A eles!

Por Carlos Coutinho

 

Na praça com o seu nome, em Zamora, encontrei há muitos anos um Viriato de bronze em cima de um pedregulho enorme, com um carneiro gigantesco à sua frente, também de bronze, ao qual indicava em que direção seguir para bem marrar em todos os romanos que encontrasse pelo caminho.

Por tática de combate, a portentosa cornadura do combatente lãzudo escondeu-se atrás da coluna do gradeamento de proteção ao monumento, quando o sol incide pela direita. Eu é que não consigo esconder a minha vergonha por andar uma vida inteira a acreditar que o Viriato de pedra que está em Viseu é o mesmo e foi um genuíno lusitano nascido nos Montes Hermínios, a que hoje chamamos Serra da Estrela.

Fui averiguar e comecei por descobrir que, já em 1997, o historiador Carlos Fabião, no seu ensaio “O Passado Proto-Histórico e Romano”, que inicia o vol. I – “Antes de Portugal”, no extraordinário estudo panorâmico coordenado por José Mattoso, desmontava por completo o mito patrioteiro.

Na verdade, tanto Alexandre Herculano como Oliveira Martins, já no século XIX, tinham desautorizado com boa argumentação esta lenda engendrada do século XVII para legitimar o direito de Portugal à independência, mas foi preciso aparecer outro estudo, este bem mais recente, assinado por Ricardo Raimundo, para eu ficar a saber que a falácia, apesar de salvífica e muito portuguesa, tem raízes bem mais antigas.

Afinal, Viriato parece ter existido, mas era tão pastor como eu. O seu nome deriva do ibérico viria que significa pulseira e é uma abreviatura do céltico viriola. Ou seja, viriato é um portador de pulseiras no braço, como os atuais portugueses de crenças inimagináveis e pouco cuidado higiénico.

As primeiras fontes com referências insistentes a Viriato são do século I a.n.e., da autoria de Possidónio e de Diodoro, que falam de um “herói puro e justo, porque nasceu e viveu em ambientes selvagens, não corrompidos pela decadência que a civilização acarreta”.

Julga-se que Diodoro se limitou a dar mais substância à mentira piedosa de Possidónio e Carlos Fabião considera que do cruzamento dessa primeira historiografia com os textos posteriores de diversos autores greco-latinos, pode concluir-se que Viriato teria existido, de facto, e nascido na Lusitânia, não havendo qualquer “Monte Hermínio” associado ao chefe-antirromano e, muito menos, às Guerras Lusitanas, como acabei por verificar em Zamora.

Esse mito deve ter engrossado no século XVI, em pleno renascimento e florescimento humanista, por especial atuação de Sá de Miranda e também de Luís de Camões. Só que isto é pano que dá para muitas mangas, o que não é objetivo destes modestos e pouco ambiciosos apontamentos e, como já pus os pontos nos is, vou apenas acrescentar que quem mais contribuiu para a apropriação lusíada do herói foi um alemão, o desinteressado Adolf Schulten, com o seu “Viriato” traduzido para português em 1927, quando a Espanha reclamava a sua origem ainda hoje assinalada na cidade onde Afonso Henriques foi assinar as condições do nascimento de um novo reino na Ibéria.

A historiografia romana, ao mexer nas Guerras Lusitanas, apontam a sua geografia para uma vasta região do Centro e do Sul da Espanha, muito mais próximos da civilização e dos núcleos urbanos mediterrânicos. Aí, Viriato, um grande terratenente grupal, teria sabido movimentar-se com grande mestria, sobretudo, pelo conhecimento que tinha da região. Provavelmente nem quereria ouvir falar dos selvagens dos Montes Hermínios nem das falsas e brumosas praias atlânticas.

É verdade, no entanto, que Frei Bernardo de Brito, na sua obra “Monarquia Lusitana”, apesar de sujeito ao domínio filipino, e, mais tarde, Brás Garcia Mascarenhas, no seu “Viriato Trágico”, escrito durante a Guerra da Restauração, ligam diretamente os portugueses a Viriato, mas é fácil perceber porquê. Ou não é?

O que não é fácil perceber é eu ter andado quase uma vida inteira a ser tão aldrabado pelos professores e pelos livros do ensino oficial. Nesta e sei lá em quantas falsidades mais.

À tarde

Gostaria de poder estar hoje em Havana, que mais não fosse, para levantar o meu copo a Silvio Rodríguez que faz 76 anos e, seguramente, nunca se arrependerá de ter vindo ao mundo e haver feito o que fez. Pela parte que me toca, não posso deixar de confessar a gula e o enternecimento com que sempre o ouvi em canções agora agrupadas em álbuns como Días y flores, Mujeres, Oh, melancolia, Descartes, Para la espera e certamente outros.

