Amélia Vieira Via do MeioEstilhaços « …uma das suas cabeças parecia ferida de morte; mas a ferida de morte tinha sido curada. E maravilhados, todos os habitantes da terra foram atrás da Besta» Apocalipse, 13 Um livro do fantástico encerrará sempre muitas casualidades adicionais e outras que vamos acrescentando, porém, e ressalvadas as devidas comparações, ainda se admitia que a segunda quinzena de Julho traria coisas assim como as relacionadas com a temível estrela Algol fazendo conjunção com Marte e Úrano numa área reservada a partir do pescoço, inclusive. Mas se é certo que a sorte protege os audazes, já o azar nos bate à porta com os fragmentos dos impactos balísticos, que as balas, vá-se lá saber porquê, atingem mais os idólatras, que esses sim, em horas descomunais dão lições de grande abnegação e pura valentia. Acontece sempre a mesma estupefacção dianta da «Alice no País das Maravilhas» e do monumental livro do Apocalipse, faltando-lhes ali qualquer coisa de sustentabilidade humana, graça, leveza, e algum secreto amor. Mas nem por isso se deixam de revisitar como se fossem tratados das nossas próprias incompetências interpretativas, e não há que iludir a pouca capacidade e desconhecimento que a humanidade tem perante universos que escapam ao dom da sua própria sobrevivência. São dois livros brutais. Mas o que aqui nos traz é o arrojo do não baleado tendendo a um reino bem mais protegido que aquele de uma rainha de Espadas, um reino trevoso, que tem certamente os seus guardiões e precisa dele para um grande ataque final ao reino dos adormecidos. Aliás, todo aquele reino é já uma derrocada, o amigo, o inimigo, figuras patéticas: exemplos terminais de um estado civilizacional num espectáculo moribundo e senil que não lembra ao diabo. No entanto, a mal fadada estrela Algol preside à mais temível estrela de Perseus com cabeça de Medusa, essa Górgone que ele decapita com espada certeira tornando-se um semideus benigno e de grande coragem com referência mais tarde na Revolução Francesa – cortando tudo aquilo que ao corpo não pertencia. E as datas são as mesmas. Para os chineses ela foi considerada muito simplesmente como a esposa do diabo, mas a China parece muito distante destes confrontos mediterrânicos que galgaram o Atlântico até ao outro lado. Seja como for, estávamos já a festejar a Revolução Moderna da nossa civilização, mas eis senão quando interrompemos a Marselhesa. Hoje 15 de Julho, era Júlio César a nascer – e é claro que ninguém faz Revoluções no Inverno – e pensar que nada de profundamente significativo mudou nas trincheiras da nossa humanidade causa em todos nós reflexão e desespero. Ele nasce da primeira cesariana – daí, o nome César – que nesta Algol transcendente, capciosa e total, vislumbramos essa injustiça que os homens não podem esquecer. Há grandes terrores subterrâneos, supremacias tresloucadas, jovens efebos atirando contra velhos decrépitos e malsãos, e punhados de homens amantes esquartejando-se. Que Trump fosse ferido é sem dúvida de lamentar, mas isso não nos deve interessar; afinal, ele está aí para o que der e vier em todo este imbróglio, e que o outro esteja neurologicamente afectado pouco interesse também transmite, que a velhice se tornou uma constante com a qual todo o Ocidente tem de lidar, mas onde outros bem mais velhos parecem ainda muito mais respeitáveis, isso é um facto. «Quem semelhante à Besta? Foi-lhe dada uma boca para proferir palavras eloquentes, e deram-lhe também o poder de agir durante quarenta e dois meses»
