“Hotel Império” | A cidade imaginária de Ivo Ferreira em destaque no MIFF

“Hotel Império” não é um filme sobre uma Macau real, mas sim o resultado da percepção do realizador, Ivo Ferreira, acerca da cidade onde vive há mais de 20 anos. Esta é premissa deixada pelo cineasta ao HM acerca da película que está entre os dez filmes recomendados pela 3a edição do Festival Internacional de Cinema de Macau. “Hotel Império” é apresentado dia 11 de Dezembro, às 21h30 na Torre de Macau

[dropcap]D[/dropcap]epois da estreia mundial no Festival de Cinema de Pingyao, em Outubro, e de ter sido apontado como um filme “excepcional que dá uma visão única de Macau” pelo director artístico do Festival Internacional de Cinema de Macau, Mike Goodridge, “Hotel Império” de Ivo Ferreira está em destaque no programa da 3.ª edição do maior evento local dedicado à sétima arte a decorrer a partir de amanhã, até dia 14, e que tem projecção marcada para a próxima terça-feira, na Torre de Macau, pelas 21h30.

O filme é uma produção portuguesa e chinesa que traz ao grande ecrã “a cidade e as relações que nela se estabelecem”, começa por dizer Ivo Ferreira ao HM.

Mas não se trata de uma Macau comum e capaz de ser identificada por todos, é antes um território que aparece como resultado de uma interpretação imaginária que o realizador foi construindo. “É uma visão, uma espécie de ideia possível de Macau. Eu não sei o que é Macau, não sei quem são as pessoas. Tenho apenas ideias sobre isso”, aponta.

Em “Hotel Império”, a cidade é “uma espécie de colecção destas ideias que tenho desde os 18 anos, altura em que cheguei cá pela primeira vez”, refere. Duas décadas a viver em Macau permitiram a Ivo Ferreira assistir às transformações do território, e como tal, o filme apresenta também “a forma como o olhar foi mudando ao longo dos anos. É um mundo inventado, uma Macau fora do tempo ancorada em ideias dos anos 90 e em ideias de futuro”.

“[Macau] Tem uma atmosfera muito especial e apesar de tudo há uma espécie de fragrância a melancolia que será, talvez, uma coisa deixada pelos portugueses e que às vezes parece contaminar os espaços.”

IVO FERREIRA REALIZADOR

IDENTIFICAÇÕES DE LADO

O objectivo do realizador em “Hotel Império” não é uma aproximação do real até porque as pessoas que vivem em Macau não vão, na sua grande parte, identificar-se com o que poderão ver, considera. O que Ivo Ferreira pretende é que o público se “entretenha, em vez de ir à pro- cura dos pontos de contacto com a realidade, ou que tente procurar uma pureza dessa Macau que cada um pensa que conhece”, aponta.

De acordo com o realizador português, o cinema não é para ser feito como retrato da verdade, “e mal do cinema se fosse”, até porque “para esse efeito existem géneros muito específicos como o documentário ou determinadas ficções”, aponta.

“‘Hotel Império’ retrata uma Macau que se desenha muito na possibilidade ou da impossibilidade das personagens que habitam aquele espaço e das suas relações”, sublinha Ivo Ferreira.

PALCO DE POUCO CINEMA

Imaginado ou real, o território é um espaço apelativo para fazer cinema. “Tem uma atmosfera muito especial e apesar e tudo há uma espécie de fragrância a melancolia que será, talvez, uma coisa deixada pelos portugueses e que às vezes parece contaminar os espaços”, diz o realizador.

No entanto, não é fácil fazer filmes por cá, e talvez por isso as películas que têm o território como pano de fundo ainda sejam poucas. “A quantidade de vezes que Macau aparece em filmes é irrisória se com- pararmos com outras cidades como Hong Kong, com Lisboa ou com Pequim”, sendo que esta ausência da sétima arte “não é por acaso, com certeza”, aponta.

As dificuldades em produzir cinema no território sentem-se em vários aspectos, e reflectem que Macau é “uma cidade pouco habituada a ser filmada”, o que se vê “nas questões ligadas a autorizações de filmagens com as questões que têm que ver com o próprio tráfego da cidade, por exemplo”, lamenta o realizador.

Mas as circunstâncias podem mudar e o Festival Internacional de Cinema, que teve início em 2016, pode representar uma alavanca nesse sentido. “Aliás, Macau começa a ser falada por causa do festival a já está no mapa da sétima arte. Trata-se de um marco importantíssimo para a imagem do território no exterior e para os realizadores locais”, sublinha.

