Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAs Incríveis Aventuras do Cabeçudo de Tunes [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo, numa daquelas conversas de café em que cada um dos intervenientes compete pelo troféu da história mais bizarra da noite, lembrei-me de uma personagem do Algarve, do meu Algarve da adolescência, pontuado pelo sol e pela praia, pelas turistas de mini-saia imunes ao frio de Janeiro, pelos pescadores declinados em bêbedos profissionais, secando cada vez mais depressa as tascas cada vez mais raras, o meu Algarve que nunca foi realmente meu – porque tanto parte de mim lhe escapava como parte dele me estranhava – e, ainda assim, muito mais meu que daqueles que o transformavam numa Little England abençoada pelo sol e pelo mar infinito para onde o sol regressava a cada final de dia. Lembrei-me do Cabeçudo como quem se lembra do Rashkólnikov ou do Gregor Samsa, personagens de Dostoiévski e Kafka, respectivamente, que tinham, para mim, uma densidade ontológica proporcional à do Cabeçudo: conhecia-os unicamente pelo que deles se escrevia ou falava. A história do Cabeçudo começava inevitavelmente pela génese da alcunha. Ao que parece, o Cabeçudo ganhara o nome não por ser adepto de uma equipa de futebol inevitavelmente derrotada a caminho de qualquer coisa, mas porque possuía uma cabra de estimação com a qual ensaiava marradas, dias inteiros, até um deles desmaiar – normalmente, a cabra. O Cabeçudo era de Tunes, uma freguesia de Silves esparsamente povoada e conhecida somente por ser uma paragem de comboio onde se interseccionam as linhas do Algarve e de Lisboa. Em Tunes, como é fácil de imaginar, não havia muito para fazer, sobretudo para rapazes na idade do Cabeçudo. A inclemente adolescência, temperada pela necessidade de rebelião e pelas pulsões sexuais impossíveis de debelar, fazia com que a vida em Tunes, por mais bailinhos de fim-de-semana que comportasse, tivesse sempre um travo a monastério e ficasse, invariavelmente, aquém do mais comedido dos sonhos adolescentes. Como se sabe, as mãos desocupadas são a oficina do demónio. E se havia área na qual o Cabeçudo era especialmente profícuo, era a das coisas demoníacas. Conta-se que o Cabeçudo, da primeira vez que viu um negro, em Tunes, o seguiu, fascinado, primeiro mirando-o de longe para, aproximando-se cada vez mais, começar a tocar-lhe com a ponta do dedo, como as crianças fazem para atestar a existência de algo ou alguém, e o homem, cada vez mais perturbado com aquele estranho tacteando-lhe as omoplatas, decidiu que talvez fosse melhor fugir primeiro e tentar perceber depois, ideia com a qual o Cabeçudo naturalmente não concordou, dado não ter ainda esgotado a curiosidade que o movia a seguir aquele homem tão invulgar. O resto, diz-se, pode resumir-se a uma imagem: o Cabeçudo sentado nas costas do homem, traçando-lhe o casaco e a pele com um canivete que o acompanhava para todo o lado e exclamando, para quem passasse ou calhasse olhar: “venham ver, malta, venham ver, parece toucinho”. Esta história costuma provocar estupefacção e nojo em quantidades equivalentes naqueles que a ouvem. Mas, como o humano tem uma tendência inescapável para não desviar o olhar do acidente, pedem-me para continuar. E eu continuo. Um jantar de aniversário do Cabeçudo acabou com a um garfo trespassando a mão do irmão mais novo, que insistia, malgrado os avisos do Cabeçudo, em roubar-lhe as batatas fritas. Outra vez, prossigo, fez desandar a tiro de caçadeira dois GNRs que insistiam em falar com o pai dele sem, no entanto, disporem de mandato para obrigá-lo a tal. “Estão em propriedade privada”, começou por avisá-los, até se cansar da conversa e surgir à porta de caçadeira ao ombro em vez do pai que afiançara chamar para falar com os senhores guardas. “Fujam, porcos de merda”. E eles fugiram, afogueados pelo medo de quem sente nas costas o hálito provável a chumbo quente. Não raramente, alguém interrompe a sequência de histórias do Cabeçudo com uma pergunta que tem tanto de legítimo como de desmotivador: mas isso é verdade? Eu sorrio, olho para o chão, para o perguntador e respondo com outra pergunta: e isso interessa? Uma boa história é uma boa história, complemento. E, enquanto as pessoas se manifestam pelo riso ou pela discordância, eu penso: este nunca vai ser escritor.