A última refeição

Tencionava escrever outra crónica onde queria demonstrar como o comportamento dos canais televisivos, na dramatização do covid e na expulsão dos índices culturais da pólis mediática, corresponde ao fosso que se cavou e que separou definitivamente a Comunicação do Conhecimento, divórcio que se afigura trágico para a sustentação dos valores da dignidade humana e cujo discernimento hoje se revela fulcral. Ficará para a semana. Duas coisas impuseram uma mudança de rumos, uma pessoal e outra do orbe político mundial.

A pessoal é que acabei a peça de teatro que a Maria João Luís me encomendou para o Teatro da Terra. A peça já tem datas de estreia, em dezembro, no Seixal e em Lisboa, no S. Luís. Tenho agora a obrigação de me manter vivo até lá.
Aí vai a sinopse para A Última Refeição:

«Helene Weigel dispõe os ingredientes sobre a banca e deita mãos à obra: confeccionar uma última refeição para o Bert (Brecht). Frango na púcara com temperos à Mãe Coragem.
A estranha banca da cozinha, com gavetas de diversos tamanhos de um lado e de outro, está suspensa, presa ao tecto por cabos.

Na primeira parte da peça, Helene, enquanto cozinha, vai discorrendo sobre a sua vida com Bert: as grandes alegrias por partilharem de um transcendente sonho teatral e se confiarem incondicionalmente no palco, numa sintonia que os levou ao êxito, e, por outro lado o sofrimento com as traições conjugais e o carácter de pinga-amor do Brecht e a sua noção muito alargada de “família”; a dureza da vida no exílio; o difícil regresso a Berlim e o seu papel como “dama de ferro” para manter a administração de um teatro com 260 funcionários; o seu papel de “mãe” para manter Bert no equilíbrio propício às suas necessidades criativas.

À medida que se vai emocionando com os episódios que relata, vai mudando o seu modo de picar os legumes e de tratar os outros ingredientes, alterando o ritmo da confecção e oscilando entre e a delicadeza ou a rudeza na relação com os ingredientes, os temperos, etc. Por fim mete a púcara no forno, outra das gavetas embutidas na “banca”.

Há que “aguardar” que o fogo actue e o frango saia à altura da sua fama como cozinheira: algo que “ressuscite um morto”.

(para o começo da segunda parte:) Helene começa por mostrar-se arrependida por ter escolhido um prato feito no forno, e pede desculpa a Bert, por de repente lhe parecer que as chamas do forno se assemelham às do Inferno, que o recém-falecido pode pode estar prestes a enfrentar. Tem um momento de desvario, onde “ressuscita” o medo que agonizou Galileu quando se sentiu acossado pelo risco da fogueira da Inquisição, antes de se acalmar.
Bebe um chá e então Helene, gaguejando primeiro, relata o seu encontro com o agente do STASI que lhe anunciou com antecedência a morte de Bert, porque afinal era a Morte disfarçada.

E como esta lhe lançou o mais terrível dos desafios: já que ela foi a Mãe Coragem porque não encarnar outra grande figura da tragédia clássica, a Alceste, cuja qualidade humana assombrou os deuses, ao aceitar que a Morte a levasse no lugar do seu marido? A morte diz-lhe que sempre admirou o amor incondicional dela por ele e que a sente à altura do desafio.

Helene vacila. Bert já está no caixão, mas ela ficou de responder à morte na manhã seguinte, para o substituir ou não, e no primeiro caso a Morte ressuscitá-lo-ia. O dilema desespera-a e resolveu fazer o prato que Bert mais gostava e que considerava digno de “ressuscitar um morto” (- talvez assim ela não precise de sacrificar-se”, pensa.)

Quando o frango fica no ponto, Helene tira-o do forno e antes de o destapar limpa o tampo da banca (mete tudo o que lá estava noutra gaveta), e depois abre o tampo da mesa de cozinha, pois afinal era a urna onde está o corpo de Bert.

