Três ensaios de prosa chinesa

Tradução de André Bueno

 

Nota sobre o Pavilhão Yueyang

Considero que a beleza de um lugar consiste por completo no lago Dongting. Este lago, bordeado ao longe pelas montanhas que envolvem o rio azul, estende suas águas sem limite nem obstáculo. Refulgente pela manhã, sombrio a noite, mil são suas facetas mutáveis. Assim é a paisagem do Pavilhão Yueyang, tal como descreveram os antigos. Viajantes e poetas, que se reúnem aqui com freqüência, podem permanecer indiferentes ao encanto da natureza?

Quando chove sem cessar e o céu leva meses sem despejar-se, quando um vento lúgubre uiva furioso, criando ondas turbulentas, quando o sol e as estrelas têm seu brilho velado, quando as colinas e montanhas se desvanecem, quando viajantes e comerciantes deixam de circular, quando os mastros se rompem e os remos se quebram, quando está escuro já ao entardecer, quando os tigres rugem e os macacos urram, os que estão longe de sua terra natal e a levam no coração, os que sofrem calúnias e injustiças, ao subir neste pavilhão e testemunharem tal espetáculo de desolação, sentem exacerbar-se suas emoções e dores.

Mas, quando a primavera é aprazível e a paisagem luminosa, quando a água esta límpida e não se distingue do céu, quando o lago é uma imensa turquesa, quando as gaivotas voam soltamente e se reúnem em bando, quando os peixes saltam, quando nas margens as íris e as orquídeas exalam seu perfume; ou quando um véu negro oculta o céu, quando brilha a lua a mil léguas, quando seu brilho se derrama como ouro liquido através de seu reflexo imóvel semelhante a um disco de jade a flor d’água, quando o canto dos pescadores se responde por todas as partes, o gozo que se sente então é imenso, o coração fica despojado e a alma exultante. Se esquecem as honras e os ultrajes, e com um copo de vinho na mão, respira-se a brisa. A felicidade então não tem limites.

Se a reação dos sábios de outros tempos não foi essa como acabei de descrevê-la, qual seria a razão? Esses homens não tomavam o externo como motivo de alegria e nem o pessoal ou o interno como motivo de pena. Se ocupavam altos cargos na corte, sua preocupação era o povo; se estavam exilados, entre rios e lagos, o objeto de sua solicitude era o príncipe.

Esses homens viviam na inquietude tanto quando serviam como quando caiam em desgraça. Quando desfrutavam, então? Para isso só há uma resposta: se preocupavam antes com o que se preocupava o mundo, e se alegravam depois que o mundo tivesse se alegrado. Se não forem estes homens, quem eu tomarei por guia?

Fan Zhongyan (989-1052)

O Pavilhão do Velho Bêbado

Uma multidão de montanhas rodeia Chu. No sudoeste se encontram os picos, os bosques e os vales mais belos. O que se vê, ao longe, imponente, verde e exuberante é o monte Iangya. Caminhando seis ou sete léguas para o monte, se começa a ouvir o rumor de uma torrente que flui borbotando por um desfiladeiro; é a cascata quente. E no lugar em que o desfiladeiro forma um reentrância, o pavilhão do velho bêbado se alça nas alturas junto a cascata. Quem o construiu? Foi o ermitão budista Zhixian. Quem deu esse nome? Foi o governador.

O governador vem com seus amigos para beber no pavilhão. Apenas começa a beber e se embriaga. Com sua idade avançada, se fez chamar de velho bêbado.

A embriaguez do velho bêbado não vem do vinho, senão de sua estada entre os montes e os rios. O gozo da paisagem penetra em seu coração e se manifesta por meio do vinho. Quando sai o sol, as névoas do bosque se dissipam; quando as nuvens regressam para a montanha, as rocas se escurecem. Essa sucessão de luz e sombra são o que dão o amanhecer e o anoitecer ao monte.

Os campos florescem, exalando suaves aromas; as arvores, em seu esplendor, estendem suas frondosas sombras. O vento sopra lúgubre, trazendo o sereno; o céu é alto e límpido, o caudal dos rios baixa, e afloram as pedras do leito. Assim são as estações na montanha. Se alguém sobe à alba e regressa ao acaso, ao longo das quatro estações, os aspectos da paisagem vão mudando, proporcionando ao caminhante um prazer infinito.

