Paulo José Miranda h | Artes, Letras e Ideias“A morte de um apicultor” 1 Esta será a primeira de quatro partes à volta de um livro do escritor sueco Lars Gustaffson, «A Morte de um Apicultor». A edição usada nas nossas citações é a da editora Marcador, na tradução de Mélanie Wolfram e Afonso Cruz. A seguir às citações, entre parêntesis, aparece o número de página desta edição. A edição original é de 1978. Estamos perante um livro «sui generis», por várias razões. Primeiro, porque se trata de um livro composto por 3 cadernos, de cores e temáticas diferentes, deixada por um professor primário, que nos conta a história a sua história, embora tenha sido organizada por uma outra pessoa, que é quem começa a narração do livro. Como se o escritor se colocasse de fora do que está a escrever e nos dissesse: isto que vão ler não fui eu que escrevi, apenas organizei. De imediato, faz-nos lembrar de uma peça famosa de Pirandello, Esta Noite improvisa-se, onde no início é o encenador que vem ao palco, não para desculpabilizar-se, como faz Gustaffson no início do livro, mas para dizer que aquilo a que os espectadores vão assistir não é da responsabilidade do escritor Luigi Pirandello, mas dele, o encenador. Embora ao contrário, com uma estratégia inversa, estamos perante o mesmo artifício: a de fazer com que o escritor não seja o foco da atenção do leitor ou espectador. Embora o problema da dificuldade de identificação do que é real e do que é ficção seja muito maior em Pirandello do que no escritor sueco, pois a obsessão filosófica primeira de Gustaffson é a linguagem. E adiantei-vos uma citação: «Contrariamente ao que acontece com a percepção das cores, a linguagem não desenvolveu palavras específicas para definir as sensações das dores. Elas não têm nome.» Faltam-nos palavras, não apenas para nos expressarmos, mas para nos conhecermos. Ainda nos falta palavras para sabermos quem somos. Isto sempre foi uma preocupação maior do filósofo Wittgenstein. E estas preocupações no livro de Gustaffsson alargam-se no terceiro capítulo, «A Infância», onde o narrador lembra várias expressões que ouvia na infância, em reuniões familiares, e analisa-as para além do esperado, isto é, escalpeliza as expressões tentando mostrar o que está de facto por detrás daquelas frases que são repetidas quase sem se pensar nelas. Dou alguns exemplos: «para cúmulo da desgraça»; «uma pessoa que eu cá sei» ou «é sempre a mesma merda». Quase no final do terceiro capítulo «A infância», lê-se: «Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Mas além da questão do entendimento ou não entendimento da linguagem, Gustaffson liga o uso compulsivo dela, o estarmos sempre a falar como uma espécie de procura de redenção ou, pelo menos, um acreditar que alguém nos ouve. Que alguém nos ouve sinceramente. Leia-se: «Liberta a humanidade sofredora / Mas primeiro liberta-me a mim, porque fui quem sofreu mais. / Basta apanhar o eléctrico durante uns quilómetros para perceber a situação. E não conseguirem queixar-se de nada, queixam-se das suas sagradas doenças, das dores dos joelhos, das pedras dos rins, das úlceras, das veias inflamadas, dos soluços e das azias, das diarreias ou das fezes duras como rochas, que fazem barulho ao bater no fundo do penico. / E enquanto falam disso, imaginam que alguém lhe dá importância, só por se queixarem.» (93) O problema da linguagem assume uma duplicidade: o parco conhecimento que temos da linguagem em si mesma e o esperarmos que ela nos liberte da dor ou, pelo menos, nos traga empatia. É esta a razão por que se reza. Rezar é esperar que as palavras que dizemos são escutadas, verdadeiramente escutadas, que alguém realmente nos ouve. O facto das palavras se fazerem ouvir fora de nós, pelos outros, e de também muitas vezes se fazerem compreender, como por exemplo «passa-me o sal», faz com que se extrapole para um «nós podemos ser compreendidos» ou, na tese mais radical «a nossa necessidade de consolo pode ser satisfeita ao falarmos». Mais: a linguagem impõe que o outro preste atenção em nós. Por isso se diz que é falta de educação não responder. Como se a linguagem nos obrigasse a responder. Se alguém te diz «bom dia», tens de responder de acordo com isso. Neste livro, mais do que o problema da incompreensão, de não sabermos o que estamos a dizer com o que dizemos, a linguagem cria a ilusão de que podemos ser escutados. Ou seja, a linguagem cria a ilusão de que ao falarmos alguém se aproxima de nós, alguém cria empatia por nós e que de algum modo o mal que sentimos ameniza ou sara. De tal modo, que o narrador identifica a única forma de retórica das camadas inferiores da pequena burguesia sueca: a lamentação. Como se o exercício da lamentação os redimisse de alguma coisa. Lamentar é uma forma de rezar na direcção do outro, ao invés de na direcção de Deus, esperando que os pedidos sejam atendidos. Em relação à linguagem é brilhante aquelas páginas em que, depois da visita dos jovens de 12 anos, adeptos de histórias de terror, surge aquela história fantástica acerca da origem da dor e dos seus meandros, «O Grande Órgão da Ilha de Og», para logo de imediato nos surgir uma descrição «científica» do que é um cancro. Dois modos distintos de abraçarmos a linguagem, e duas idades completamente antagónicas a infância e a idade adulta. A linguagem nunca é a mesma ao longo da vida, ainda que as palavras possam ser. Leia-se esta passagem, também do terceiro capítulo: «É sempre a mesma merda. Vamos para a escola, depois para o liceu, depois para a universidade, e passamos por várias represas que nos levam a uma linguagem cada vez mais refinada. E mais abstracta.» (125) No fundo, o narrador entende que a linguagem está ligada ao mundo que se tem. As palavras podem ser as mesmas, ou quase as mesmas, mas o sentido torna-se diferente no mundo que se tem. E este mundo não é apenas o mundo que se abre com as diferentes idades de uma vida, é também no interior de uma classe social, no interior de um modo de se viver, que o narrador identificava claramente quando era professor. Escreve: «A linguagem da classe média era a mais indefinida de todas. […] Sabemos o que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos.» (126) Por tudo isto e o muito que se verá ainda nesta minha leitura, estamos diante daquilo a que o próprio autor chama, quase no final do livro, de antropologia mística. No mesmo sentido que Wittgenstein denomina tudo aquilo que podemos saber para além da lógica. Para além da lógica há a mística. Porque não nos é possível outra coisa senão traçar um mapa de ilusões, mais ou menos plausíveis. (Continua na próxima semana)