Liberdade. I

[dropcap]A[/dropcap] liberdade humana é uma das três ideias reguladoras do pensamento kantiano com a imortalidade da alma e Deus. Ser livre, ser imortal, ser em Deus entroncam no mesmo acontecimento da vida. Enquanto ideias localizam-se no espaço estrutural da razão, acima do entendimento e da sensibilidade. Uma leitura adolescente de Kant pode dar a sensação que o acesso ao mundo, proporcionado pela nossa perspectiva, produz, primeiro, sensações a partir da matéria dada pelos objectos perante nós. As primeiras impressões que teríamos do mundo seriam os aspectos dos objectos a partir do seu exterior mais ou menos confuso, sem fronteiras definidas dos seus contornos. A matéria da sensação está distribuída por todo o espaço. Cada ponto de cada matéria de cada sensação estaria constituído por relações espaciais: dentro e fora, próximo e distante, à direita e à esquerda, em cima e em baixo. A cada ponto no espaço poderiam corresponder diversas matérias: cor, textura, figura, forma, som, volume, qualidade de som, textura táctil, temperatura, humidade, rugosidade, lisura, fragrância, paladar. O tempo coordenaria a simultaneidade dessas qualidades sensíveis num mesmo foco de irradiações, desde o centro até à periferia, numa sequência da coexistência de todas as matérias possíveis de um objecto. Um só objecto do mundo estaria assim numa sequência a coexistir com todos os outros objectos do mundo. A sequência permite perceber o aparecimento de objectos, a sua duração, o seu desaparecimento. A sequência permite compreender a distribuição dos pontos imaginários do espaço a coexistir entre si em simultâneo, ainda que as simultaneidades possam não ser percebidas a não ser em sequencias. A própria sequência integra simultaneidades.

Num segundo plano, encontra-se o entendimento com as suas categorias, que permitem compreender identidade e diferença, quantidade e qualidade, existência, possibilidade e necessidade, o comércio entre substâncias entre si e as suas acções recíprocas, causa e efeito, acção e paixão, etc., etc., etc..

Só num terceiro plano, encontramos as ideias, designadamente, a da liberdade humana, a da imortalidade da alma e a de Deus. Ou seja, de certo modo, a leitura desatenta seria uma elevação de planos que estão relacionados uns com os outros numa ascensão do plano elementar de contacto com os planos seguintes, até ao plano da razão tal que do cimo da sua altura se poderia ver o do entendimento e o da sensibilidade.

Mas o nosso plano é o da razão. Lidamos melhor ou pior, de uma forma ingénua ou séria, com a possibilidade da liberdade, da existência imortal da nossa alma, com a possibilidade da existência de Deus. Kant acentua a antinomia destas ideias. Não conseguimos provar a existência de Deus. Ou antes, podemos provar que Deus existe e que Deus não existe. A fé que faz crer põe Deus a existir. A relação com o objecto Deus pode ser de tal forma que não se quer crer que exista. O ateu é negativamente religioso, como o crente é dogmaticamente anti-céptico. A indiferença relativamente à ideia de Deus é filosófica. Compreender um começo, um momento em que se deu a criação de todas as criaturas é equivalente a não compreender como tudo começou. O mesmo se passa com a possibilidade da eternidade. Ou será que estamos condenados a um fim inexorável para todas as coisas e até para Deus? Há sentido ou não para tudo em geral?

Estas perguntas, diz Kant, andam à volta na razão humana ou nós andamos à volta com elas, mesmo que com formulações diferentes. Mais tarde ou mais cedo na vida debatemo-nos com elas. Um dia enfrentamos a morte do outro que nos é querido, em antecipação e depois quando ele já partiu. Conversamos com os nossos mortos. Não os deixamos ir ou eles não desaparecem ao longo da nossa vida. Estão presentes, quando falamos sobre eles, até com quem nunca os viu.

