Anabela Canas Artes, Letras e Ideias Cartografias hO bicho [dropcap]O[/dropcap] bicho. A respiração do bicho. A respiração volumosa do bicho. Ofegar audível e invisível. Lento, projectado. Do tamanho do corpo, é dizer pouco. Houvesse palavras impressas nas baforadas intensas, como sinais de fumo, e eram terríveis, talvez. E, a ter odor, fétidas, soltas, descompassadas. Está na arena porque foi ali colocado. Não sabe nada disso. Nem de que é para a morte nem nada. Nem de que a morte virá tarde, depois da humilhação e das farpas. Está ali porque lhe abriram as portas com direcção única. O túnel. E mesmo isso já lhe oferece uma raiva que o faz levantar poeiras ásperas na corrida. Nestes casos as caras conhecidas escondem-se para não ser cúmplices. Nem do túnel. Nesses momentos em que ninguém lhe toque. E noutros, sereno, sabe-se lá, de frente para as bancadas, alheado e surdo às provocações e ensaios do animal enfeitado e vaidoso em exibição de caracoletas e volteios segundo a arrogância da rédea. Também não merece coisas como essas tranças em cores. E penacho em repuxo a verter vaidade. O prémio de ser educável. E o bicho, ali, de costas voltadas ao inefável que o espera e a prolongar o tempo. Quando é assim, todo o tempo, dizem-no manso. Demais. Pateada. Querem-no a investir. Bravo mas de acordo com o protocolo e a direito. Em volta todos apostam no interruptor. Que está off. Se é fiesta é para correr para a que vem com habilidade precisa e rápida. Começar por aí. Mas isso era generosidade, não era fiesta. Deve correr. Dispara contra as bancadas, não sabe as regras. Simplesmente vai. Todo. Outros bichos. Sugam o sangue e inoculam a raiva. O controle da raiva é difícil para quem foi sugado. A teatralização de emoções ou o descontrole podem deixar que a raiva suba de tom. Mas isso é a raiva. Ali, a fúria. Disse mal: é fúria. Diagnóstico do bicho. A respiração do bicho. Este hausto irreprimido e forte. Da dificuldade em absorver vida sem cortes e sangramento. E como um suspiro vital, expelido com a força desesperada do último recurso. É fumo, essa impressão de vida, que se prolonga em minutos vazios. Fumo sem flor. Até podia ser vida sem dor. Mas não é isso que digo. São campos em que nasceu, esquecidos. Agora, vê-se ali, ainda inteiro. Tocam de leve a respiração do bicho. Sentem que vive. Não dizem. Voltam sobre a sombra, pé ante pé – range uma tábua, um resmalhar de cascalho a despertar a dor do bicho – e escrevem os átomos universais. Mas sem dizer o que foi visto. Nem que. Ficam feromonas discretas. Deixam-no só, para ali. Possante. O bicho levanta a cabeça e espuma. Depois. Não vá dar-se o caso de um medo. Levam-lhe as histórias quase histórias. Servidas com alfinetes de costura a uma distância segura. Grandes bandarilhas espetadas no curso dos dias. No torço e no cachaço revoltado e carnudo. Nada que mate. Dessa morte que só vem depois. As feromonas criam um rasto de caminho útil às formigas. Um rasto de sangue na areia. Um animal violento pode apresentar-se de orelhas baixas, sem chifres, mas o olhar bovino é igual ao de outros campeões. Quando vítreo. O impulso, a velocidade a imprevisibilidade da rotação combinada com o impulso e a velocidade. Quantas toneladas de fúria em potência num touro em repouso? Antes do fogo. Pouco ou nada se saberá das emoções pombalinas. O que se sabe é do fogo e que o fogo que consumiu a cidade medieval. Veio o frio, uma ideia construtiva de rigor e geometria para evitar o fogo. Oposto do que existia. Fogo terrível e devastador como a ferida que dói é o outro no interior das paredes, no interior da cidade. Danos no que foi consumido. Talvez nada de estrutural. Talvez o que foi alma da combustão deixasse intacta a lâmpada. Se não era vela de arder até ao fim. Talvez haja dois tipos de pessoas nisto do fogo. As que ardem e se apagam e as que alumiam queimando combustível. O bicho arde e apaga-se. Foi programado para isso. Livre. Na campina anterior à queda de joelhos. O bicho não pode resistir ao fogo. Há que resistir ao bicho.