Então destapa a púcara para que ele sinta o cheiro inebriador do prato, e tem uma última conversa com Bert.
Em primeiro lugar quer discutir com ele uma determinada passagem de “A alma boa de Setsuan”. Quer discutir com ele, um certo matiz da Bondade, que ainda lhe faz espécie. Depois, então falarão sobre a Alceste. O que Helene decidir será de consenso entre os dois.
O intenso aroma do cozinhado invade a sala.»

Esta foi a primeira sinopse. No fim a peça ficou ligeiramente diferente, mas não revelo mais nada para que haja surpresas em cena, e serão bastantes. Foi uma peça de confecção demorada, tive de ler e reler quase tudo do Brecht, mais uns quantos livros sobre ele, para que não houvessem dedos apontados por parte dos “donos” do Brecht e porque, afinal, a complexidade da criatura pedia.

O segundo motivo prende-se com a perplexidade face ao resultado do Impeachment do Trump. Fica em risco a democracia em todo o mundo, com este mau exemplo, pois um dos mais convincentes argumentos dos acusadores Democratas, consistiu em lembrar como a absolvição do político criaria antecendentes para uma nova norma de actuação política que deitaria por terra todos os princípios. E acho que eles tinham razão. E o mistério impõe-se: que raio há de fascinante no grotesco solipsismo de Trump?

Só me resta fazer um comentário em modo teatral:
«A alma de Trump chega à Barca do Paraíso. Depois de ouvidos e discutidos os seus pecados, Trump é recambiado para a Barca do Inferno e o Anjo do Inferno manda-o embarcar com verdadeiro júbilo. O drama é que assim que o Trump entra na Barca do Inferno esta afunda com o peso das suas faltas. Há que encomendar outra Barca a um célebre armador grego, de quem o Trump se diz amigo, e de quem pode obter um abatimento nos custos finais…». O resto, imaginem vocês.

18 Fev 2021

Gógou, a insubmissa

10/01/21

Falam em árabe, na mesa do lado, em voz muito alta, e parece-me que cada um deles só comunica ao outro o que lhe falta. Instala-se uma aspereza gutural que cospe caroços e recorta em modo rouco aquilo que é.
Falam e pressinto o ar desmembrado à navalhada ou palpita-me que estou prestes a surpreender esse insólito momento em que um coração se funde num cacto.
Lá fora, as folhas da acácia vermelha, finas como dedos, tocam ao vento um piano invisível.

11/01/21

«A tragédia do homem isolado interessa-nos naturalmente muito menos que aquela da coisa pública, causada pelo homem isolado», anotou Brecht, a propósito da peça de Shakespeare, Coroliano, em 20/05/51, nos seus Diários de Berlim. Fala do homem que se acoita no poder. Mas também Brecht, como Coroliano, pensava o seu papel insubstituível na esfera de acção cultural na RDA e a sua tragédia pessoal foi a merencória tristeza com que se foi apercebendo que a sua “liberdade” era cada vez mais um adorno do regime. Daí que, como defende Hannah Arendt, foi, paradoxalmente, quando reuniu as melhores condições de trabalho que a sua criatividade como dramaturgo diminuiu. Nos últimos anos, Brecht era claramente um homem esgotado. Embora sejam notáveis os poemas “mínimos” que foi escrevendo com uma limpeza e uma sabedoria “muito chinesas” e que constituiriam as Elegias de Buckow. Eis algumas:

DIA QUENTE

Dia quente. Com a pasta de escrita nos meus joelhos/ sento-me no caramanchão. Um barco verde/ cruza os prados à vista de todos. Na popa,/ uma freira gorda com vestes grossas. À frente dela,/ um homem idoso de roupa de banho, provavelmente um padre./ No banco de remo, remando com afinco,/ um rapazote. Como nos velhos tempos! Penso,/ como nos velhos tempos!

FUMAÇA/ A casita sob as árvores à beira do lago./ A fumaça sobe do telhado./ Em faltando,/ como ficariam desconsolados/ casa, árvores e lago.
ABETOS/ Pela manhã/ são acobreados os abetos./ Era já assim que os via/ há meio século atrás,/ duas guerras mundiais atrás,/ com olhos jovens.