Arrostamos também com a nossa própria morte, a precariedade existencial da vida, a doença, a impossibilidade, o seu carácter caduco. A imortalidade da alma é uma formulação para as nossas preocupações com o carácter finito do tempo deste lado da vida, neste mundo aqui. Projectam-se sonhos possíveis de uma existência que nunca acabasse, de que as vidas dos outros que morreram continuasse, de que existíssemos para sempre. Mesmo que possamos compreender que tal é impossível, namoramos a ideia de existirmos para sempre, temos pena de que os outros reais partam como temos pena da morte dos outros todos, da sua passagem para o possível reino do impossível, de onde ninguém regressa, como pensamos eufemisticamente.

A liberdade humana situa-se assim numa relação íntima com a possibilidade da existência do criador, do criador da vida, do autor da sua manutenção, do portador do sentido, inteligibilidade e compreensão de tudo quanto existe. A liberdade humana situa-se entre a mortalidade e a imortalidade da alma. Como podemos ser livres, quando sabemos inexoravelmente que vamos morrer, que estamos continuamente a morrer? Como podemos viver à vontade, estar à vontade, quando os outros todos aí se encontram no mesmo processo de perecimento, estão a finar-se sem apelo nem agravo?

É do nó complexo e cego destas ideias que parte a interrogação filosófica. Somos nós os interrogados. Não somos nós a fazer a pergunta. A interrogação acontece. Alguma vez na vida, talvez com formulações diferentes pensamos o que seria se os nossos pudessem continuar vivos e os dias da infância se perpetuassem e houvesse uma repetição contínua para sempre? E Deus existirá para nos consolar pela perda da nossa vida? Porquê nascer, então, se estamos condenados à morte? Ou será que vou continuar só como alma sem corpo? A razão e a ciência poderão dirimir estas preocupações? Poderei eu ficar sossegado e tranquilo com as suas verdades?

7 Mai 2019

Fronteiras IV. Corpo e alma.

[dropcap]A[/dropcap] psique afecta o sôma. O sôma afecta a psique. A afecção é enunciável na voz passiva. Ser e estar afectado por qualquer coisa que aconteceu, por X. X é o agente da passiva.

Este esquema serve para o corpo e para a alma. Mas o corpo pode ficar afectado por qualquer coisa que lhe acontece. Por exemplo, a respeito da temperatura: sofre com o calor ou sofre com o frio. Mergulhamos com calor na praia. Entramos no sauna no inverno, com frio. Pode ser conteúdos higrográficos: a humidade ou o clima seco, uma casa húmida ou uma casa seca. Por outro lado, podemos sofrer com quartos escuros. A escuridão na infância metia medo, fazia sentir o mundo na sua indefinição. Sofremos de fotofobia: a luz crua do meio-dia. Mas há uma relação entre estados mentais e o corpo. A coreografia do corpo de quem não tem confiança e é tímido ou está vulnerável é diferente da coreografia do corpo e da fácies de quem tem confiança. Há uma relação entre a alma e o exterior como há entre corpo e exterior. Reagimos a espaços fechados ou extensos, ao clima mental e meteorológico, a atmosferas física e mentalmente.

Podemos gostar do deserto ou achá-lo desolador, como podemos expandir o olhar pelo mar com entusiasmo e fora de si ou então achá-lo a solidão inabitável de um elemento alienador de nós próprios. Há, assim, relações no próprio edifício: descemos da cabeça até aos genitais, estômago, pulmões e coração. Subimos desses terminais até à cabeça. Os orifícios podem ter funções várias ou só funcionais ou eróticas, o que permite compreender funções diferentes e sintéticas entre si.

