André Namora Ai Portugal VozesPaís maravilhoso Portugal é um país maravilhoso. Alguns dizem o contrário. Que os portugueses estão nas ruas da amargura. Que existem dois milhões ao nível da pobreza e que a classe média está a passar pela maior crise económico-financeira de sempre. A classe média? Não consigo compreender como é que a classe média se queixa em qualquer situação, que não consegue pagar a prestação da casa, mas não prescinde de carro para o marido e outro para a mulher, que os preços dos produtos essenciais estão cada vez mais caros e que já não vão jantar fora. Pois é, mas essa mesma classe média o que nos demonstra é que vive num país maravilhoso que por ter este ano o mês de Abril com calor e praia decide ter 10 dias de férias, do pé para a mão. 10 dias de férias? É verdade, no passado sábado iniciaram um ripanço formidável com uma ponte até amanhã que é o feriado do 25 de Abril, depois metem quarta, quinta e sexta como dias de férias, vem mais um sábado e domingo e segunda-feira seguinte é feriado novamente por ser o dia 1º de Maio. 10 dias em beleza, partindo para o Algarve ou para as margens do Douro, onde o turismo rural em quintas aprazíveis lhe proporciona 10 dias sem trabalho em plena altura do ano em que não é costume haver férias para ninguém. Quando encontramos alguém que tem um emprego razoável e que pertence à chamada classe média, logo ouvimos que a vida está mal, que isto em Portugal está impossível de se sobreviver e a lamentação não tem fim. Esquecem-se daqueles que vivem com uma reforma de 200 ou 300 euros, esquecem-se dos sem-abrigo, esquecem-se dos jovens estudantes que deixam as universidades por não poderem pagar as propinas, esquecem-se dos que vivem em bairros da lata, esquecem-se das mulheres que trabalham nas limpezas e que começam às sete da manhã e correm escritórios e casas de famílias até às oito da noite, esquecem-se daqueles que já têm de escolher entre comprar carne ou peixe e medicamentos, esquecem-se dos que estão há um ano a aguardar por uma cirurgia, esquecem-se dos que nas urgências dos hospitais esperam 20 horas para ser atendidos, esquecem-se das mulheres grávidas que têm de andar numa ambulância cerca de 100 quilómetros para ter um filho. Enfim, a chamada classe média tem de andar mais caladinha porque em Portugal há quem sofra profundamente e que até passe fome. Em Portugal, a vida está difícil, isso não tem discussão, mas felizardos não faltam. O que tem chocado a maioria são as greves constantes de professores, trabalhadores dos transportes públicos, oficiais de justiça, enfermeiros e outras profissões que têm sido alvo da incompreensão governamental, que soube colocar na TAP mais de 3 mil milhões de euros – dinheiro do povo – e depois aumentam os reformados miseravelmente, governo que não chega a acordo com os trabalhadores que protestam por melhores salários. Neste país, ultimamente, têm acontecido factos que entristecem e que deixam as pessoas perturbadas. Referimo-nos aos abusos sexuais dos padres da Igreja Católica e de doutos professores que nas universidades não podem ver uma aluna bonita, de seios grandes que não a convidem logo para jantar ou que façam chantagem no sentido se as estudantes não condescendem ao abuso sexual, o seu ano lectivo será a reprovação. Na semana passada, ficámos desolados com a notícia que atingiu o professor doutor Boaventura Sousa Santos acusado de abuso sexual a várias alunas, algumas que até se pronunciaram na televisão. Boaventura, um homem que sempre se pronunciou como grande democrata, defendendo a moralidade, a solidariedade e a igualdade. Amanhã, festeja-se o dia 25 de Abril, data histórica em que um grupo de militares levou a cabo um golpe de Estado e terminou com a ditadura que subjugou e matou vários antifascistas. No entanto, esse mesmo 25 de Abril em 2023 é comemorado na praia e a maioria dos jovens nem sabe o que se passou no chamado dia da liberdade, mas, que infelizmente, liberdade de vária ordem tem havido muito pouca ao longo de 50 anos em determinados actos da vida, nomeadamente na comunicação social, onde criaram uma lei de imprensa que é uma autêntica limitação da liberdade expressão. Já não falando de um caso passado com um familiar meu, comunista, e que à semelhança de tantos cidadãos, tem o seu telefone debaixo de escuta há mais de cinco anos. Sobre o 25 de Abril muito teríamos a escrever, mas todos sabemos que Portugal tem tido personalidades políticas de grande gabarito, honestidade e solidariedade e outras, especialmente nos governos, que só se preocuparam em exercer a corrupção, o compadrio e a desonestidade. É assim, é o país maravilhoso que temos.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO Verão há muito tempo [dropcap style=’circle’] N [/dropcap] a minha infância, o Verão anunciava um horizonte inteiramente diferente daquele que vigorava no resto do ano. Era uma espécie de intervalo que redimia os meses de frio e de solidão em Clermont-Ferrand, França. O inverno em Clermont-Ferrand era sinónimo de frio e de neve. Ao contrário da imagem romântica que temos da neve – e num país como Portugal, só se pode ter uma imagem romântica – a época da neve não corresponde a parzinhos românticos dançando no gelo, felizes, em pleno Central Park, ou a bonecos alvos salpicados de vegetais fingindo narizes e olhos. Na maior parte do tempo em que neva, a vida quotidiana e a poluição encarregam-se de transformar as ruas num lamaçal castanho que toda a gente gostaria de evitar e não o consegue. Eu tenho demasiados genes portugueses para a vida naquelas condições climatéricas. Para além de uma asma que acordava em Outubro para adormecer apenas em Maio, tinha amigdalites constantes no Inverno, período no qual a minha dieta se resumia a leite