12/01/21

Lembremo-nos de Nunca ao Domingo (1960), de Jules Dassin, uma variação, em farsa, do mito de Pigmalião.
No porto de Pireu, mora Ilya (Melina Mercouri), uma prostituta independente e popular, de espírito livre e generosa, que aos domingos convida os seus clientes para sua casa, apenas para entretê-los com comida, bebida e música, grátis.

Chega à cidade um intelectual americano, Homer Thrace (Jules Dassin), procurando as causas do declínio da Grécia de Platão e Aristóteles. Ao conhecer Ilya e seu modo de vida, conclui que ela é o símbolo vivo das causas do declínio, e propõe-se a uma campanha para “salvá-la” por meio de sua educação, o que permitirá que ela abandone a prostituição e encontre uma vida melhor.

Na luta entre o normativo e a “joie de vivre” é o educador quem acabará por ceder.
É um filme maravilhoso e desopilante e absolutamente anarca, e a força de Ilya, que mete de pantanas a propriedade privada e qualquer moral burguesa, arrasa tudo, como quem não quer a coisa. Neste filme, o desespero é o cancro social e a alegria ontológica.

Este filme devia ser vendido como complemento do livro de Katerina Gógou, Três Cliques à Esquerda… (Barco Bêbado), outra grega anarca, actriz e poeta, devastadora, inclemente e suicida, e onde tudo funciona absolutamente ao contrário: o cancro devém ontológico, posto que não se enxerga escapatória ao mandamento social.
Katerina (1940-93) propõe então o combate: «Sei que há areais infindáveis/ e árvores junto ao mar/ e que o amor é uma coisa maravilhosa./ Mas antes era preciso acabarmos com os porcos.», e avisa o rebelde que não espere descanso ou recompensas, de que só lhe restarão alguns pequenos prazeres sornas arrancados à voragem da rebelião: «A nossa vida é/ bofes de fora em vão/ em greves combinadas/ bufos e carros-patrulha./ Por isso é que te digo./ Da próxima vez que dispararem contra nós/ nada de dar à sola. É medir forças contra eles./ Nada de vender a nossa pele ao desbarato pá./ Não. Chove. Dá-me um cigarro.»

É um livro exasperador, sem um poro que não esteja betumado pelo desespero: «Enlouqueço dentro de um sonho/ meu e dos meus amigos, em sucessivos ataques de nervos/ choros histéricos, vómitos de bebedeira e nojo/ tentativas de suicídio e inúteis/ resoluções/ de mudar de vida.»

Quando este seu livro apareceu em 1978, propagou-se como uma labareda e vendeu mais de 40 000 exemplares. Neste momento, está a ser redescoberto e traduzida por toda a Europa. Talvez Katerina Gógou esteja para estes tempos de biopolítica como Maiakovski esteve para a revolução russa: puro arame-farpado, é um grito necessário porque nos coloca a nu. E, como a do russo (ou a de Brecht), esta não é uma arte blindada; truculenta, anti-retórica, não se imaginem aqui sentidos figurados, costuras, dependências ou auto-complacências que se acalentem ou fiquem por expôr:

« Bom dia doutor./ Não./ Não se levante. De resto, não tenho nada de grave./ O do costume./ Passe-me valium metaqualona triptizol — já sabe de cor —/ Torne-me socializável/ arrume-me, vá,/ junto dos seus semelhantes/ junto aos seus bufos/ foda-me se quiser/ bonitas as gravuras na parede./ Aqui tem uma nota de mil/ e dê-me lá a receita/ porque já perdi a paciência meu paneleiro de merda/ e dê por onde der vou rebentar./ Não. Não se levante doutor. Não é grave./ Obrigada./ Muito bom dia.»

Leia-se este livro como uma espécie de A Arte de Rebelião Para as Novas Gerações, na esteira do justamente famoso livro de Raoul Vaneigem. Sobreavisando: não se espere consolo, o livro detona, como um convite à decisão.
Esta edição da Barco Bêbado é, mais uma vez, belíssima, com desenhos fortes de Gonçalo Pena e um grafismo à altura, cheio de punch, de Paulo da Costa Domingos, a demonstrar que alguns mais velhos estão para durar.

14 Jan 2021