Cantam os trabalhadores do vale; os passantes descansam debaixo das árvores; os que encabeçam as marchas gritam com os que estão mais para trás; homens curvados pelo peso de suas cargas vão e vem e cessar. Era uma excursão das gentes de Chu.

Vão pescar na cascata: as águas são profundas, os peixes são grandes. Adicionam água da torrente ao vinho, a água é deliciosa e deixa o vinho picante.

Os manjares do monte, as verduras do campo dispostas em abundancia são o festim do governador. O deleite do festim não procede da música que o acompanha. Alguns desfrutam do tiro com arco, outros jogando xadrez, cartas ou go. Sentados ou em pé, os convidados cantam e conversam em grande algazarra; o homem de rosto violáceo e cabelo calvo e enevoado no meio de todos os outros é o governador bêbado.

Pouco a pouco, o sol do entardecer se põe atrás das montanhas, as silhuetas das pessoas se dispersam e se agitam: o governador e seu séqüito começam a voltar. O bosque escurece, o canto dos pássaros se espalha para quem quiser ouvir; os passantes se vão, e as aves se alegram.

As aves sabem desfrutar os montes e rios, mas não entendem o gozo que estes produzem nos homens. Os homens sabem desfrutar dos passeios, mas não entendem o gozo que este produzem no governador.

O bêbado que pode experimentar este gozo e, uma vez desanuviado, contá-lo por escrito, é o governador. E quem é o governador? Ouyang Xiu, de Liuling.

Ouyang Xiu (1007-1072)

Discurso de amor sobre os Lotos

Das flores que crescem entre as ervas e as árvores, no solo ou na água, muitas são as que podem agradar.

Tao Yuanming, o grande escritor, adorava os crisântemos. A partir da dinastia Tang, as pessoas começaram a gostar das peônias. Somente eu, porém, gosto dos lotos. Brota sem mácula do lodo, se banha em água turva. Não é sofisticado nem chamativo; seu talo é oco e erguido, não tem ramos nem galhos. Seu perfume é puro a distância, distinto, sem máculas. Pode ser visto de longe, mas podemos chegar perto dele e ficar brincando com sua flor por puro divertimento.

Enquanto isso, o crisântemo é, entre as flores, a que mais se oculta deste mundo. A peônia vermelha é, entre as flores, a que mais representa a riqueza e a nobreza. O lótus, no entanto, representa o sábio.

Desgraçadamente, desde Tao Yuanming, poucos são os que apreciam o crisântemo; quanto ao lótus, acho que sou o único, e mais ninguém além de mim. No entanto, todos os outros parecem apreciar as peônias…

Zhou Dunyi (1017-1073)

In Dez Ensaios de Prosa Chinesa, tradução de André Bueno, Agbook, 2011

André Bueno escreve em português do Brasil.

3 Mai 2023

Falando sobre as raízes da sabedoria – Cai Gen Tan 菜根譚

Tradução de André Bueno
(continuação)

 

181.
Tramar intrigas, ter hábitos inconvenientes, fazer coisas estranhas, essas são as causas dos problemas do mundo.
Somente por meio da virtude, no cotidiano, se pode preservar a natureza original, e se conseguir a paz harmoniosa.

182.
Diz um provérbio: ‘ao escalar uma montanha, deve-se suportar a subida, ao caminhar pelo gelo deve-se suportar a ponte perigosa’.*
A palavra ‘suportar’ tem um significado muito importante.
Ao ver corações inclinados ao mal, e uma vida cheia de frustrações, pensamos: ‘quantas pessoas, por não terem a habilidade de ‘suportar’, caem em desgraça, e encontram infortúnios?’
*Gelo quebradiço que ocorre na superfície dos lagos congelado.

183.
Aquele que exagera em seus sucessos, e se gaba de suas criações literárias, depende de coisas externas para agradar a si mesmo.
Não se dá conta de que aquele que preserva a pureza original de seu coração, sem ter grandes sucessos, ou escrever grandes coisas, se realiza como uma pessoa magnânima.

