Flávio Tonnetti VozesBibliotecas de Macau: A biblioteca do Mercado de São Lourenço Por Flávio Tonnetti Venho de um lugar com poucas bibliotecas, onde estudar é um luxo, ainda. No meu contexto de origem, as bibliotecas são espaços distantes do cotidiano da maioria das pessoas. Por isso me surpreendo com a quantidade de bibliotecas de Macau, e com o número de pessoas que as frequentam, cada uma com um interesse específico, não necessariamente o de ler livros. Em algumas delas chega mesmo a haver um horário de pico, quando encontrar um bom lugar para se sentar torna-se um desafio similar ao de achar vagas nos autossilos: é preciso girar um bocado até que se possa estacionar. De todas as bibliotecas de Macau, a do Mercado de São Lourenço é a mais próxima aqui de casa. Chego até aqui caminhando, subindo pelas escadarias das vielas da velha Macau até baixar ao centro médico que faz esquina com o Mercado. Acho inusitada essa encruzilhada: quando a medicina, a nutrição e a erudição se encontram. Habito essa fronteira em busca do que me nutra. Saindo por todas as portas do mercado, me incomoda o cheiro de peixe na altura da rua. A primeira vez que cá estive, atravessei os odores reparando com atenção nas cores de sangue, nas texturas das carnes, no brilho das escamas. E no barulho que os mercados de peixes invariavelmente tem, e que os distinguem de todos os outros mercados. Nada seria mais antagônico ao espaço silencioso e inodoro de uma biblioteca moderna. Cruzando o salão, subi ao segundo andar em busca de frutas e verduras, onde os perfumes nos atravessam de um jeito manso e gentil, podendo encontrar, no andar seguinte, uma praça de alimentação com enorme diversidade de cozinheiros vendendo pratos prontos, onde os cheiros do mercado se misturam totalmente, elaborando a síntese completa dos odores e sabores. Comparando com os mercados das minhas terras natais — ou com outros mercados asiáticos e latinos-americanos — me chamou a atenção o silêncio e o decoro dos senhores e senhoras que trabalhavam nos andares de cima do mercado. Um clima em tudo diferente ao das animadas e ruidosas feiras brasileiras. Nessa altura, já tínhamos, no São Lourenço, um mercado com sensação de biblioteca. Nessa primeira vez, subi por um dos elevadores e me atrapalhei um pouco até que eu pudesse encontrar as escadas que iriam por fim dar na altura da biblioteca. O que fez com que eu ficasse rodando pelo mercado até que achasse o caminho certo, um giro propício para que fizesse algumas compras. Já com a feira feita, com bananas, pêssegos, um pedaço de gengibre, uma cenoura graúda e algumas couves enfiadas na bolsa junto com o computador e meus cadernos, subi finalmente até o andar dos livros. Gosto de sentar próximo às janelas, me alimentar dessa luz que vem do exterior. Não observo somente os livros: gosto de perceber as pessoas. Nessa biblioteca, os pertences dos frequentadores são diferentes de todas as outras. Compondo a paisagem, há sempre sacolas de frutas aos pés das mesas. Pessoas que fazem a feira antes de subirem para ler o jornal. Homens que aproveitam a solidão da biblioteca para usarem a internet com privacidade antes de voltar com as compras para casa. Senhoras trabalhadoras que ali vão descansar depois do almoço. Mocinhas colegiais e suas mochilas com maçãs, nabos e pés de alface. Nessa biblioteca, o saber tem um sabor. E há um perfume, quase imperceptível, herdado dos campos, que emana sutilmente dos gêneros hortifrúti. Esses cheiros, bem diferentes dos das carnes do rés do chão, refrescam a nossa percepção. Aí passo as horas do meu dia. O tempo é relativo quando nos recolhemos no esquecimento da leitura. A noite cai e logo estou, à meia-noite, entre os últimos, a fechar a biblioteca. Entre uma couve-flor e uma berinjela, edito textos sobre cinema chinês e escrevo, minhas impressões sobre a cidade, ao editor de um jornal macaense. • Artigo escrito em português do Brasil • Flávio Tonnetti é PhD pela Universidade de São Paulo e professor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa, no Brasil. Em Macau, é pesquisador pós-doutor na Universidade de Macau, trabalhando com temas de língua, cultura e arte contemporânea