Há uma relação psico-somática que permite compreender a correlação entre o que acontece anatomicamente no corpo, mas também com a nossa percepção do corpo, se estamos gordos ou magros, com bom ou mau aspecto, com energia ou sem ela, treinados ou não, em boa ou má forma. Esta avaliação ultrapassa o conteúdo anatómico. Pensa uma relação com o corpo que pode ser estética mas é desde sempre já uma avaliação do bem estar ou do mal estar com que nos sentimos na nossa pele. Podemos fazer qualquer coisa para alterar o estado do corpo e assim poder estar melhor na nossa pele. Por outro lado, percebemos que também podemos mudar de hábitos de vida, alimentares ou modos de vida. Nesse caso percebemos a diferença que há entre não praticar desporto e praticar desporto, como nos encontramos depois de vir ao treino a que não queríamos ter ido e como nos encontramos à mesma hora, quando devíamos estar a vir do treino, mas a que não fomos. O gosto que fazemos ao fazer o que fazemos ou a dificuldade com que fazemos a contra gosto o que temos de fazer. Não há nada que façamos que não tenha esta forma de interpretação mínima do prazer e do sofrimento, do gosto e do desgosto, do bem estar e do mal estar, do bem ser e do mal ser. O ser das nossas actividades vive precisamente do prazer afectivo e emocional que dispense, com que nos outorga. Haverá actividade produzidas na nossa psique que a alterem? Isto é, há actividades da psique que actuam sobre a psique deixando-a objecto, vítima exposta e submetida a si? Os antigos perceberam a acção da psique activa sobre a psique passiva, uma relação que é estudada pela natureza correlativa da psique sobre a psique.

Por outro lado, é possível que a atividade da psique se difunda e distribua pelo mais ínfimo poro da existência do meu corpo. O bem estar da alma é o bem estar do corpo, quando descansa, depois do trabalho ou do exercício, da actividade sexual, quando dorme, e estando cansado e cheio de sono. O corpo altera-se convulsivamente para se deixar estar e entregar ao relaxamento, ao sossego, como no sono que se segue a uma sessão de massagem. Mas o corpo próprio também pode estar tenso como num combate, na ânsia do prazer sexual possível e iminente, quando, prestes a atravessar a rua, olha para a direita e para a esquerda com atenção e cuidado, quando está a trabalhar no seu ofício, quando me concentro no teclado e procuro escolher as palavras que resultam do pensamento das frases e do argumento que tenho em mãos. Todas as nossas acções, todas as nossas actividades, pensamentos, sentimentos, estão implicados num horizonte que é anterior, interior e exterior, antecipa e é consequência na psique e no corpo. O corpo flui no fluxo da consciência do mesmo modo como o fluxo de consciência inunda, alaga, submerge o corpo. A psique é corpórea porque está diluída em todas as partes do meu corpo, do lado de dentro e do lado de fora. O corpo manifesta-se a partir de si à psique que lhe está justaposta, ou melhor que o atravessa em toda a sua extensão, ossos, articulações, tendões, músculos, aparelhos e órgãos, extremidades e epiderme. O corpo é da extensão do que eu vejo. O que eu vejo não é do tamanho dos meus olhos. Olho para alguém e vejo nos seus olhos, no hemisfério dos seus olhos ou espelhado nos óculos escuros, a paisagem que se estende à sua frente. Vejo a praia inteira e as nuvens no céu nos óculos de alguém ou no seu globo ocular. Será comigo assim? Ouço não nos meus ouvidos, nem interiores até, os carros que passam no tabuleiro da ponte 25 de Abril. Mas a ponte, com tabuleiro e carros, que eu ouço na sua passagem não está dentro da minha cabeça. Sinto o frio da praia na costa vicentina, mas só tenho contacto com água nos meus pés e não na totalidade dessa extensão. O cheiro que sinto rebentar-me os pulmões tem a fragrância do vento que desce das montanhas até à cidade, quando é noite. Todas as flores espalhadas pelo cume e pelas encostas das montanhas está fora do meu nariz e é no cérebro que eu sinto que o vento penetra e me embebeda. Eu toco o rosto de uma criança e não é apenas a sua bochecha ou apenas os meus dedos e a palma da mão, mas é o outro, pequeno, a pessoa inteira na sua vida que me está a ser indicada, a sua alma e não apenas a parte das bochechas que eu aperto e acaricio. A invasão do corpo é também a invasão da alma. É através do corpo que a alma se abre, estende ou contrai e fecha. Mas sou eu quem existe no corpo e na alma. Ser eu ao modo do meu ser, ser eu ao modo do meu sou, ser o ser do sou, é excêntrico relativamente à alma e ao corpo. “Sou” acompanha-me a mais ínfima parte do meu copo, sente pudor e vergonha ou mal estar, gosta e não gosta do que tem, do que faz e do que lhe fazem.