184.
Se em meio às ocupações e dificuldades, alguém deseja um momento de descanso, deve ter autoridade para tomá-lo; se em meio ao ruído e a confusão, alguém deseja silêncio e calma, deve dominar a arte da tranqüilidade;
Do contrário, esse alguém estará sempre sujeito a modificar-se, uma constante vítima das circunstâncias.

185.
Não vá contra o que diz seu coração, não leve suas emoções ao extremo, não esgote suas forças e recursos.
Siga esses três conselhos, e alcançará uma virtude apreciada pelo mundo, a continuidade da vida, e a felicidade para os descendentes.

186.
O serviço público tem dois preceitos: ‘A imparcialidade dá o exemplo, a retidão confere autoridade’.
O cuidado de uma casa tem dois preceitos: ‘Tolerância gera harmonia, simplicidade gera a fartura’.

187.
Quando desfrutar da riqueza, esteja consciente das adversidades, e do risco de cair na pobreza.
Quando aproveitar a juventude, esteja consciente das dificuldades da velhice.

188.
Ao se conduzir de modo apropriado no mundo, não seja moralista demais, e prepare-se para ser insultado e caluniado.
Ao tratar com as pessoas no mundo, não seja exigente demais com elas, e compreenda que são uma mescla de virtude e vício.

189.
Não provoque inimizade com pessoas de baixo caráter, elas já têm seus próprios rancores;
Não louve pessoas já realizadas e superiores, elas não concedem favores de forma ordinária.

190.
Os males causados pelos desejos irrefreados podem ser curados, mas os males causados por uma percepção equivocada das coisas são muito difíceis de curar.
As barreiras formadas pelo materialismo podem ser facilmente eliminadas, mas as barreiras do entendimento são muito difíceis de eliminar.

192.
É preferível a perfídia e a zombaria dos néscios, do que suas louvações e elogios.
É preferível a censura dos sábios, ao invés de sua tolerância e perdão.

193.
Quem é materialista, e prejudica a sua conduta moral; o dano é óbvio e superficial.
Quem persegue a reputação moral, disfarçando sua maldade de virtude; o dano é oculto e profundo.

194.
Receber bondade, sem retribuir;
Pensar em vingança, mesmo diante de uma pequena ofensa;
Dar ouvidos e acreditar em mexericos;
Ver a bondade em plena luz do dia, e não acreditar nela;
Essas são as características de uma pessoa de baixo caráter moral; corte-a de suas amizades.

195.
Quando uma pessoa pequena calunia um Educado, é como uma nuvem que obscurece o sol; em pouco tempo, ele volta a brilhar.
Mas aquele que busca benefícios, em troca de favores, é como um vento ruim; ele invade o corpo, e causa uma doença invisível.

196.
Nas ladeiras altas e inclinadas nas montanhas não crescem árvores, mas os vales com rios e lagos estão cheios de vegetação florescente.
Nas cachoeiras não se encontram peixes, mas os tanques tranqüilos e profundos estão cheios de peixes e tartarugas.
Uma conduta muito severa e rígida, uma mente fechada e um coração estreito são coisas com as quais um sábio cuida.

197.
O Educado é sempre modesto e compreensivo; quem fracassa, em geral, é obstinado e inflexível.

198.
Na vida cotidiana, não se envolva demais com gente pequena, para não cair nas suas vulgaridades.
Ao realizar ações meritórias, não se afaste da gente vulgar, mas também não espere sua aprovação.

199.
O sol está se pondo, as nuvens e o Céu são magníficos ao entardecer;
O ano está terminando, e as folhas de laranjeira desprendem um aroma sublime;
Nos últimos anos de seu Caminho, o sábio já refinou seu espírito cem vezes.

200.
A águia, de pé, parece estar dormindo; o tigre, quando avança, parece cansado; por meio desses disfarces, eles apanham suas presas.
Assim, o Educado não revela sua inteligência, nem faz alarde de seus talentos, e desse modo leva a cabo suas difíceis tarefas.

201.
A simplicidade é uma qualidade virtuosa; mas, levada ao extremo, se transforma em sovinice, mesquinharia vulgar, e atrapalha o Caminho.
A modéstia também é uma boa qualidade; mas levada ao extremo, se transforma em leniência, complacência vulgar, e hipocrisia.

