A tecelã

29 de Setembro de 2021.

 

– E agora que na Canção de Gesta o sangue dos homens corre como seiva há nela páginas difíceis de decifrar- Quando nos encontramos mergulhados em épocas remotas e os tambores da guerra são a matéria do seu ciclo poético, observamos melhor como os homens eram máquinas de sofrer, teriam certamente mais belas anatomias, não podendo ser obesos para se ajeitarem aos seus elmos, cotas de malha e escudos, e no que diz respeito à lealdade, metem de lado qualquer alcateia. É bom pensar em vê-los nas grandes artérias atirados para as lanças inimigas neste outro tempo em que um Rei tinha a barba florida e todos estes homens que nada mais são que mistérios sanguíneos.

Perguntamo-nos como seria a ida para casa, para as suas mulheres, que estavam ausentes neste sangrar de campo aberto dos heróis, o que teriam em comum para sangrar a dois, que homem houve que afirmou «imagine um ser que sangra mas não está ferido. Imagine um ser que sangra mas não morre. Será uma criatura mágica, mítica, ou apenas uma mulher?» Esse ser que nasce de si a cada lunação deve ter ferido a consciência do herói, que na saga aparece como elemento de pranto e choro, apenas na matéria líquida das suas lágrimas, desaparecendo como que se liquefizesse, e a questão põe-se: podem estas duas criaturas amarem-se? Não creio! Deverão sobretudo ter paixão, que é o que a vida lhes exige impedindo o enredo moralista criado perante as suas naturezas.

Existiu uma rainha mais tardiamente que apercebendo-se da indignação dos súbditos quando ousaram dizer: “não vê que está nua”? Respondeu: – não reparei. A sala estava aquecida – Efectivamente reparamos que estamos nus quando alguma dor circunstancial se faz sentir, mas se estivermos bem, nem nos lembramos dela. Com tanto sangue que correu, devem os corpos estar vedados à tragédia, e deve uma mulher não consentir que tapem o dom da sua alegria, que as histórias estão carregadas de anciãs dizendo: picar-te-ás! Que por mais interdições e fadas boas, deve o corpo da jovem mulher, crescer, e não adormecer para resgate de uma noção de amor, e quando todo o desamor lhe cair vertiginosamente aos pés, deverá ainda assim saber que não carrega culpa alguma.

Quanto aos homens, sempre morrerão e, mistério maior, existirão mais, sangrando ou espalhando sémen, que a mulher continuará, sem que lhe descubram o mérito maior. Que das fêmeas não falamos, nem dos azares que as atormentam, que depois de tanta morte, quando uma se vai embora, é nela que o mundo repara.

 

Eu vi uma mulher que dormia. Em seu sono, ela sonhou que a Vida estava de pé
diante dela e segurava um presente em cada mão- numa o Amor, na outra a
Liberdade.
E disse para a mulher: “Escolha”
E a mulher esperou muito tempo; então respondeu: “Liberdade!”

« Presentes da Vida» in- Olive Schreiner

4 Jan 2022