Sou acompanha-me em todos os meus estados de espírito desde manhã até à noite, toda a vigília e todos os meus sonhos ou noites em que parece que não sonho e outras em que sonho acordado, bons sonhos e maus sonhos.

23 Abr 2019

Fronteiras III

1. Bipolaridade

[dropcap]A[/dropcap] ligação da “mania”, ou “estados maníacos” à “euforia”, ou “estados eufóricos” tem um longa história. O que hoje designamos por distúrbio bipolar, com graus de severidade na sua manifestação, é mais exactamente doença maníaco-depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente. Tratamos por tu a bipolaridade como o stress, a ansiedade e a depressão, da mesma forma que tratamos por tu constipações e gripes. Mas o que hoje em dia parece ser um dado com uma evidência difícil de negar — que a bipolaridade é uma doença que contem em si estados opostos, que a mania se pode manifestar na euforia e que a euforia é uma manifestação da mania — não foi sempre um dado adquirido. A oposição e aparente contraposição de um estado a outro, levou os antigos a pensar que se tratava de distúrbios da normalidade diferentes e, aparentemente, sem ligação um ao outro. Ou seja, podia haver surtos de mania e surtos de euforia num mesmo paciente, mas um estado era uma doença e outro estado era outra doença, como pode suceder que um indivíduo, ao longo da sua vida, tenha doenças e quadros clínicos doentios que não têm que ver uns com os outros. O diagnóstico verificava um estado alterado da consciência. Uma sintomatologia de mania era, contudo, diferente de uma sintomatologia da euforia. Assim, procurava-se uma etologia completamente diferente. Em conformidade, as terapias com vista à cura eram também diferentes. Sem dúvida que a história clínica de um individuo desde que nasceu até que morre permite traçar doenças que são configuráveis nessa pessoa. Pessoas diferentes poderão ter tendência para ter histórias clínicas completamente diferentes. Ainda assim, podemos ver uma tendência de uma pessoa para ser atreita a diferentes maleitas. Cada pessoa têm a sua compleição física, sexo, etnia, idade. Podemos traçar quadros comuns de histórias parecidas para indivíduos de uma mesma etnia, localidade, estações do ano, alimentação, hábitos, se saudáveis ou não, idade, sexo. A integração das doenças como alterações da saúde num mesmo indivíduo ou num grupo de indivíduos implica a sua exposição a ambientes idênticos, os mesmos ou diferentes, ou à própria variação de ambientes, mas também à manutenção de regimes dietéticos ou a sua alteração. Um indivíduo está exposto pela sua própria natureza a um ambiente, a um clima, a uma atmosfera, e os factores variam mas sempre em espaços horizontais que se afectam uns aos outros. O clima, a estação do ano, a idade, a geografia, os hábitos alimentares, o modo de vida, o contacto com outros, a prática de exercício desportivo, a profissão tudo combinado numa lógica difícil de perceber em detalhe, identifica o corpo humano como exposto aos elementos: clima, ar, águas, localidade, tempo de vida, modo de vida, sexo, etnia, etc. etc.. Ou seja, o corpo não é o que existe fechado pela epiderme mas o que existe no seu interior táctil e que pode ser segmentado e visto nos seus tecidos, órgãos, aparelhos, ossos, músculos tendões, etc., etc.. mas como organismo vivo está todo ele num todo a priori que é o corpo. Está por outro lado exposto ao que podem ser geografias antropológicas que afectam o corpo próprio. Cada um de nós tende ao confortável, ao saudável, à bondade do seu estado. Quer dizer: uma doença nunca é vista apenas como um sintoma da causa da sua erupção. Uma doença não tem apenas como cura a iniciação do sintoma mas também a supressão da doença. Há doenças que estão já connosco, mas que não se manifestaram, não têm sintomas. Convivemos com doenças que não sabemos que temos, que não foram ou não puderam ter sido diagnosticadas. Os novos métodos e processos de diagnóstico, os exames de rotina, baterias de análises a tudo e mais alguma coisa, ecografias, radiografias, permitem justamente um diagnóstico de sintomas que não vemos, implicam uma detecção de outro nível. Ora quando se percebe a variação do estado da normalidade em quadros clínicos mentais, a primeira aproximação é idêntica. Procura-se uma interpretação simples da relação entre um sintoma e uma doença e a respectiva terapia com vista à cura, procura-se um tratamento. A mania é a alteração de um estado da mente, da alma, do espírito, da psique, para usar uma palavra antiga. Ter a mania de que se é X, quando não se é X. As mais diversas formas de narcisimo, em que se pensa que se é o máximo, nem apenas os maiores, indivíduos que têm por si a mais alta consideração por si, as formas mais assolapadas de paixão, adição, entusiasmo, fascínio e delírio correspondem a alterações do estado de consciência tais que a normalidade corresponde a uma neutralização da sua erupção sintomática. Pensar só num conteúdo, estar “viciado” numa determinada prática, corresponde a uma forma de enamoramento e paixão por um determinado conteúdo, ao ponto de um indivíduo ser disfuncional. Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z? Porque se muda de manias? As mesmas perguntas podem ser feitas de forma independente, quando investigamos a depressão. Porque podemos estar deprimidos ou, então, tristes, nostálgicos e melancólicos? Por que razão pode não apetecer nada do que quer que seja?

