Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasPartir o pente [dropcap]A[/dropcap] minha irmã acha que eu deveria cortar o cabelo, logo agora que recebe mais elogios que nunca. Divertida, faz-me sinais de uma tesoura invisível, sorri e oferece-se, “Se quiseres eu corto”. Não tenho usado muito os bigoudis que dela herdei quando decidiu cortar o longo cabelo bem curtinho, há uns anos. Agora, tem uma afro invejável, com tons entre o loiro e o castanho. Uma vez, numa loja de acessórios, dei por ela a experimentar uma peruca. Retorquiu, “O que foi? Sempre quis saber como ficaria se fosse loira.” É difícil cabermos, e aos nossos cabelos, por inteiro na mesma selfie, mas ambas continuamos, cada uma num país, a lidar com estranhos que insistem em tocá-los. Suspiro. Da raiz até às pontas. Vejo vídeos sobre como fazer a transição capilar, reeducar o cabelo, fazer o big chop total ou parcial, para ter uma só textura, para desintoxicar e recuperar o meu verdadeiro eu. Na série Insecure, Issa Rae e as amigas mudam frequentemente de penteado. Em This is Us, igualmente. Parece fácil e acessível. Em Keeping up with the Kardashians, a royalty da reality tv america é adepta de extensões e perucas. Muitas vezes, a sua origem é indiana ou vietnamita: as primeiras doam o cabelo ao templo milionário e as segundas usam-no para sobreviver e alimentar as famílias mais algum tempo. Cabelo curto, comprido, desfrizado e natural, tranças, caracóis, liso e ondulado: já tive de tudo um pouco, embora nunca o tenha pintado senão de preto. Pouco original, bem sei. No processo, parti muitos pentes, dentes de pentes, cabos de pentes, como qualquer africana ou afro descendente que se preze. Penso que não tenho mais paciência para isto do que para usar maquilhagem. Deixei de desfrisar o cabelo há dois anos, depois voltei a fazê-lo, e já só o fazia uma vez por ano, no momento de maior desespero e embaraço, quando o pente ameaçava partir-se novamente, após logradas tentativas de domesticação. Arrependo-me e penso, agora vou ter de começar de novo. No entanto, trouxe recentemente do supermercado uma escova eléctrica. Apesar de ter um ferro de alisar e uma varinha de encaracolar, que raramente uso. Não tenho secador mas sei que, por uma vez, a explicação não cabe a Freud. Se folheio a Poesia Toda, descubro em Herberto Helder Na cerimónia da puberdade feminina (dos índios Cunas, Panamá). A mesma inclui tesouras, cabaças, água e aguardente, lenços, mulheres e raparigas. Muitas vezes sinto saudades de ter tranças. Permanecem na memória como um ritual sagrado e moroso, em frente à televisão, com pequenas pausas e muita paciência, perfeição e minuciosidade das mãos maravilhosas da minha mãe e da minha tia. Passaram dois anos desde o lançamento do icónico álbum de Solange, “A seat at the table”, e do hino “Don’t touch my hair”. Este single, que obriga a reflectir para além do já expressivo título, assenta muito bem num mundo em que o cabelo continua a ser motor de vítimas e de agressores, com mais ou menos silêncio e assumir de responsabilidades e preconceitos. O responder a uma pergunta que raras vezes é feita. Uma resposta pacífica para um gesto tantas vezes agressivo, se não físico, certamente mental e emocional. A artista explica “Don’t touch my hair / When it’s the feelings I wear”. Nada parece faltar a Solange. E nós sentamo-nos à mesa para pensar e lutar com ela. Também em 2016, a ginasta olímpica Gabby Douglas foi criticada, sobretudo na comunidade afro-americana, pelo seu cabelo que, segundo os comentadores, se apresentou desleixado durante as competições. Gabby, uma jovem adulta digna de admiração, cedeu naturalmente perante tais reacções, quando deveria estar feliz, a celebrar a sua prestação e a medalha de ouro, a primeira ganha por uma afro-americana