202.
Não se angustie quando as coisas não vão como o desejado, nem se regozije com qualquer prazer;
Não espere que a tranqüilidade dure muito tempo, nem tema as dificuldades para começar uma tarefa.

203.
Uma família que gosta muito de festas e bebidas não é uma boa família;
Um mestre que busca os prazeres da carne não é um bom mestre;
Um oficial que pensa demais na sua carreira não é um bom oficial.

204.
As pessoas tomam por prazeroso aquilo que as satisfaz; mas, quando seus corações estão cheios de prazeres, elas ficam amarguradas.
Por isso, o sábio se compraz com aquilo que contraria seus desejos, e no fim, sua amargura se transforma em alegria.

205.
Quem vive satisfeito e na abundância é como água, a ponto de transbordar: não se pode aumentar uma só gota.
Quem vive em crise e perigo constante, é como madeira a ponto de quebrar: não se pode aumentar nem um pouco a pressão.

206.
Com olhos tranqüilos, observa as pessoas;
Com ouvidos sóbrios, escute as palavras;
Com o coração tranqüilo, perceba os problemas;
Com a mente serena, encontre a razão das coisas.

207.
Um Educado é aberto e generoso, goza de bondade e prosperidade, e faz tudo com verdadeira alegria.
Uma pessoa pequena vive miseravelmente, sua visão é estreita, suas ações são estéreis, e tudo o que faz é com o espírito de avareza.

208.
Ao escutar que alguém fez o mal, não se apresse em condená-lo; podem ser apenas calúnias.
Ao escutar que alguém fez o bem, não se apresse em elogiá-lo; pode ser apenas uma artimanha.

209.
Uma pessoa rude e impetuosa não termina nada;
Uma pessoa tranqüila é abençoada em tudo o que faz.

210.
Ao tratar com as pessoas, não seja seletivo ou exigente demais, ou poderá afastar pessoas que poderiam ser úteis.
Ao fazer amizades, não seja seletivo ou exigente de menos, ou atrairá apenas os bajuladores.

211.
Em meio aos ventos cortantes e chuvas violentas, firme seus pés;
Em meio ao mato alto e campos de flores, olhe para cima;
Em meio a um Caminho perigoso e difícil, olhe para a trilha.

212.
Uma pessoa casta e íntegra cultiva sua amabilidade, e assim, não abre portas para o desentendimento.
Uma pessoas que busca honra e posição deve cultivar a virtude da modéstia, e assim, não abrirá portas para a intriga.

213.
Ao ocupar um cargo oficial, não envie cartas sem selo; seja difícil de ver, evitando oportunistas e bajuladores.
Ao visitar sua aldeia, não seja orgulhoso nem mal humorado; seja fácil de ver, fortalecendo as antigas e verdadeiras amizades.

214.
A uma pessoa de posto alto se mostra respeito, e assim, evita-se a baixeza;
A uma pessoa comum se mostra respeito, e assim, evita-se a arrogância.

215.
Quando as coisas vão contra sua vontade, pense naqueles cuja situação não é boa como a sua; seu sofrimento desaparecerá.
Quando seu coração estiver desalentado, pensa naqueles cujos sucessos superam aos seus; você se sentirá renovado.

216.
Não faça promessas impensadas, com a desculpa de que estava feliz;
Não fique encolerizado, com a desculpa de que estava bêbado;
Não discuta por nada, abusando da vontade alheia;
Não abandone uma tarefa, com a desculpa de que está cansado.

217.
Quem compreende perfeitamente um livro, alcança o ponto em que suas mãos e pés bailam juntos, e ele não cai nem na rede nem no anzol.*
Quem observa as coisas com perfeição, chega ao ponto em que seu coração se funde com o espírito das coisas, e ele não deixa pegadas no chão.**
* Não se atrapalha com as palavras ou pensamentos.
**Agir natural e isento.

218.
O Céu torna alguém sábio para ensinar o povo ignorante, mas no mundo, há quem se vanglorie de seus conhecimentos somente para mostrar aos outros seus defeitos.
O Céu torna alguém rico para que alivie o sofrimento das multidões, mas há quem use da riqueza para abusar e maltratar os pobres.
Ah, essas pessoas ofendem a vontade do Céu!

