Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasA caixa dos morcegos Viaja sobre um dos dezasseis decks do navio e tem a impressão de que a vista lhe treme ao jeito dos ritmos secretos que empurram as velas dos barcos pintados por Seurat. A máquina gigante, espécie de maquete em miniatura de Manhattan, flutua dentro de uma esmeralda: é essa a sensação de poder aspirar o ar todo do oceano que logo se encrespa nas vagas e nos redemoinhos do horizonte. O mesmo torvelim se passa no fundo do bule cheio de chá de valeriana e nos dedos que avançam sobre o tampo da mesa. Ela segue-lhe as falanges com a astúcia das felinas dengosas que farejam as sardinheiras saídas dos vasos. Até que as mãos se encontraram, simulando o rasto das diligências que se cruzam nos westerns. O pó é uma parte da memória que se abate sobre a clarividência, é verdade. Mas aconteceu. Antes ele falara-lhe longamente dos Novos Aerólitos, um livro seu publicado em 1996 pela Elsafira Lusitana. Era estranho voltar a ouvir a sua própria voz a soletrar o que sempre repetira nas aulas. Mas “o que eram afinal os aerólitos?” – perguntava ela. “Corpos sólidos, sim, atraídos pela gravidade, sim, e que ficam incandescentes devido ao atrito do ar, originando fenómenos luminosos curiosos”. Na altura, ele escolheu este termo, o aerólito, para tentar traduzir “uma das ideias centrais do nosso tempo” – e dizia-o com ar grave – “a ideia de instantaneidade”. Tinha passado férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, quando a ideia lhe sorriu. Diz que se lembrou de uma promessa em jeito de brincadeira que um amigo lhe fizera (“quando for agora à Dinamarca, trago-te uma dessas cervejas da Páscoa de que tanto gostas”) e, de repente, fez-se luz. Tinha na sua frente uma ponte suspensa e uma mão cheia de passadiços normalmente usados para a pesca. Atravessavam-no homens de boné com iscos, canastras, canas telescópicas e uma solidão de fazer cintilar a maresia (dando a impressão das miragens que imitam os foles no ir e vir dos seus assombros). E foi deste modo que aquela memória, vinda do nada, lhe bateu à porta. Ali, a uns quantos quilómetros de Nantes, recostado nas traves do ancoradouro. E aconteceu. Os dedos tocaram-se com o calafrio a disfarçar as linhas da mão que resvalam em desfolhada: espigas para um lado e o rosto para o outro lado a corar, embora, logo a seguir, ele tenha regressado ao livro para atear as lembranças que ligavam a foz do Loire a uma viagem à Dinamarca que nunca se chegara se realizar. Lembra-se de tudo isso como se fosse hoje. Com andar de pinguim, continua a explorar o deck, caminhando em estibordo na direcção da popa. Um cruzeiro é uma excomunhão voluntária, mas sem qualquer dor: a vida é embrulhada, durante uma série de dias, por um grande ginásio e toda a gente sorri a fingir que levita e que é eterno. E de quando em quando, lá vinha de novo o chá de valeriana e o bule com os tons azulados de Delft e as mãos que se estavam agora a tocar. O que se passa e o que passou são um único instante a instigar e a hipnotizar a duração. Ela tinha o rosto geométrico tipo sacerdotisa de Baco e umas sobrancelhas com a inflorescência de cicatriz antiga. A ligeireza vinha-lhe do queixo fino que mantinha coloração roxa (como se habitasse sempre numa manhã seca e fria de inverno). Enquanto sua colega na universidade, raramente lhe dera atenção ao longo daqueles corredores percorridos por azulejos cheios de jograis e de céus barrocos (amamentados pelas dorsais das funcionárias que eram gárgulas de mau olhado). Foi de facto em Saint-Nazaire que a ideia do livro apareceu. Surgiu todo escrito, como numa revelação, e, talvez por isso, ele tivesse abandonado rapidamente o ancoradouro, percebendo que, entre a encenação do mundo e as pegadas que ia deixando no areal, sobrava pouco, muito pouco (via o mar, e o mar era sempre o mar, independentemente do que lhe iria na cabeça). “A instantaneidade e a promessa?”