quente e antibióticos. O próprio acto de sair à rua, com temperaturas negativas e vestindo malhas sobre malhas, era um acontecimento para o qual tinha de me preparar psicologicamente. Os dias em que não tínhamos aulas eram, para mim, os mais felizes (e eu gostava de ter aulas). Em Agosto, como a maior parte dos emigrantes, regressávamos a Portugal. Com o carro carregado de parafernália electrónica, queijo Brie e brinquedos, empreendíamos a viagem de carro que durava dois dias e duas noites de Clermont-Ferrand a Tavira. Em Tavira, os miúdos da minha idade ficavam a olhar para o nosso carro, um Renault 18 GTL que, não sendo de todo um modelo de topo, fazia ainda assim um brilharete. Lembro-me dos olhares de espanto das crianças quando eu lhes mostrava os vidros eléctricos. Aquela banalidade ao nível de ligar e desligar a luz, em França, era em Tavira pouco menos que magia. As famílias das minhas irmãs recebiam-nos como reis magos temporãos. Da goela do porta-bagagens do Renault saíam objectivas e máquinas fotográficas para um cunhado fotógrafo, acessórios de caça para um cunhado de clique mais barulhento, brinquedos para os meus sobrinhos, roupa para as minhas irmãs, iguarias francesas para todos. Sentia-me feliz com aquela distribuição de prendas, sentia que bastava pouco para fazer os outros felizes. A família era como o Verão: tinha uma época e era simples. Na praia eu era invariavelmente a criatura mais branca sobre a areia. Acabava o Verão com inveja do meu sobrinho, apenas um ano mais novo e consideravelmente mais escuro que eu. Eu começava a temporada num tom azul-claro e, passando de leve pelo branco, ia directamente para o vermelho. Não tinha jeito para aquela forma de ser português, descontraído e alheio à necessidade de protector solar. A minha pele absorvera demasiada frança, demasiada neve. Quando acabava o Verão, a pouca cor que adquirira naquele mês de praia dissipava-se no regresso a França e, já na escola, quando me perguntavam pelo que tinha feito nas férias e eu respondia “praia”, orgulhoso, o resto da turma ria-se. Para aquela medalha de veraneante, os meus genes portugueses nunca chegaram.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDo turismo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] turismo chegou para ficar. Pelo menos enquanto Lisboa for a capital do cool e da luz de Byron, os portugueses o povo mais acolhedor da Europa e Portugal um país tão pacífico como ridiculamente barato. No fundo, como alguém de que não me recordo terá dito, o melhor dos mundos consiste em viver num país do sul com um ordenado de um país do norte. Mas a questão do turismo, para os lisboetas, está longe de ser respondida de forma consensual. Se há os que prezam e louvam tudo quanto os turistas trouxeram de bom a uma cidade que, há apenas dez anos, se encontrava em estado vegetativo, desertificada no seu centro excepto por aqueles que não tinham para onde ir e por meia dúzia de excêntricos encantados por morar num quarto andar sem elevador desde que se visse uma nesga de rio, existem também os que protestam por causa do aumento absurdo das rendas, por causa da sobrelotação dos transportes públicos, por causa do barulho nocturno e da sujidade e, não infrequentemente, por causa dos tuk tuks que se tornaram uma espécie de cartão postal da cidade e um hóspede regular dos pesadelos dos lisboetas mais agorafóbicos que se imaginam a ser atropelados por um daqueles modelos cem porcento eléctricos que fazem menos barulho do que uma geisha na cerimónia do chá. Eu vivi muito tempo em Albufeira, antes de esta se ter tornado um protectorado britânico, antes dos pubs com live football e typical english breakfast e antes de o cheiro a terra vermelha tostada pelo sol ter sido substituído pelo cheiro a bronzeador na variante coco e cenoura. Na altura, a estrada que ligava Albufeira às Areias de São João era de terra e brita – very typical –, a praia de Albufeira ainda tinha uma generosa porção de areia reservada aos barcos dos pescadores e o português ainda era a língua oficial, embora alguns afoitos do engate de praia se aventurassem em iterações do inglês – factor tuelve, beibi, no sics – a que as inglesas respondiam com a generosidade do sorriso. A inesgotável cobiça e o passar do tempo fizeram com que Albufeira fosse crescendo de forma absolutamente caótica excepto pelo facto de tudo passar a ser feito pelo e para o turista: os aparthotéis, os restaurantes, as esplanadas de praia com preços proibitivos para os autóctones, as lojecas de rua entupidas de bóias e baldes de plástico e de todo o tipo de jornais e tabaco exceptuando, claro, os nacionais. De repente, o turista com algumas posses e sequioso de sol e sossego passa a cruzar-se, na Albufeira que escolheu para torrar o subsídio de férias em gins e cataplanas de marisco, com o seu jardineiro, com o tipo que lhe guarda o jornal no quiosque e com o taxista que por vezes o leva a casa depois de uma noite no pub. De repente, os pescadores convertem-se ao comércio de bugigangas nas artérias que circundam a praia ou ao alcoolismo profissional, as tascas em pistas de dança multicolores animadas por sessões de karaoke e música de micro-ondas e as praias, outrora tão desertas como paradisíacas, são agora línguas ínfimas de areia pejadas de gente desejosa de levar para casa um melanoma de origem demarcada. Lisboa, ainda vamos a tempo de perceber a distinção entre óptimo e o incomportável, entre qualidade e quantidade e entre viver e sermos meros actores involuntários ou bichos de circo. Lisboa só tem graça porque é the real thing e não uma encenação feita para consumo alheio. E as pessoas percebem isso. E as que não percebem ou não se importam, acreditem, não queremos que sejam a maioria dos que vêm para cá.