junto dos vidros. Tremelico – tanto quanto uma alma pode tremer – e míope, Deus contentou-se durante alguns milénios em olhar para aquele mundo tão organizado e funcional como uma criança olha para as luzes de Natal. À medida que o planeta rodopiava sobre si próprio na órbita de um sistema binário de duas estrelas anãs brancas, as cidades que deixavam de receber luz solar acendiam as múltiplas luzes pelas quais pintalgavam a superfície do planeta imersa na escuridão. Mas um dia, Deus desconfiou. E quando um Deus desconfia, a desconfiança tem um tamanho e alcance incomensuráveis. E se as criaturas dele tivessem perecido de uma qualquer doença arqueológica incapaz de ser debelada mesmo com recurso às tecnologias de que dispunha esta civilização? E se tivessem sido involuntariamente envenenados? E se tivessem pura e simplesmente renunciado àquela vida completa e perfeita em todos os sentidos menos no da imortalidade (o único atributo que Deus optara sempre por guardar exclusivamente para si próprio)? A dúvida e a desconfiança entranharam-se como uma nódoa, e Deus não mais conseguiu ter sossego. Incapaz de perceber, pelo estado muito condicionado da sua audição e da sua visão, a verdadeira condição daqueles a quem chamava seus, o divino entregou-se a um desespero lento como quem se entrega à bebida. Deixou de ter vontade de ser, o que, para Deus, implica conseguir, de facto, não ir sendo, e, como uma estrela que parece infinita e intemporal até perecer, por vezes numa explosão frouxa e morna, Deus deixou-se ir até se anular. Passados apenas alguns dias, as pessoas começaram a sair das suas casas.