. “Sim”. “E qual é a relação, afinal?” – perguntava ela. A ideia era simples, mas o livro não lhe conseguiu dar forma como devia ser. Uma década mais tarde, ele sentiu necessidade de escrever um artigo que tentou sintetizar tudo de um modo mais claro. Intitulou-o Genuflexão diante de um deus sem divindade e foi publicado em Inglês numa revista de Albany. Depois virou-se, meio alarmado, para ela e repetiu com lentidão: “Ilusões, ilusões, meras ilusões”. Conversa lacreada. – Foi há quase trinta anos que passei as férias em Saint-Nazaire, na foz do Loire, e lembro-me de que me sentia agitado. O mais fidedigno dos cansaços pertence àquela família de ócios que se arma em complacente: a liberdade reduzida apenas a ser livre sem que os limites (que afinal a definem) se tornem claros. A bruma a recobrir o fim do dia. Ao entrar no autocarro, no início da viagem de regresso, relembrei o meu corpo em câmara lenta a percorrer as salas de aulas e eu sabia que, naquele momento, as mais diversas substâncias orgânicas, além dos iões e da água, passavam de célula para célula, rasgando fronteiras. Passavam através de pontes ditas citoplasmáticas. E ela logo me encostou o pé debaixo da mesa e sorria bem menos corada do que há uma hora. O caminho para a velhice é um cruzeiro de gladiadores no meio de um oceano furioso e eu, pelo meu lado, sentia-me estranhamente tranquilo, quando comecei, a pouco e pouco, a tentar explicar: “No mundo das religiões do livro, da tradição hebraica à cristã e depois à islâmica, desde o segundo milénio a.C. que a vida é explicada em função de uma promessa que visa um mundo perfeito (redenção religiosa para uns, redenção ideológica para outros, conforme as épocas e os lugares). E sempre houve dois tipos de postura nestas culturas: uma postura de paciência (aguardar o cumprimento da promessa com a devida resignação) e uma postura de impaciência, baseada na exigência do cumprimento instantâneo (hoje, agora e aqui) do prometido mundo perfeito. A história está cheia deste tipo de movimentos. Radicalismos religiosos e ideológicos já no mundo moderno”. No dia em que abri a caixa de cartolina e larguei os morcegos no ar em pleno conselho científico – foi na altura um verdadeiro escândalo -, ela foi a única colega a abordar-me para me felicitar pelo boicote simbólico. O que não pôde compreender é que o meu gesto fora tudo menos simbólico. Eu já deitava a universidade pela boca e nem me dava conta disso. Estava a lembrar-me desta fase recente da minha vida, quando vi terra ao longe. De repente, o deck encheu-se de gente eufórica, fora de si: corpos de popelina a tornarem-se esguios numa voragem com as cores de El Greco, braços no ar sob a forma de mastros que se esfumavam numa farinha colorida, mastigável. Fiquei estático no meio desta humanidade de manequins e, ao mesmo tempo, a insinuar-me cada vez mais ao corpo dela que encostara, entretanto, as suas pernas às minhas. Respondi-lhe que sim: os radicalismos desejam que as visões prometidas aconteçam na realidade e no imediato. Terra à vista, terra a conquistar. E o mais curioso é que a tecnologia ofereceu tudo isso como presente ao mundo. Pelo menos, fê-lo através de simulações. Pergunto eu: para que interessam as religiões e as ideologias, se os aparelhos tecnológicos nos dão hoje instantaneamente (e com prazer imediato) o que mais desejamos? Não, não nos dão o paraíso, mas dão-nos a sensação de que tudo está ao nosso alcance. Deste modo, a velha promessa cumpre-se, ainda que não se cumpra o que ela prometia. Regressámos ao mundo dos místicos, ainda que o nosso deus seja um simples botão que separa o ‘on’ do ‘off’. Lentamente, a instantaneidade – que dantes era uma trave mestra reivindicativa – passou, no nosso tempo, a ser a grande divindade oculta. O aerólito por excelência. E foi após esta divagação que tudo aconteceu, sem que eu alguma vez chegasse a entender o quer dizer “tudo aconteceu”. À minha frente, já distinguia os contornos de Chipre. Tremiam por dentro como eu, isto é: tremiam com a mesma cadência que incita o movimento das velas pintadas por Seurat.