Kafka e o medo do anonimato

Alfred Perkins Jr. (1923-2001) foi professor de literatura comparada na universidade de Stanford durante décadas, publicando vários livros e textos em revistas da especialidade, até ao aclamado «Medo do Anonimato», em 1996.

Neste livro, na primeira parte, Perkins Jr. traça uma evolução do romance ao longo dos séculos e, na segunda, mostra-nos como a ideia de anonimato sempre foi o grande propulsor do romance. Perkins Jr. conduz-nos através de uma dialéctica subterrânea que se estabelece entre o medo do anonimato e as personagens que o escritor cria.

Antes de mais, temos de ver aquilo que o autor define como anonimato: «No escritor, o medo do anonimato não é o medo de não se tornar conhecido, mas antes o medo de não se conhecer a si mesmo, de não encontrar a “sua voz” como escritor. Assim, anonimato é ser igual aos outros, mesmo que se seja muito conhecido. No fundo, aquilo que acontece a tantos escritores de sucesso. O caso mais paradigmático é o de Kafka. Mais do que querer ser conhecido, ele queria conhecer-se, não no sentido do filósofo, mas no sentido de encontrar a sua expressão autêntica, a sua identidade. Porque a identidade do escritor firma-se na página escrita.»

Alfred Perkins Jr. estabelece então, ao longo de toda a segunda parte de «Medo do Anonimato», uma dialéctica entre as personagens dos romances de Kafka e o medo do anonimato. «No escritor, o medo do anonimato transforma-se na vontade de superação de si mesmo ou, de um modo que assenta melhor no que aqui está em causa, o medo do anonimato leva o escritor a “tornar-se aquilo que se é”, como escreve Nietzsche em “Ecce Homo”.

O medo do anonimato é, assim, não apenas o propulsor do escritor, mas fundamentalmente o propulsor do romance. É no exercício da escrita que o escritor deixa o anonimato.»

Este medo espoleta uma dialéctica entre escrita e escritor ao ponto de as personagens se tornarem, elas mesmas, campo de batalha entre o «anonimato» e o «tornar-se quem se é», como nos casos exemplares – segundo o autor – de K. em «O Castelo» e «O Processo» ou Gregor Samsa em «Metamorfose». Leia-se esta passagem acerca deste último livro: «Desde o início, Gregor Samsa é a expressão máxima do medo de não vir a ser quem é, não apenas pela família que carrega às costas, pelo trabalho que lhe ocupa todo o tempo ou pelo mau patrão que tem, acima de tudo o medo do anonimato advém de desperdiçar a vida que tem por pôr a responsabilidade pelos outros acima da responsabilidade pela vida que lhe deram. Saber quem é é a tarefa a que não pode furtar-se, mas à qual se tem furtado continuamente. Por isso, e como uma espécie de maldição, não apenas acorda transformado num insecto desconhecido, mas tem de viver até à morte a tentar compreender não apenas o que é, mas como lhe aconteceu vir a ser o que é. No fundo, aquilo que deveria ter feito antes da transformação.»

As análises de Alfred Perkins Jr. surpreendem-nos continuamente ao longo do livro, principalmente na segunda parte, onde pairam as sombras de Platão, de Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger, ainda que o autor só faça menção a esses pensadores e não reflexões acuradas. Veja-se, como exemplo, esta passagem sobre K. de «O Processo»: «Contrariamente a Gregor Samsa, K. não acorda transformado num insecto, mas num anónimo infinito. Gregor, desde o início, que é instigado a descobrir quem é, K. acorda tendo a noção clara de não saber nem quem é nem o que está a fazer e o que estão a fazer com ele. K. é a expressão acabada do “das mann” de Heidegger em “Ser e Tempo”. [Podemos traduzir “das mann” por “o impessoal” ou até por “os muitos”, para ligarmos à expressão de Platão “oi polloi”, mas “das mann” é traduzido literalmente pelo “on” francês. Como escreve, Alfred Perkins Jr.: «No fundo, trata-se de não ter voz»]

Se não fosse o romance de Kafka, K. nunca chegaria a descobrir que não é ninguém. K. não é instigado a tornar-se ele mesmo ou a descobrir quem é, é notificado de que não é ninguém, de que não tem voz. É como se K. recebesse uma notificação do estado a dizer-lhe: “Você não tem voz. É um dos muitos, indistinto, impessoal. Você não chega a ser pessoa.” Ou melhor, ele é uma pessoa que não chega a ser pessoa, como a esmagadora maioria de nós todos.»

Curiosamente, na primeira parte do livro, o autor identifica os textos da Bíblia como os primeiros textos em que se expressa o medo do anonimato. Leia-se: «O anonimato é definido apenas em relação a si mesmo, ao identificar Deus como a origem de si mesmo, o escritor está a lembrar ou a sublinhar a importância de descobrir a sua própria voz. Só ao encontrarmos a nossa própria voz, podemos ser ouvidos por Deus. Desde a Bíblia, o medo do anonimato não se define pelo medo de não ser ouvido pelos outros, mas por Deus.» Ao longo do tempo, Deus muda de face, de identidade, até deixar de existir, mas nunca se transforma nos outros. Um exemplo que Perkins Jr. dá, ainda na primeira parte do livro, é o das personagens de «À Espera de Godot», de Samuel Beckett. Escreve: «Aqui, Deus é o Absurdo. O escritor sabe que chegar até a si, até à sua voz, é chegar ao “absurdo”. “Absurdum” não é apenas aquilo que é contrário à razão, mas aquilo que não se consegue ouvir (ab-surdum). Assim, o escritor tem a noção clara de que se encontra num tremendo paradoxo: a voz própria que procura, ele mesmo, não se pode fazer ouvir. O escritor suspeita que não está mais só com Deus e nem sequer só com ele mesmo, está só com nada. Ele mesmo não pode ser ouvido. E este não poder ser ouvido não é apenas pelos outros, é por ele mesmo. O absurdo é ele mesmo, que não se pode fazer ouvir e nem sequer ouvir-se a si mesmo».

No momento em que se celebram os 20 anos da morte de Alfred Perkins Jr. e os 25 anos de publicação de «O Medo do Anonimato», sugiro que se volte a ler esta preciosidade.

23 Mar 2021