Silvio Rodríguez Domínguez nasceu em San Antonio de Los Baños no dia 29 de novembro de 1946, é músico, compositor, poeta e cantor, cedo se tendo afirmado como alto um expoente da música cubana surgida com a revolução. É dos cantores cubanos contemporâneos de maior relevo internacional, criador da ‘trueba nueva’, com Pablo Milanés, Noel Nicola, Vicente Feliú e outros músicos do movimento Nova Trova Cubana.

Notabilizou-se nacional e internacionalmente como um bom poeta lúcido e inteligente, um criador capaz de sintetizar o intimismo e os temas universais com a mobilização e a consciência social. Até eu, que não engulo tudo o que me põem no prato, me tornei seu fã.

Consta de uma curta biografia sua que, perante a morte do Che Guevara, compôs La Era Está Pariendo un Corazón e Fusil contra fusil, canções que incluiu no disco coletivo Hasta la Victoria Siempre. Nos inícios dos anos 70, junto com Pablo Milanés e outros que mais tarde iriam fazer parte da Nova Trova, integrou o Grupo de Experimentação Sonora.

Desta altura são algumas gravações como El Papalote, Cuba Va (um curioso rock cantado com Pablo Milanés e Noel Nicola), De la Ausencia y de Ti, Velia, El Mayor, Granma (obra coletiva), Oveja Negra, Si Tengo un Hermano, etc. canções editadas, anos mais tarde, em discos como Los Tres del Gesi, Cuando Digo Futuro e Memorias.

Em 1972, fez uma ’tournée’ pela Alemanha e pelo Chile, onde partilhou o cenário com Isabel Parra (filha da famosa Violeta) e com Víctor Jara, o herói chileno cruelmente assassinado no ano seguinte após o golpe de Pinochet.
Silvio publicou em 2010 o disco Segunda Cita (Segundo Encontro) que inclui a canção Sea, señora, uma homenagem às conquistas da Revolução Cubana, que “têm de evoluir sem se esquecer os seus princípios socialistas”, considerou, então. Vejam só… O que eu sou capaz de respigar, quando um assunto qualquer me impressiona…

À noite

Faz hoje 1222 anos que Carlos Magno chegou a Roma para investigar pessoalmente os crimes do Papa Leão III. Se fosse hoje não podia sequer sair de França, porque estaria muito ocupado com o julgamento de 12 cardeais e bispos a contas com a Justiça, por abuso sexual de menores.

Não imagino o que seria a minha mentalidade naqueles séculos remotos em que certos reis mandavam nos papas e tenho quase a certeza de que seria tão perturbador como hoje, quando percebo que os papas mandam em certos reis e ainda em mais presidentes. O que tem como resultado visível o haver tantos pedófilos e predadores sexuais que vivem no melhor dos confortos e nunca se encontrarão a contas com a Justiça.

É certo que um milénio depois de Carlos Magno, o nosso Afonso I, para ser de jure rei, teve de ir a Zamora subscrever as condições que um papa muito cioso do seu total arbítrio ‘a divinis’, mandou o Cardeal Guido de Vico levar o pergaminho iluminado e em duplicado que o façanhudo filho de Teresa e Henrique teve de assinar juntamente com o representante do seu primo também Afonso, mas o VII, de Leão, aceitando com tais rabiscos ficar vassalo da Santa Sé.

O Papa que, além do mais, também passava a esportular um pesado censo anual, era um tal Alexandre III que, para o efeito congeminou a Bula Manifestis Probatum. Mas Leão era também aquele papa florentino que, apesar de ter nascido Giovanni di Lorenzo de Medici, não se coibiu de ser o X e levantar uma sangrenta Contrarreforma, em resposta à Reforma Protestante de Lutero. Assim como outro Medici, o XI, que pontificou menos de um mês, e o XII, que era de Ancona e também esteve no trono menos de seis anos. Com o XIII a coisa já foi diferente, porque este último Leão da série viu a sua Igreja expropriada de riquezas incomensuráveis e, apesar disso, optou pela moderação e a diplomacia na sua resistência, morrendo muito triste em 1903.

Depois vieram os Pios e os Paulos. Pio X reagia à bruta a tudo que lhe cheirasse a modernismo, Pio XI, um militarão frustrado, criou a Ordem da Cavalaria Papal e Pio XII, além de ser no século XX o único papa a usar o dom da infalibilidade papal, foi núncio na Baviera, onde conheceu Hitler, com vantagens para ambos. O ‘führer’ sabia muito bem com quem estava a lidar e, pelo sim pelo não, ameaçou-o de sequestro.

Nessa eventualidade, disse o Papa à Cúria, a sua captura pelos nazis “implicaria a resignação imediata e a eleição de um sucessor, devendo os prelados refugiar-se num país seguro e neutro, Portugal, por exemplo”, onde o Cardeal Cerejeira e o Salazar mostravam ser católicos e profundos respeitadores dos direitos humanos.

