Advogados em greve

O aumento da inflação no Reino Unido deu origem a várias greves de trabalhadores ferroviários e de estivadores. Nas universidades a realização da greve também vai ser votada. Os trabalhadores exigem salários mais elevados, menos carga horária e que não venha a haver cortes nas pensões. Os trabalhadores das universidades pedem aumentos salariais para combater a inflação.

Com a inflação acima dos 10%, não é de admirar que diferentes sectores do Reino Unido peçam aumentos de salários.

Os advogados britânicos não são excepção, e também exigem o aumento de rendimentos. Os advogados criminais de Inglaterra e do País de Gales estão prestes a entrar em greve porque os seus rendimentos tiveram um corte de cerca de 30% desde 2006. A British Criminal Bar Association (Ordem de Advogados Criminais) exige um aumento de 25% na taxa legal dos processos de apoio judiciário, mas o Governo do Reino Unido só está disposto a ir até aos 15%. A diminuição dos rendimentos fez com que muitos advogados abandonassem a profissão.
Afectados pela epidemia, os tribunais britânicos têm um atraso de cerca de 6.000 processos. Depois da greve o atraso tornou-se ainda mais grave.
À luz do sistema jurídico britânico, os advogados dividem-se em solicitadores e advogados de barra. Hierarquicamente superiores aos advogados de barra, estão os Queen’s Counsel (Conselheiros da Rainha). Ascender à posição de Queen’s Counsel implica que o seu titular teve um desempenho excepcional e também que os seus honorários são superiores aos dos advogados comuns.

Há muitas diferenças entre um advogado de barra e um solicitador. A mais importante tem a ver com a forma como ambos se podem associar entre si. Um solicitador pode abrir um escritório de advogados em parceria com outros solicitadores, enquanto que um advogado de barra trabalha de forma independente, actuando apenas em tribunal em representação dos seus clientes. O estatuto de trabalhadores independentes não só impede os advogados de barra de se associarem entre si, mas também, à partida, os impede de se envolverem em qualquer tipo negócio ou de actividade suplementar. Para puderem exercer outro tipo de actividade os advogados de barra têm de apresentar um pedido à Ordem o qual terá de ser deferido. Certa vez, em Hong Kong, um advogado de barra estava a exercer como professor e esqueceu-se de apresentar o pedido à Ordem, pelo que foi punido. A actividade do advogado de barra restringe-se ao tribunal.

A independência do advogado de barra é uma garantia de imparcialidade. Pode representar os clientes em tribunal sem medo de comprometimentos e pode ajudar o juiz a estabelecer a verdade dos factos à face da lei. É um exemplo concreto na manutenção do estado de direito no Reino Unido.

Na prática, o advogado de barra aceita a taxa de retenção do solicitador, que representa directamente os clientes. A taxa de retenção do solicitador representa um dos rendimentos do advogado de barra. Além disso, o Governo britânico subcontrata alguns processos criminais e permite que solicitadores e advogados de barra possam actuar como procuradores públicos para levar a julgamento os réus em nome do Governo. O estatuto independente do advogado de barra implica que a principal fonte dos rendimentos provem dos procedimentos jurídicos. Como já foi mencionado, o rendimento dos advogados de barra caiu em 30% desde 2006, e com a recente pressão da inflação, não admira que também tenham entrado em greve.

A greve dos advogados irá definitivamente afectar os processos criminais e os casos de apoio judiciário subcontratados pelo Governo. Para os réus que estão a responder em casos criminais, o adiamento do julgamento pode vir dar origem a situações de injustiça, sobretudo nos casos em que o réu se encontra em prisão preventiva. Uma vez que o Governo não pode marcar uma data para o julgamento, o réu pode pedir a anulação do julgamento. Se isso acontecer, não será feita justiça às vítimas do crime.

Para além do impacto no funcionamento do Governo e no sistema judicial, a diminuição dos rendimentos dos advogados também teve impacto nos próprios. A diminuição dos rendimentos obriga os advogados a renunciarem ao trabalho jurídico e a exercerem outras profissões mais bem pagas. Aqueles que desejam tornar-se advogados estão relutantes em fazê-lo, o que reduzirá o número destes profissionais e afectará a qualidade dos serviços jurídicos, pelo que os cidadãos britânicos também virão a ser prejudicados.

A greve atingiu vários sectores e a advocacia foi um deles. Se o Governo britânico só estabelecer compromissos com alguns sectores, ao invés de estabelecer compromissos com todos, a situação vai piorar e a solução será cada vez mais difícil de encontrar. Seja como for, é certo que o Governo britânico não quer uma greve dos advogados que afecte o sistema judicial de que o Reino Unido tanto se orgulhava.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
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31 Ago 2022