naquela categoria. Início de 2018: uma mulher de nome Essie Grundy processa a cadeia de supermercados Walmart por suposta segregação de produtos de cabelo e pele destinados à comunidade afro-americana, guardados a chave num armário, como em Portugal vemos tantas vezes com produtos não conotados racialmente, mas que talvez tenham mais tendência a serem alvo de furtos, como artigos de higiene pessoal. Se ando por livrarias ou supermercados, por todo o lado encontro Becoming, de Michelle Obama. A internet delira e ergue as mãos ao céu em júbilo pela sua cabeleira, em estreia natural e encaracolada na capa da revista Essence. Não foi assim há tanto tempo que os Obama deixaram a Casa Branca e o levantar de sobrancelhas que as tranças das suas descendentes causaram. Não foi assim há tanto tempo que, de Beyoncé, ouvimos “I like my baby heir with baby hair and afros.” E se 2016 parece ter sido um dos anos capilares de maior relevo, a uma fotografia de Barack, de cabeça baixa, permitindo a um menino que lhe tocasse no cabelo para descobrir se seria igual ao seu, o devemos. Sou fã de Michelle, mas pergunto: porque é que o cabelo encaracolado não agraciou antes a capa da sua biografia, em vez da revista, e se manteve politicamente correcto, já depois da presidência? Talvez o mundo deva mais a Michelle do que o contrário. Talvez Michelle guarde o seu cabelo natural para a intimidade; talvez tenha sido este o seu sacrifício. Os Egípcios deixavam crescer o cabelo enquanto viajavam. Talvez Michelle, não tendo ainda chegado ao fim da viagem, apenas agora tenha conseguido fazer uma pausa para pensar. Talvez a sua pequena evolução pessoal e capilar ainda venha a tempo de ser uma revolução, talvez ela não seja o seu cabelo (bem, não mais do que qualquer um de nós, pelo menos) e estejam certas as culturas que acreditam que o cabelo é uma das moradas da alma e também o estejam as primeiras-damas que se protegem atrás dele. Talvez este experimentar constante, numa altura em que toda a gente se policia, seja apenas mais uma forma de aprendermos a suportar o nosso próprio peso.
Leonor Sá Machado Ócios & Negócios PessoasBarbearia 2Legit | Sara K, Rocklee e Fernando Lourenço, fundadores e co-fundador Sara K, Rocklee e Fernando Lourenço decidiram aliar-se para criar um novo conceito de barbearia inspirado naquelas que ainda existem por essa Macau. A ideia voou dos EUA e estabeleceu-se perto de S. Lázaro, com ênfase na imersão comunitária [dropcap style=’circle’]A[/dropcap] 2Legit nasceu há meio ano mas já está a ferver, mais que não seja pela paixão cega dos seus dois fundadores e co-fundador, Rocklee, Sara K e Fernando Lourenço. O projecto sobrevive pela paixão e talento de ajudar os outros. Rocklee, agora com 30 anos descobriu a sua vocação pelo conceito de ser barbeiro a milhares de quilómetros de distância, nos Estados Unidos. Participa, desde novo, numa série de competições e ‘battles’ de breakdance – estilo que nasceu nos EUA e foi popularizado pelos afro-americanos, com recurso ao hip-hop – pelo mundo. “Tudo começou quando fui aos EUA para uma competição, uma coisa que faço há mais de 20 anos. Punha-me a pensar nos cortes fantásticos daqueles b-boys, mas com linhas [de corte] realmente bem feitas, sem defeitos e em como eu nunca conseguia fazê-lo”, conta. As experiências iniciais, confessa, levaram a uma série de “desastres” capilares, o que o obrigou a um pente zero permanente, numa tentativa de esconder as avarias. Anos depois, foi convidado para um evento como DJ no Michigan, altura em que aproveitou para ir a Chicago. Foi numa festa nesta cidade que conheceu uma rapariga sino-americana, “das poucas que falava cantonês” por lá. A história acaba com Rocklee a conhecer o seu mentor por via da sua amiga. “Foi nesse dia que conheci o meu mentor, que me