2020 ainda não acabou

Com inusitada prudência e generalizada desconfiança se foi celebrando, mais ou menos silenciosa e tristemente, a entrada em 2021, o ano que se segue ao da pandemia global que por muito tempo ficará na memória de toda a gente como o que trouxe o coronavírus à nossa intimidade e que, em maior ou menor escala, nos roubou a proximidade dos relacionamentos, pessoais, profissionais ou circunstanciais, remetendo grande parte da nossa vida afectiva para etéreos universos digitais e impondo, para quem pode, processos de trabalho à distância, geradores de novas incertezas e ansiedades mas ainda assim largamente preferíveis ao risco da convivência em espaços públicos ou às tragédias pessoais e colectivas do desemprego.

Em todo o caso, mesmo com o notável progresso que a ciência parece ter proporcionado com o desenvolvimento acelerado de vacinas aparentemente eficazes e seguras, nenhum dos problemas que o covid-19 trouxe às sociedades contemporâneas está sequer perto de ficar resolvido. Na realidade, novos problemas vão acumular-se: apesar da mudança do calendário, 2021 não só nos obrigará a viver com os mesmos impactos imediatos da omnipresença de um vírus altamente letal e contagioso, como nos trará ao quotidiano os primeiros sinais dos impactos de médio-prazo que esta pandemia nos obriga a viver. Ainda que se vislumbrem soluções médicas – inevitavelmente lentas – o novo ano será sobretudo tempo de juntar novos problemas às dificuldades que a pandemia nos trouxe e que vão persistir.

Ainda que o vírus continue entre nós – e em força – algumas marcas do que será uma sociedade pós-covid começam já a ser evidentes: recessão económica generalizada, falências, desemprego, concentração de riqueza, aumento da pobreza, intensificação das desigualdades sociais e reforço dos desequilíbrios de poder do capital sobre o trabalho num contexto de enfraquecimento da capacidade de intervenção e regulação dos estados. Apesar da imensa profusão de estudos, relatórios técnicos e produção científica que vou acompanhando nos domínios que por motivos profissionais me são mais familiares – desenvolvimento regional, planeamento urbano e economia do turismo – nenhuma destas questões parece ser vista como uma preocupação central ou mesmo como uma característica razoavelmente relevante no processo de reorganização de processos produtivos e relações sociais que possa resultar da erradicação definitiva do infame vírus que tão abrupta e categoricamente colocou a economia global em inevitável quarentena e as comunidades planetárias em justificado pânico.

Na maior parte dos casos, o que leio sobre o assunto em contributos de ciências sociais diversas ou em documentos de orientação política parece na realidade mais próximo da ficção do que da análise científica. Neste caso, diria mesmo, muito mais próximo da má ficção científica, a que se deixa fascinar cegamente pelo brilho de prometidos radiosos futuros nutridos por progressos extraordinários das tecnologias – no caso as digitais, naturalmente, com a sua parafernália de redes, sensores, conexões, interações, dados (“big data” e outras magníficas formulações), análises em tempo real, simulações, enfim toda uma parafernália de instrumentos que tornarão mais “inteligentes” (“smart”, na mais modesta expressão inglesa) as nossas cidades, economias e vidas quotidianas – mas que pouco se atrevem, afinal, a explorar as contradições, conflitos, exclusões ou tensões sociais e psicológicas que comunidades e pessoas estão a enfrentar com cada vez maior intensidade, como seria próprio da boa ficção científica.

Tomo como exemplo recente relatório publicado pela OCDE (Organizações para a Cooperação de Desenvolvimento Económico), que graças aos seus portentosos recursos e experiência acumulada mobiliza quadros técnicos de indiscutível qualidade e sapiência para a produção de informadas e sólidas análises que em grande medida enquadram e definem o essencial das opções de política económica dos países mais desenvolvidos do planeta. Em estudo publicado nos finais de 2020 (OECD Regions and Cities at a Glance 2020) aborda-se também este futuro que se considera próximo para as sociedades pós-covid, enfatizando a importância dessas tecnologias digitais, as virtudes do tele-trabalho, a reorganização dos serviços de saúde, a aceleração da transição para uma economia pós-carbono ou a renovada atractividade de zonas rurais e pequenas áreas urbanas em tempos de alta conectividade digital e generalizada preocupação com a proximidade física. Como de costume, ficam de fora as questões de poder ou as assimétricas situações de vulnerabilidade que diferentes pessoas ou grupos sociais têm que enfrentar. Quando muito, referem-se assimetrias regionais na resiliência com que se reage a este devastador impacto.

E no entanto há evidentes assimetrias dentro de cada região, de cada cidade, de cada comunidade. Aprofundaram-se com a generalização da pandemia e vão aprofundar-se à medida que avançamos por 2021. Estão ligadas, reforçam-se mutuamente e constituirão um ciclo que marcará durante mais tempo a economia da catástrofe que estamos já a viver. O ponto de partida é o do costume: uma recessão económica global, prolongada e generalizada, com os decorrentes encerramentos de empresas, evitáveis e inevitáveis, a marcar o ritmo dos despedimentos, da subida do desemprego e da desvalorização do trabalho, sempre proporcional ao aumento do desespero.