219.
O sábio não tem preocupações, o parvo não tem entendimento; com ambos, se pode estudar e construir.
As pessoas com propensões destacadas, mas sem um guia, desenvolvem apenas um aspecto da percepção e do entendimento; isso as torna introspectivas e desconfiadas, e é difícil ajudá-las.

220.
A boca é a porta da mente; vigie-a com cuidado, ou deixará escapar suas intenções ocultas.
Os pensamentos são os pés da mente; controle-os firmemente, ou será levado para o Caminho da perdição.

(continua)

* O Cai Gen Tan菜根譚foi escrito no século XVI pelo erudito Hong Yingming 洪應明 (ou Hong Zicheng洪自誠, 1572-1620), próximo ao final da dinastia Ming大明 (1368-1644). (…) Hong buscava estabelecer uma analogia entre as três grandes correntes do pensamento chinês em sua época: Confucionismo, Daoísmo e Budismo Chan (Zen). O livro de Hong é uma apresentação de trezentos e sessenta aforismos sobre os mais diversos aspectos da vida, sempre baseado nos ensinamentos das três grandes linhas

29 Mar 2023

Nota sobre a Montanha da Vila de Pedra

Partindo de Sichuan, o caminho vai direto ao norte. Ao descer do porto da montanha, o caminho se bifurca; para oeste, não se encontra nada de interessante; e para o norte, logo se vira para o leste. A quatro léguas de distância, o caminho se vê interrompido por um rio. A beirada do rio tem rochas cujos tetos se assemelham a vigas e colunas. Ao lado, há uma espécie de muralha e algo parecido com uma porta.

Dentro, reina a escuridão. Se alguém lançar um grito, ouvirá apenas o burburinho da água, como em uma caverna; o eco ressoa algum tempo e depois cessa. Dando uma volta, se pode chegar ao alto; dali se descobre uma vista muito ampla. Sem que haja terra fértil, crescem lindas arvores e magníficos bambus profundamente enraizados.

As plantas, ora ralas, ora frondosas, ora inclinadas, ora retas, parecem haver sido dispostas por algum ser consciente. Há muito tempo venho me perguntando se há um criador de todas as coisas; aqui me inclino a pensar que sim.

O inseto chamado Fuban

O Fuban é um pequeno inseto capaz de levar cargas sobre o lombo. Quando encontra algo em seu caminho, colhe imediatamente e, levantando a cabeça, deposita em seu lombo e leva. Deste modo, o peso que transporta é cada vez maior; no entanto, quando está cansado a ponto de sucumbir, segue fazendo o mesmo até não poder mais.

Como seu lombo é rugoso, as coisas se acumulam ali sem cair nem se perder. No final, o inseto tropeça e cai no chão, e com tanto peso, não consegue mais levantar-se. Às vezes as pessoas tem piedade dele e tiram a carga de suas costas.

Mesmo assim, quando se vê livre, levanta e começa a fazer as mesmas coisas de antes. Como também gosta de trepar cada vez mais alto, com a carga nas costas, chega um momento em que ele se esgota, cai no solo e morre.

Hoje os homens anseiam por acumular bens; apenas o encontram e, no lugar de evitá-los, tomam-no e começam a aumentar seu patrimônio, sem perceber as consequências disso. Seu único temor é não acumular bastante.

Acabam exaustos e tropeçam, vendo-se então obrigados a abandonar tudo, pondo-se em marcha e se instalando em outro lugar. Tanto o fazem que, não raro, terminam doentes. mas quando conseguem se levantar, começam a fazer tudo igual, de novo.

Cada dia que passa, estes homens pensam em subir de posição, em aumentar sua fortuna; sua conduta e sua avidez crescem sem cessar e acabam levando-os ao perigo e a queda final. Mesmo vendo que muitos antes deles perderam tudo e morreram, não sabem aprender com o exemplo.

Por mais imponente que seja o seu aspecto, e quão eminente seja sua posição, estes levam o nome de “homens”, mas abrigam a mente de um inseto. Isso não é realmente triste?

Liu Zongyuan (773-819)
Tradução de André Bueno

3 Mar 2023