Pior do que isto só aquele Paulo que foi o VI e um obcecado devoto mariano, discursando repetidamente a congressistas marianos e em reuniões marianológicas, visitando santuários marianos e publicando três encíclicas marianas. A Humanae vitae veio, aliás, em continuidade da Constituição Pastoral Gaudium et Spes que em dissonância com o próprio Concílio Vaticano II, deixou expresso no capítulo que trata da família que se haveria, “na regulação da natalidade, de recorrer à castidade conjugal”.

Assobiou para o lado enquanto sob os seus auspícios uma operação de salvamento de criminosos de guerra nazis, que ficou conhecida como a Rota dos Ratos, encaminhava para as Américas do Norte e do Sul mais de 1 200 criminosas de guerra e, entre eles, os famosos Eichman, Mengele, Rauff, Wächter, Barbie, Altmann e outros que conseguiram fugir à Justiça, recorrendo à ajuda de membros do Vaticano e da Cruz Vermelha.

Mais astucioso e persistente papa, só outro Paulo, que, além de II, também foi João, um polaco de Wadowice nascido Karol Józef Wojtyła, que em 26 anos de pontificado logrou derrotar o socialismo institucional do pós-guerra, liderando apostolicamente uma organização alegadamente sindical e acabando canonizado após a nova Europa que ajudou a criar e a preparar para guerras e morticínios só ultrapassados pelas forças hitlerianas.

É santo de grande devoção para uma parte muito considerável de ucranianos, precisamente os que em tempos foram dominados pela Polónia expansionista.

Cuidado com os mergulhos no oceano da História, porque podemos apanhar sustos destes e não serve de nada queixarmo-nos ao Marcelo ou ao Costa.

A eles!

30 Nov 2022

Voltando ao carmim

Também podemos imaginar o que seria ser mulher no tempo de Artemisia Gentileschi pelo carmim que a grande pintora italiana, contemporânea de Vermeer, usou na construção do seu “Autorretrato” pintado em Nápoles entre 1638 e 39 (óleo sobre tela, 96,5 x 73,7 cm) e que agora podemos ir ver a Londres em The Royal Collection da National Galery, onde está desde 16.2.2018.

É certo que Artemisia prefere um denso azul mediterrânico para o lenço que lhe cobre parte da cabeleira loira, o seu nariz é idêntico na forma e no ângulo de captura ao da rapariga do holandês de Delft e o queixo de ambas não comporta a erótica covinha que faz o misterioso apelo estético de tantos rostos femininos, tanto em humana carne como em pintura.

Também o subqueixo difere, existindo apenas na terna Gentileschi, e, nesta, a mão que guarda uma espécie de adaga vegetal tem a doçura suprema imaginável em certa exterioridade juvenil, seja na forma das unhas, seja na fisionomia viva dos dedos.

Mas as pupilas mostram, em ambos os casos, a líquida janela que dá para um mundo insondável, lá atrás, talvez muito lá atrás, em que apenas difere a tonalidade da substância carnal da íris. Só que a obliquidade dos lábios fechados e a sua carnação irresistível à fúria de um impulso voluptuoso apenas cede à frescura do carmim que é tão promissora em Artemisia como em Vermeer.

O resto é um conjunto muito coerente de tons rosa e encarnado que talvez na Holanda não existissem, mas que em Nápoles abundam muito variadamente, com o sol local que se alarga e vibra entre as portas de Hércules, a oeste, e a Creta helénica ou mesmo perto dos sonhos de Gilgamesh que precedem o deserto.

Se eu fosse perito em qualquer das disciplinas que atacam na área cada vez mais indefinida das artes plásticas, ou mesmo na vastidão já degradada da História da Arte, estaria agora ocupadíssimo com alguns destes pormenores do “Autorretrato” e a relacionar a especificidade orgânica de Caravaggio, Rembrandt, Rubens, Velasquez, Van Dyck, Poussin, ou Murillo e mais alguns, sobretudo na Espanha.

Talvez até enfrentasse o risco de ir ver imagens da recém-falecida Paula Rego, Vieira da Silva, Frida Kalo, Mary Kassatt, Leonora Carrington, e, acima de tudo, da genial Sofonisba Anguissola, assim como de Berthe Morissot, Elisabet Sonrel, Suzanne Valadon, Anne Fragonard, Elisabeth Louise de Vigée-le Brun, que retratou Marie Antoinette.

É possível uma explicitação tão rigorosa da futilidade real, na Franca rococó ou em qualquer outra corte europeia?
Mas fico-me por este deslumbramento pessoal que, por ser meu, chega e sobra para continuar completamente indefeso perante o poder da beleza.

29 Nov 2022