Ao mesmo tempo, a contemporânea mobilidade de capitais permite reorganização quase instantânea, mobilização de recursos financeiros para os negócios mais adequados a cada circunstância – e também os há em tempos de pandemia ou outras crises, como temos visto abundantemente. Mais uma vez, crescem as fortunas multi-milionárias do planeta, acelerando e intensificando a concentração de riqueza e aprofundando desequilíbrios e desigualdades de classe. Este aprofundamento dá-se num contexto específico, em que os estados se vão encontrar particularmente vulneráveis, a ter que suportar custos imprevistos para a contenção dos impactos imediatos da pandemia (saúde, subsídios, apoios sociais, etc.) e a ver reduzidos os seus recursos (menores receitas fiscais como consequência da recessão económica).

O resultado é mais do que económico e traduz-se em mais um passo significativo para a reconfiguração do poder a que temos assistido desde os anos 1980, em maior ou menor grau consoante as geografias mas com evidente tendência planetária: um sistemático desequilíbrio na relação entre o poder do capital (cada vez mais concentrado) e o valor do trabalho (cada vez mais isolado), num contexto de sistemático enfraquecimento da capacidade de intervenção e de regulação dos estados. Os anos pós-covid já começaram e parecem ir reforçar ainda mais estas tendências globais, mesmo antes da erradicação do vírus. A reconfiguração das cidades, sociedades e quotidianos vai ser feita gradual mas implacavelmente e de acordo com os interesses de quem vem acumulando e concentrando poder. São coisas que parecem interessar pouco na discussão pública, no entanto.

8 Jan 2021

Bons auspícios para 2020

[dropcap]N[/dropcapa]este primeiro artigo de 2020, desejo um feliz Ano Novo a todos os meus leitores e a concretização de todas as suas aspirações. Rezo também pela paz mundial e para que todos tenham saúde e sejam felizes.

Para Hong Kong, que tem vivido períodos conturbados, espero que seja possível reencontrar a paz neste ano que agora começa.

No dia 2, a Hong Kong TVB transmitiu uma notícia sobre quatro casos que estão a decorrer em tribunal. No primeiro, o réu está a ser julgado pela destruição do anúncio luminoso colocado na entrada da Hongkong and Shanghai Banking Corporation. O réu também terá entrado no edifício da administração central financeira do Banco e destruído uma máquina de depósito de cheques, duas máquinas de depósito de dinheiro e quatro ATMs. O réu foi acusado e considerado culpado desta ofensas. O juíz não aceitou a fiança e pediu que cumprisse a pena num centro de desintoxicação.

O segundo caso é conhecido de todos. Um indivíduo encapuçado agrediu, com uma grelha de drenagem, um trabalhador que se encontrava a desimpedir o acesso a uma rua bloqueda por barricadas. O agressor foi acusado de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança e encaminhou o caso para julgamento.

O terceiro caso foi muito falado na comunicação social. Umas pessoas que estavam a tirar fotografias foram atacadas por um casal que usava máscaras. O agressor atacou as vítimas com um pau, enquanto a mulher abria um guarda chuva para impedir que o ataque fosse visto. Foram ambos acusados de atentado grave à integridade física. O juíz recusou a fiança.

O quarto caso está relacionado com cocktails molotov. O réu foi encontrado com dois cocktail molotov, duas latas de gás butano e um martelo. Foi acusado de posse de armas ofensivas. Foi considerado culpado e condenado a 12 meses de prisão.

Para além destes quatro casos, a Hong Kong TVB também noticiou no dia seguinte mais três situações. Na primeira, várias pessoas foram encontradas na posse de armas ofensivas. Um dos réus, a quem chamaremos Mr. A, já tinha sido julgado em Setembro por um caso similar. Por ser reincidente, Mr. A não teve direito a fiança. O outro réu, a quem chamaremos Mr. B, era professor assistente numa Universidade de Hong Kong. O réu foi encontrado com 22 paus, dos quais 20 estavam afiados. Foi acusado de posse de armas ofensivas. O juíz concedeu-lhe fiança e o caso foi agendado para julgamento.

No caso seguinte, o réu tinha escrito “bestas” nas barreiras policiais, um insulto à polícia. Foi preso e acusado de danos criminosos. Foi condenado ao pagamento de uma multa de HK$2.000.

O ultimo caso refere-se a um homem que atacou um carro da polícia com uma mala com rodas, durante uma manifestação. O réu foi acusado de atentado à propriedade publica. Foi condenado a uma pena suspensa de 15 meses.

Todos estes relatos indicam que ultimamente a polícia de Hong Kong não tem estado apenas focada nos distúrbios provocados pelos manifestantes. Só combatendo o crime se lhe pode pôr fim. Espero que este início auspicioso indicie que Hong Kong está voltar gradualmente à normalidade no ano que acabou de entrar.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado do Institto Politénico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk

7 Jan 2020