Como tratar uma obsessão compulsiva? Como tratar uma paixão? Como anular o carácter fixo de uma ideia? Por que se têm manias? Como se podem controlá-las? Por que ter a mania a, b ou c, mas não x, y e z?

Por que razão se pode conviver e namorar a ideia do suicídio na juventude ou ao encarar becos sem saída? Qual é o sintoma da depressão? Qual é a causa e a razão de ser da depressão? Podemos estar deprimidos na raiz do nosso ser e não termos sintomas? Não podemos também ter sintomas de stress, ansiedade, angústia, tédio, melancolia, nostalgia, tristeza e não sermos doentes mentais? Qual a fronteira entre a psique e o soma? Qual a relação entre esta fronteira estrutural não apenas na vertical: de cima para baixo, mas também horizontal de dentro para fora? E na passividade ou exposição e vulnerabilidade em que o corpo todo dói ou sente prazer? Ser afectado por e estar doente mentalmente resulta da psique? E o corpo não pode afectar a nossa mente? E nós não podemos afectar os outros e ser afectados por eles? Não podemos transformar o mundo em que vivemos como o mundo em que vivemos nos transforma?

17 Abr 2019

Fronteiras II

[dropcap]P[/dropcap]onho-me debaixo do duche. Tiro o shampoo ainda da cabeça. A mão direita chega melhor à nuca. A esquerda retira a espuma do lado esquerdo da cabeça. Sinto a água que cai directamente sobre a cabeça e depois escorre pelo corpo todo, ombros, braços, barriga, mas também costas, nádegas. Não vejo as costas, nem a nuca, nem em geral a parte de trás do corpo, como não vejo o interior. Saio do banho. Limpo-me em frente ao espelho. Puxo a toalha da direita para a esquerda e depois da esquerda para a direita, de cima para baixo, para limpar as costas.

Vemos sempre só o que está à nossa frente, nunca o que está atrás de nós. Quando olho, com esforço por cima do ombro, para baixo, deixo de ver o que habitualmente vejo e passo a ver o que habitualmente não se apresenta. Sinto as costas quentes e molhadas e depois secas, a refrescar.

Mas é pelo tacto. Sinto cócegas, comichão, no exterior e no interior, mas não vejo as cócegas nem o prurido. São fenómenos tácteis. Todo o nosso corpo tem em si a perpassá-lo estruturalmente uma textura táctil, háptica. Sentimos uma dor de cabeça, como uma pontada, a vir do interior para o exterior, mas sem ir ao limite fronteiriço da cabeça. É lancinante, do lado direito da cabeça, um pouco acima dos olhos, no seu interior. É como uma agulha a espetar, mas não de fora. Esta é de dentro. Sinto dores musculares do treino. É no interior da coxa, ou na testa por um golpe sofrido.

