João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasCarga d’água Horta Seca, Lisboa, quinta, 2 Setembro Sucedem-se os almoços que alimentam dias inteiros. Os que se propõem prolongar agendas, acertar detalhes e definir convites, fazer pontos-de-situação, do mais estranho em dias lassos, ponto-pé-de-cruz em trapos. Também os há em que do inesperado fazem desabrochar ideias, esses cães raivosos que não deixam de me atormentar a apatia com os dentes afiados da possibilidade. Deu-se com o Nuno [Miguel Guedes], com o Nuno [Ramos de Almeida], com o André [Letria], com o Carlos [Querido]. Ele são podcasts de intensa sensibilidade, revistas de máxima urgência, livros grávidos de oportunidade, projectos-projéctil, promessas de alta magnitude na escala de Richter. Outros encontros nascem destinados tão só a retomar melodias de normalidade, cantarolar encontros e lamentações, que as alegrias vão sendo raras. A doença atravessa-nos tal fantasma de lenda, arrastando penas e ameaças, para nos deixar bombas no colo, que acariciamos até explodirem. Depois sentamo-nos com o Agostinho [Jardim Gonçalves] e a vida parece-nos outra, feita de uma tranquilidade que não aquieta as dúvidas, que não ignora as indignações, invariavelmente atenta ao outro e ao Mundo. Um vivíssimo olhar de riacho a suscitar paisagens, oriundas de riquíssima memória ou projectadas em horizonte cheio de sopro. E sentido. Parque Eduardo VII, Lisboa, sábado, 4 Setembro Vão passeando os numerosos cães e os comentários, uma ou outra palavra de incentivo, mas também piropos grosseiros e passagens ao largo para evitar encontros de maus fígados (as máscaras poupam alguns da má cara). Quase se perdeu o hábito de saudar quem está ali de pé ao serviço, de súbito transparente. Também se atiram dúvidas que tamborilam com o pó ininterrupto sobre as capas da livralhada: conselhos de leitura, acerca de um autor, de planos, mas a pergunta campeã, de longe, tem a ver com preços baixos e ainda mais descontos, com a adesão à mística Hora H. Tantos anos a inundar mercados com ideias acocorados dá nisto: saldos como modo de vida. Não páram de crescer, assim eucaliptos, as editoras-taxímetro: pague que nós publicamos, resmas de restolho, sem fogo, mas esperando arder, com autores impantes e abandonados, uns em afogadilho, mas outros em celebração de selfiem-família. O negócio das identidades terá sempre por onde crescer: quem serei eu sem autorretrato ao instante, sem assinatura, sem opinião firme e hirta. Livraria Barata, Lisboa, domingo, 5 Setembro Ainda não tinha descido à cave da livraria de boas memórias, agora «lugar de cultura» consagrado pela Câmara Municipal, em missão de resgate e salvamento. O pretexto – que acaba por acontecer neste limbo pós-agosto-antes das-aulas-em-cima-da-feira-e-da-bienal-de-guimarães – está forrado com as imagens que resultaram do desafio a seis ilustradores colombianos e outros tantos portugueses para viajarem em tempo de pandemia, levando na bagagem ou usando como meio de transporte poemas de Natália Correia e Aurelio Arturo. A exposição «Para Além das Fronteiras/ Más Allá de Las Fronteras» evita as paredes, suspendendo os trabalhos e agravando a sensação de percurso por bosque de cores e interpretações. O lado português floresce bastante mais lírico e metafórico, enquanto do lado de lá do Atlântico privilegiou-se a figuração e a fidelidade às fulgurações eróticas e noctívagas da poeta: «Ó noite rosa de cabelos negros/ com incêndios nos espinhos./ Bebida na taça dos meus olhos/ como os vinhos.// Ó noite carne escura. Marinheiro/ Viagem de que fantástico veleiro?» Uma ideia da embaixada que assim constrói novos territórios, apadrinhada pelo Jerónimo [Pizarro], ao lado de quem me sento para falar da pujante figura da poeta, e de tradução que ele logo ali exercita, enquanto José Rosero ilustra ao vivo, vasculhando imagens no miolo da palavra. Andámos às voltas de uma ou outra, por exemplo com a chuvosa «cantinela» de Aurelio, que por ela talvez se chegue a «lengalenga». Divertido foi ver a plateia saltitando de uma língua para a outra, vasculhando vocabulário que ora prolonga ora fixa. E mais: colhendo as imagens maduras que cada verso oferece. Não deixa de ser ingrato destacar um ou outro autor, mas, praticando mais a bruteza do que a diplomacia, assinalo o Mantraste (algures na página). Talvez por uma proverbial proximidade à natureza, integrou os versos em luxuriante paisagem que mescla rosto e casa e terra e bonecos (soma de terra e água e fogo) e água e folhas, gotas que nem folhas. (As folhas atravessam que nem lâminas a maior parte dos desenhos, portanto olhares). Expressão em estado puro, assim barro atirado à parede em construção de si. Santa Bárbara, Lisboa, terça-feira, 7 Setembro Belas massas moventes em tons de branco-cinza roçam os pontiagudos postes que defendem os altos edifícios de ameaças celestes ou procuram apenas e com singeleza metálica captar ondas. Vai chover. Chovendo no molhado: a acumulação de suspensos e irresolvidos, de encargos e tarefas, passou do papel para um qualquer lugar no corpo, um punho entre estômago e coração, rins e virilhas. Baralho-me com as contas, mas desconfio que esta croniqueta apura um total de duzentas entregas, outras tantas semanas de meteorologia: leitura de meteoros e tempestades, de ventos, rotinas passageiras, borbulhas e feridas na pele do tempo. Devia largar isto e ir, pândego, apanhar a bátega. As chuvas terão, doravante, o aspecto que lhes roubou Aurelio Arturo: «Ocurre así/ la lluvia/ comienza un pausado silabeo/ en los lindos claros de bosque/ donde el sol trisca y va juntando/ las lentas sílabas y entonces/ suelta la cantinela// así principian esas lluvias inmemoriales/ de voz quejumbrosa/ que hablan de edades primitivas/ y arrullan generaciones/ y siguen narrando catástrofes/ y glorias/ y poderosas germinaciones/ cataclismos/ dilúvios/ hundimientos de pueblos y razas/ de ciudades/ lluvias que vienen del fondo de milénios/ con sus insidiosas canciones/ su palabra germinal que hechiza y envuelve/ y sus fluidas rejas innumerables/ que pueden ser prisiones/ o arpas/ o liras// pero de pronto/ se vuelven risueñas y esbeltas/ danzan/ pueblan la tierra de hojas grandes/ lujosas/ de flores/ y de una alegría menuda y tierna.”