Por outro lado, a promoção do cinema feito localmente “é uma forma de dar uma imagem da cida- de que vai para além do jogo e dos casinos. Uma imagem que esteja mais ligada à identidade do lugar e que passa pela cultura”, acrescenta Ivo Ferreira.

Não menos importante é o contributo que este tipo de eventos pode trazer para a formação dos próprios residentes, sendo que “contribui para a sua formação intelectual e estabelece um maior contacto com o que se passa no resto do mundo e até dentro do próprio território”, remata.

10 Dez 2018

O cinema em Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo contemporâneo vive numa afirmação dupla, por vezes paradoxal, entre local e global.  O cinema mais localizado do que local é a indústria-arte do séc. XXI. Desde sempre viu a difusão internacional como o território de excelência sem esquecer  a dimensão doméstica, ou dito de outra forma, o reconhecimento afectivo por parte do público do país de origem.

A produção cinematográfica exige sempre técnicos, actores, realizadores e escritores especialistas de argumento nos países, ou locais, de produção. Mas exige também, por diferentes razões de decisores públicos, políticas próprias, pensamento institucional.

Arte moderna por excelência,  o cinema nasceu com a modernidade, seja enquanto meio de narração, seja enquanto território de experimentação, seja documental, ou cinema de publicidade, o cinema foi e é construtor de visões,  comportamentos, atitudes, de formas de olhar o eu e o outro.

Diz Deleuze, seguindo uma tradição que remonta a Ovídio nas “Metamorfoses”, que as imagens não são duplos das coisas mas as coisas em si mesmas. As imagens são propriamente as coisas do mundo, e se assim é, o cinema não é o nome de uma arte-indústria, “ é nome do mundo”

É certo que o mundo não precisa cinema, ( o cinema tem 122 anos, é recente na sociedade humana), mas o homem precisa, a construção de narrativas, é determinante e necessária na construção do mundo humano.

Macau, é actualmente um dos laboratórios de ensaio dos rápidos processos de mudança  social que são vividos na grande China inventora do mais novo regime de organização política do Estado, que se consagra na formulação “um país, dois sistemas”. Por razões de identidade que resultam da sua particular história, é plataforma escolhido pela RPC para o desenvolvimento das relações económicas, políticas e culturais com os países do mundo lusofonia.

Desde sempre Macau foi uma cidade porto, lugar de chegada, partida e abrigo, de duas zonas do mundo culturalmente diferenciados, a Europa e o Oriente. Em particular foi e é o lugar de excelência para encontro e conhecimento entre Portugal e a China. Esta característica é fundadora da identidade da cidade e continua relevante hoje, neste tempo de novas configurações das Dinâmicas Sociais Económicas e Geopolíticas.

Vem isto a propósito dos continuados ensaios que são visíveis na direcção da construção de instrumentos que visam posicionar Macau enquanto cidade criativa, em que o cinema tem necessariamente um lugar a desempenhar.

Também na actividade cinematográfica Macau pode desempenhar um lugar único em que Ocidente e Oriente se cruzam, misturam, recriam. O já próximo Festival Internacional de Cinema de Macau começa com alguma turbulência com o abandono do consagrado director Marco Muller, no entanto, é de prever que o Festival se afirme relevante no quadro competitivo dos Festivais Internacionais de Cinema classe A.

Contribuirá em muito para visibilidade internacional do território. Quanto ao seu impute no desenvolvimento da indústria cinematográfica em Macau terá também obviamente relevância, no entanto, olhando os quadros de apoio ao cinema actualmente desenhados, verifica-se a ausência de legislação pensada para a co-produção, seja com os países da Lusofonia ou de outras geografias. Os concursos públicos existentes têm a obrigatoriedade do estatuto difícil da residência na RAEM, se por um lado este fechamento parece não corresponder à especificidade de Macau enquanto lugar de encontro e abertura aos diferentes mundos do mundo, também não está de acordo com o que o desenvolvimento da indústria cinematográfica no modelo de produção independente precisa, instrumentos facilitadores à co-produção. A co-produção, e talvez importe referir que há várias possibilidades de regular no interesse do desenvolvimento do cinema no território esses mecanismos, é seguramente uma das formas que mais pode contribuir para o desenvolvimento da actividade cinematográfica no território. Paralelamente parece igualmente interessante e possível a criação de uma licenciatura, embrionária de uma futura escola de cinema, na Universidade de Macau. São medidas estruturantes que cabem a quem pensa as estratégias de desenvolvimento da cidade, neste tempo que, como afirmou Elia  Kazan em 1986, “os filmes são o diálogo do mundo de hoje”.

21 Nov 2016