Não é só superfície nem na pele. Entra-me pelo corpo adentro. Podemos perceber que dói tudo ou que o mal-estar é geral, como quando se tem uma febre de gripe e todos nós estremecemos.

Olho através da janela para ver como está o tempo. O céu azul abobadado, sem nenhuma nuvem. Nenhuma folha mexe nos ramos das árvores. Eu toco o céu com um olhar que se expande por todo o azul que eu consigo ver. O azul abobadado serve de plano de fundo ao horizonte. Haverá alguma correspondência entre os raios que saem da abóbada que são os olhos para cada ponto do céu azul? Ou será ao contrário, no plano de fundo azul, em toda a sua extensão, há pontos reais que servem de ponto de aplicação aos raios que saem do semi-globo ocular? Ou dos pontos do céu em toda a extensão a que acedo pelo olhar chegam como dardos raios azuis que formam a extensão. O azul do céu é a soma de todos os pontos azuis? Ou há uma extensão já em forma de plano curvo que é mais do que a soma das suas partes e forma faixas azuis? É o céu azul composto por faixas azuis como a fuselagem de um avião que parece feito de remendos? E o ver azul vem de onde? É do olhar ou da visão? A visão é mais do que o olhar. Eu posso olhar da direita para a esquerda e de cima para baixo, perto ou longe e, ainda assim, não estar a ver nada.

Por outro lado, ao olhar numa determinada direcção, de repente, vejo formado, de uma só vez, o céu azul de um dia sereno. Quando eu toco em toda a sua extensão o céu azul, vejo formarem-se em todos os planos até aos meus olhos diversos objectos. Um objecto forma um plano. Há tantos planos quantos os objectos e mesmo sem haver objectos referenciáveis há planos possíveis que se podem estabelecer imaginariamente. O objecto que eu vejo mais longe é a ponte 25 de Abril. Para lá dela, só vejo azul. Mas entre ela e mim, vejo várias edifícios, uns mais longe do que outros, depois vejo a janela que está suja, depois vejo os meus óculos de ler que estão limpos. Mas já não vejo a película que reveste os meus olhos. Não vejo as lentes de contacto. Mas quando procuro ver as lentes de contacto, percebo que estou já fora dos olhos. Concentro-me nos óculos e vejo a sua armação. Depois vejo o que está fora da armação. Concentro-me agora na janela e percebo a sua forma geométrica composta de duas partes. Já não vejo a armação nem as lentes dos óculos.

Percebo de forma desfocada a paisagem para lá da janela. Agora toco na ponte 25 de Abril: vejo os carros passarem da direta para esquerda. Não consigo se não adivinhar os carros que vêm de sul para entrar em Lisboa. Vejo, a ponte 25 de Abril deslocar-se para a esquerda, quando os carros são perseguidos por mim a diversas velocidades, na direcção contrária. Deixo de prestar atenção à ponte no seu todo, deixo de ver a ponte e percebo o azul que serve de plano de fundo a tudo. O horizonte da visão é construído por uma projecção que torna todos os planos visíveis, de lá dos olhos até lá ao horizonte. É como se tudo estivesse metido numa esfera de que só percebe a semiesfera abobadada em que eu estou metido com todas as coisas. Vejo agora da ponte 25 de Abril a minha casa, a janela de onde eu há pouco estava a olhar para cá. Desloco-me no tabuleiro.

O Cristo Rei lá ao fundo que eu antes não via, passa a estar visível. A foz do Tejo passa a estar visível e a costa de Almada. Lá ao fundo estarão as portagens que eu ainda não vejo. Olho para a Junqueira e percebo o verde dos jardins nas proximidades. Vejo o paredão entre as docas e Belém.