Amélia Vieira Artes, Letras e Ideias hApocalipse [dropcap]E[/dropcap]sperar. O dia frio, o atravessar do rio e subir a noite até onde a tarde chegar. Recuperar. Tudo o que é frágil, cristais e longos braços, que o adeus é forte para quem já está no mar. Silenciar. Pouco para dizer, para nascer, encrespadas as águas geram pragas, e nós não vamos nadar, vamos na viagem já sem poder andar. Navegar. Nesse céu que é uma oblata sem a sua Via Láctea – que ela também nos banhara – assim, de um leite que predissera o mel das Abelhas, sem Terra Prometida nas nossas entranhas, humanas e velhas. Seguir. Nos caudais pela costa rochosa, que tudo se evola, anzóis que suspensos ferem os lençóis molhados de vento. Querer. Que as sortes se joguem e as fontes não jorrem, que se tudo em nós amanhecesse longe destes postigos, levaríamos ainda assim esses quilómetros de lamas dos locais perdidos. Olhar. E ao redor só há muros que fazem escuro todo o respirar, reposteiros altos vendam a passagem, nada se deslinda e a vida vive ainda… Soltar. As mãos laças, que por nós tudo passa, deixemos passar. Corre trágico o momento, das rugas da aurora cobrem-se os ventos, e de repente, um outro firmamento! Querer. Olhar os que estão, mais os que se vão, não ter no tempo mais ida nem vinda. Mas na quimera, nessa onda prateada, quem nos segue, quem nos limita a entrada? Caímos! O que os rins cingem e os rios seguem vai perdido e toda a natureza padece de sentido. Partir. À tua frente marcham os tambores, parece a hora da dança, mas é na nossa esperança que na dança se dança a todo o vapor. Corrente maior! O som da chuva, o som do sol, e a subida demiurga do canto de rouxinol. O rio é fronteira por belo que seja, e agora, são altas fogueiras que tangem, que tecem… Tejo tágico. Paredes de água são altas e esguias… guindastes vorazes. É para o alto que se vai. E saltarão os elementos de onde agora só saem sinais. Padecer. Tamanho é o encontro, talvez encantado, que a vida no limite é sempre buscar o lenho e continuar sossegado. Se estamos altos, altos ficamos, se estamos em baixo, para o fundo nos vamos. No sopro do tempo que morre, há um Holocausto, há Fausto, (rede) morrido nesse tráfego. Ninguém dará pela chegada, e já tarde, quando tudo tardar- o baloiço da Terra gira alto- como se fosse crescer…. a Vida, uma espuma vazia que a secura segura na trancada criatura. No verso, na prosa, neste lençol de malvas e de tules, há ataúdes, singulares acordes de uma música esquecida plangente de olfactos, que a tempestade tem cheiro e se sente nos asfaltos. Nós, que trabalhamos para o esquecimento e dele falamos como intento, lavaremos as mágoas. Cobertos. Ora no rosto, ora na sombra, a Hora soma, cresce o dia mais banal que as vontades, e nesse instante guia por águas filtrado, repousa o céu de um ciclo que é findo e nunca nos foi dado. Toda a matéria escorrega na superfície do azul, e mortas sementes recorrerão ao estrume, que as novas transplantações dos órgãos desfeitos serão como peças para corpos mais perfeitos. Enquanto a Bela dorme, gela o seu Pólo maior, coberto de silêncio como se não tivesse visto a dor. Atravessar. Os astros que findos magos não percorrerão, nas noites azuladas, nos satélites que espreitam, que já há Luas sem descanso enquanto brilham nuas estrelas de antanho. São crepúsculos, fogos de Santelmo, a memória naufragada, que a nossa Barca ardeu, e Deus nos esqueceu. Renascer. Da abóboda, glacial etapa como juramento aos frios. Dos Infernos, a lôbrega santidade toda de breu seguirá viagem sem saudar em nós esse irmão a quem não quis dizer adeus. Jurámos não esquecer o esquecimento votado, por isso- por causa disso- nunca seremos condenados. Outro Céu e outra Terra, que esta se partiu, restou enfim, na escura gruta um homem só que ainda existe, sem saber quem dele fugiu. A memória vasta, as fontes intactas, caminham…! Ciber fronteira… E apaga-se a Fogueira.