E se a Gronelândia fosse um travesti?

[dropcap]H[/dropcap]á alguns dias, andei à procura de ilações absurdas para iniciar uma crónica. Precisava desse condimento. Já veremos por que razão. O percurso seria elementar: bastava passar por notícias vindas da Arábia ou do Irão, ou entrar em algumas universidades como a de Quilmes, em Buenos Aires, cujas pesquisas científicas são sempre interessantes, nomeadamente a que provou que os hamsters recuperam melhor das mudanças de fusos horários, quando estão sob o efeito de viagra.

Mas como os humanos são seres azougados, bastou esperar umas horas para que um dos títeres do nosso tempo me proporcionasse ilações absurdas: depois de se comemorarem 152 anos sobre a compra do Alaska ao Canadá (já nem falo dos conhecidos episódios na fronteira sul pela mesma época), eis que o PR dos EUA se propôs comprar a Gronelândia à Dinamarca, um território correspondente a 26 vezes a superfície de Portugal. Um simples negócio imobiliário.

Moral da história: procurar ilações absurdas no nosso tempo é um acto absurdo. Kierkegaard e Camus, cada um a seu jeito, já se tinha encarregado do assunto e a primeira-ministra Mette Frederiksen, em Copenhaga, leitora do primeiro dos autores por razões óbvias, voltou agora a sublinhá-lo com aqueles seus olhos de iceberg verde vago. Há seis anos, já outra PM dinamarquesa, Helle Schmidt, tinha caído no goto de Obama, durante as exéquias de Mandela. As primeiras-ministras dinamarquesas e os EUA parecem, pois, para o pior e para o melhor, manter uma relação estilo Deucalião e Pirra.

Mas o assunto que me trazia para os corredores desta crónica era literário e elevado, podia lá ser outro, e prendia-se com o conto de Truman Capote ‘Uma candeia numa janela’ que pode ser assim resumido: um homem perde-se na floresta e descobre uma casa onde é bem recebido. A anfitriã é uma senhora de idade, viúva, que vive com vários gatos. O homem passa aí a noite e no outro dia descobre que o amor pelos gatos de Mrs. Kelly estava recheado de dotes faraónicos. Ao abrir a arca frigorífica, uma vasta colecção de gatos congelados comprova-o. E a dona da casa confessa a sua perdição: “Todos os meus velhos amigos. No eterno repouso. É que eu não suportava a ideia de os perder”.

O conto tocou-me, porque faço parte daquela franja da humanidade que tem um enorme fraquinho pelos gatos. Mas não sou maluco ao ponto de ir votar no PAN, pois é mais importante voltar a normalizar o Serviço Nacional de Saúde do que criar um paralelo destinado aos mais belos felinos da galáxia.

Voltando ao tema, devo referir que, por razões profissionais, procurei na rede críticas a este conto de Capote e ao livro onde ele surge publicado, ‘Música para Camaleões’. E foi então que, por acaso, encontrei um artigo científico que deixa as pesquisas da Universidade de Quilmes a um canto. Insere-se no naipe de investigações que, hoje em dia, fazem vida nos chamados ‘Estudos de Género’. O texto é da autoria de Michael P. Bibler e deixo-o aqui sem mais comentários (a tradução é minha, deixo o original em inglês em rodapé):

“Embora a história nos prepare para o facto de os gatos congelados serem símbolos ou substitutos do seu falecido marido, torna-se claro que ela ama os seus gatos literalmente enquanto gatos e nada mais. Capote leva-nos a compreender e a aceitar este amor pelos seus gatos como uma coisa em si mesma. E ao fazê-lo, ele convida-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro capaz de se ajustar a outras opções para além dos limites do casamento heterossexual, incluindo, ainda que sem se limitar a tal, a sua homossexualidade.”

Depois de ler esta preciosidade, pergunto-me se valerá a pena sequer comentá-la. Entre comprar a Gronelândia e a ideia de que os gatos congelados significam uma sexualidade de várias entradas, o que sobrará?

Sobrará talvez uma breve narrativa de teor oral que me foi contada por um amigo pintor que, por coincidência, é um apaixonado pela prosa de Truman Capote, pelos romances de Camus e pela filosofia de Kierkegaard:

‘O marido queria praticar sexo anal com a mulher, mas não sabia como pôr em prática um projecto de tal complexidade. Lembrou-se de comprar um busto de Napoleão. Colocou-o em frente à cama, ao lado da televisão. Na noite seguinte, a mulher perguntou – “O que faz ali aquele busto?” – e o marido, virando-se para ela, replicou – “qual busto, qual quê, o que tu queres sei eu”. E lá avançou como pôde, coitado’.

Esta breve narrativa, que em certos meios científicos é classificada como anedota, tem uma carga suplementar de vernáculo (diz literalmente “ir ao cu”), o que lhe confere um certo fundo antropológico. Se se convidasse o senhor Michael P. Bibler a interpretar este excurso no auditório da Gulbenkian, o que diria ele?

Diria que o marido, ao focar-se no peito de Napoleão (era essa a inexorável proeminência do busto), estaria a convidar-nos a imaginar um mundo mais hospitaleiro e capaz de se ajustar a outras posições e opções para além dos limites do sexo oral, competência em princípio partilhável nos mundos hetero e homossexual.

Acrescentaria ainda em jeito de conclusão: como os humanos não conhecem o género a que pertencem e precisam de aulas para o descobrir (por causa do dilúvio, Deucalião e Pirra ainda estão na lista de espera), se se tratasse do busto de Trump, tornar-se-ia necessário descongelar os gatos de Mrs. Kelly e a Gronelândia inteira e, depois de tudo derretido, tal como aconteceu com os hamsters de Quilmes, logo se veria para que fuso pendiam as coisas. Só então se podia, com propriedade, falar em negócio imobiliário.


Capote, Truman, Música para Camaleões, trad. paulo Faria, Livros do Brasil, Porto, 2015 pp.35-38 [Em linha]. (S/D.) https://static.fnac-static.com/multimedia/PT/pdf/9789723829044.pdf [Consult. 3 Ago. 2019].

“Although the story prepares us to expect that the frozen cats could be symbols or surrogates for her dead husband, it becomes clear that she loves her cats literally as cats and nothing more. Capote pushes us to acknowledge and accept this love for her cats just as it is. And by doing so, he invites us to imagine a more hospitable world in which we accommodate other kinds of object-choice beyond the confines of heterosexual marriage, including but certainly not limited to his own homosexuality.”. In Michael P. Bibler,  Capotes´s Frozen Cats – Sexuality, Hospitality, Civil Rights, Journal Angelaki, Journal of theoretical humanities. [Em linha]. (Volume 23, 2018 – Issue 1 / Queer Objects. Issue Editors: Guy Davidson and Monique Rooney) https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/0969725X.2018.1435387?journalCode=cang20 [Consult. 3 Ago. 2019].

29 Ago 2019