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA esperteza dos bichos [dropcap]N[/dropcap]os anos oitenta e noventa o golfinho era o maior. A comunicação social, hiperbólica no seu entusiasmo, garantia-nos que os golfinhos só não nos tinham suplantando no domínio do planeta porque viviam no oceano e tinham corpos desprovidos da anatomia necessária para fabricar e manejar utensílios (a falta que um polegar oponível faz). É verdade que os golfinhos têm um cérebro maior que o nosso, que são bichos extremamente sociais e capazes de empatia até para com animais de espécies diferentes e que, até ver, são os únicos animais – para além dos humanos – a ingerir drogas de forma recreativa (os golfinhos em grupo entretêm-se a mordiscar um peixe extremamente venenoso chamado baiacu, ingerindo apenas a quantidade de veneno suficiente para ficarem pedrados e passando-o depois a outro golfinho – nem é preciso substituir o peixe por uma ganza para a comparação ser estupidamente óbvia). Para além disso, têm um sistema de comunicação extremamente complexo e, treinados, são capazes de escolher, através do uso da ecolocação e de um painel capaz de interpretar esses sinais, o que querem comer. “Hoje tem sido carapaus”, dizia uma bióloga numa entrevista, “mas há dias em que só pede polvo”. Dias de polvo. Quem nunca? Hoje em dia, porém, os golfinhos deixaram de estar na moda. Nos anos noventa, eu achava – cavalgando a vaga de entusiasmo à volta dos golfinhos e da sua inteligência – que no dia em que conseguíssemos decifrar a linguagem deles, novos mundos se iriam abrir e muita coisa se resolveria. Em surdina garantiam-nos que os golfinhos eram portadores das peças do saber que nos faltavam para completar o puzzle da nossa interpretação do mundo. No divertido Hitchhiker’s guide to the galaxy do Douglas Adams, os golfinhos estão no segundo lugar do pódio dos animais mais inteligentes da terra (os ratos estão em primeiro; nós, em terceiro). Há filmes sobre a inteligência e empatia dos golfinhos. Há documentários suficientes para encher meia dúzia de discos rígidos. O que aconteceu então aos golfinhos para no séc. XXI deixarem de ser sexys? A explicação mais imediata (e também a mais desinteressante) é a de que a ciência – e sobretudo a ciência extremamente promissora mas ainda imberbe – não é imune a modas. Os golfinhos tinham um potencial tremendo à primeira vista. As observações preliminares permitiam tecer toda a sorte de conjecturas sobre a amplitude das suas capacidades. Um pouco com as pessoas que vamos encontrando e que nos parecem gigantes até se revelarem modestamente humanas por via do contacto prolongado. Na óptica desta explicação, os golfinhos são apenas mais um mamífero giro que prometia muito. Eu acho, no entanto, que a queda dos golfinhos do pedestal do nosso interesse não deriva propriamente da nossa avaliação errada das suas capacidades mas da inveja. Não da nossa inveja, atenção. Mas da inveja do restante mundo animal do interesse que nutrimos quase em exclusivo pelos golfinhos durante uma larga dezena de anos. Os bichos perceberam que tinham tudo a ganhar se demonstrassem competências capazes de despertar o nosso interesse. Os primatas já há muito o faziam, mas sofriam da síndrome de familiar menos dotado. Os golfinhos, por outra parte, são-nos tão distantes que qualquer manifestação de similaridade com as nossas competências (que julgamos sempre tão naturais quanto exclusivas) nos faz imediatamente verter uma pinguinha. Então e os corvos, mentalmente equiparáveis ao uma criança de sete anos na sua habilidade para resolver problemas? E os polvos, peritos no uso instrumental de diversos objectos? E os papagaios, capazes de para além de falar, de aritmética simples? Parece-me óbvio que esta bicharada se reuniu e, remodelando por completo o departamento de marketing, acabou por arranjar forma de dividir melhor o pódio. O segredo dos golfinhos continua a salvo.