cortou o cabelo como eu sempre quis”. A paixão nasceu assim, como todas: inesperada e repentinamente. De volta a Macau, o barbeiro empenhou-se como nunca, fez várias perguntas e outras tantas experiências, até que começou a cortar cabelos “em casa, numa cadeira do Ikea”. Decidir-se por ‘2Legit’ foi, de certa forma, fácil. “Para o nome, lembrei-me dos primórdios da cultura pop e da minha infância, quando ouvia MC Hammer e ele tinha a ‘2Legit2Quit’”, conta. Entre um trabalho a tempo inteiro num grupo hoteleiro local e a vontade insaciável de criar, Rocklee foi singrando, até abrir a barbearia em Abril. Aliar a arte à vontade de contribuir Para Rocklee, o conceito é sólido e imutável: uma hora na 2Legit pode ajudar qualquer um. “É uma sessão terapêutica”, exclama, com o aval de Fernando. “Sinto que ao tornar-me barbeiro, estou a ajudar os outros”, traça Rocklee. Entre risos, explicam que se trata de um momento quase catártico. Curiosamente, os cortes não são efectuado de frente para o espelho, mas sim para dentro da loja. “Dá aso à criação de conversas entre nós e a clientela, troca de experiências, de histórias e desabafos”, revelam. Várias são as histórias que têm para contar: umas mais felizes que outras, mas todas se concentram da comunidade. “As pessoas não devem seguir o rebanho, fazer o que a sociedade lhes impõe, mas sim o que realmente querem”, frisa o proprietário. Entre palavras, confessa ter sido uma dessas crianças, até finalmente perceber que só assim seria feliz. “Há dificuldade em ver o valor além do dinheiro, mas é preciso promover isso”, disse. Além das marcações diárias, os dois barbeiros ajudam muita gente. É que a estabilidade do exterior engrandece o interior. Na calha da 2Legit estão outros projectos. Entre eles, parcerias com associações solidárias de pessoas com deficiência e ex-toxicodependentes no sentido de formar quem queira seguir a actividade. Fernando fala também na colaboração com estes grupos vulneráveis e artistas locais na criação de outros produtos. Muito mais do que um corte A Rocklee juntaram-se o seu primo Fernando Lourenço e Sara K, uma jovem residente que adquiriu os seus conhecimentos com um curso em Portugal. No entanto, a paixão de cortar cabelos não previa um molde tão “tradicional” como aquele a que um salão comum obriga. Entre aquelas quatro paredes, Sara sente-se a dar asas à sua imaginação. O aparar de pontas, permanentes e madeixas foram trocados pelo cavalheirismo capilar. Anteriormente, Sara trabalhou num salão local e depois como freelancer, a partir de casa. Fernando esforça-se todos os dias para manter a casa em ordem, mas não só. Neste momento, delineia um plano de longo prazo para a marca. “Não queremos só ter produtos à venda na loja, queremos criá-los para que sejam vendidos lá fora”, conta. Na 2Legit vai vender-se uma série de produtos, o mais original sendo uma pasta capilar orgânica semelhante à cera. Há, ainda este ano, espaço para a venda de roupa. Além de cadeiras de barbeiro, o espaço está decorado com espelhos, um balcão para tatuagens, estação de lavagem e uma cabine de música, com vinis e um amplificador à mistura. É que não só há música a tocar, como artistas em ascensão podem lá actuar para mostrar do que são feitos. A 2Legit não se encara como mais um cabeleireiro. Pode dizer-se que é o barbeiro de antigamente, mas de cara lavada. Errada é a ideia de que uma barbearia dos tempos modernos obriga à criação de looks tresloucados ou cristas pontiagudas. Ali usa-se uma espécie de cera própria, fazem-se desenhos artísticos, mas principalmente, cortes clássicos e modernos. A atirar para um homem de negócios orgulhoso do que a sua cabeça veste. A equipa vai marcar presença no Flea Market, uma feira que tem lugar este fim de semana, na Estrada Marginal da Areia Preta.