E vejo a casa onde está a janela de onde eu via a ponte. Não consigo fazer congruir nada do que vejo com o que via. As proporções estão trocadas. Mas tudo está fora da minha cabeça. A visão só vê fora. Não vejo o interior dos olhos nem o interior da cabeça. Por mais que olhe para o cimo e para baixo e para cada um dos lados e faça mexer o globo ocular, não consigo ver o interior. Só vejo o exterior. Do ângulo da minha visão dou tamanhos às coisas, ponho-as em múltiplas relações que só existem no interior do espaço de visão. O interior é o exterior e o interior é dentro do horizonte complexo da visão.

9 Abr 2019

Fronteiras I

Dedicado a José António Tenedório

[dropcap]A[/dropcap] palavra fronteira tem vários sentidos. O primeiro que ocorre é geográfico. A fronteira delimita países geograficamente. Mas historicamente alteram-se tal como diferentes foram os diversos povos que habitaram o espaço delimitado por uma mesma fronteira. Há fronteiras naturalmente geográficas: rios e montanhas. Outras foram forçadas política ou militarmente. O conceito de fronteira tem múltiplas dimensões. Definem-se espaços dentro das fronteiras nacionais e além-fronteiras. Além disso, ser fronteira não define apenas estaticamente localidades, locais, lugares, regiões, províncias terrestres, mas também há fronteiras marítimas que são território nacional de um país e vão muito além do território terrestre. Ser fronteira não é assim definido bem por uma linha geográfica. Ela é difusa ao olhar ainda que bem definida em latitude e longitude. Ser fronteira não é assim um objecto apenas realmente existente. Ao olhar para o globo terrestre como um todo, encontramos morfologias marítimas e terrestres que são as únicas heterogeneidades que encontramos a olho nu. Ser fronteira permite compreender o que é entrar num país e sair de outro país, o que é invadir e defender, acolher e exilar-se, regressar e partir. São muitos os infinitivos que estão conjugados no ser fronteira. A expansão das fronteiras nos impérios historicamente relevantes permite compreender também outros sentidos. Do ponto de vista do império e do invasor colonizador, o projecto para o mundo inteiro é integrar dentro dos seus limites. Do ponto de vista dos colonizados é ter sido invadido e ter perdido a identidade nacional dada pelo corpo definido na anatomia da sua fronteira. Aquém e além, dentro e fora, no interior e no exterior, acolher e libertar são determinações pensadas no fundo da concepção de fronteiras.

A cabeça da serpente que era Roma para o seu império tinha as suas fronteiras numa periferia móvel. Um historiador como Tácito compreende o império a partir da relação tensa que há entre a fronteira na Germânia por exemplo e o que se passa na cidade. O arco tenso entre o núcleo duro do senado romano e as fronteiras do império funda o espaço interior estruturante do próprio império. A nossa vida tem diversas fronteiras vitais. Os sítios que habitamos na nossa existência estão localizados num mapa vital que pode ser partilhado com outras pessoas. Enquanto mapa definido pela vida humana desmultiplica-se em múltiplos sítios, lugares, localidades. Há tantos países quantas as pessoas que são naturais dos seus países e uma única pessoa conhece vários países. Há tantos globos terrestres quantas as pessoas que o habitam, ainda que só lhe acedam pelo ângulo particular do canto do olho. Há múltiplos globos terrestres vistos por uma única pessoa conforme o país que habita ou visita apenas e o duplo olhar que se constitui como natural de um país ou como habitante, provisória ou definitivamente, de um outro país.

O conceito de fronteira corresponde em certa medida ao conceito de horizonte. Mesmo que compreendamos a existência de fronteiras e elas possam ser efectivamente ultrapassadas, mesmo que consigamos ver fronteiras representadas ou fotografadas na contemporaneidade ou ao longo da história, a interpretação do ser fronteira implica sempre uma vivência existencial do sentido, do que é estar em casa, em segurança, de um modo acolhedor, cómodo, familiar. E por outro lado, o que é projectado para fora dessa comodidade, o que é inóspito e inospitável, o que é estranho, está fora de casa, nos faz sentir como peixes fora de água. Gizamos, assim, as nossas próprias fronteiras ou vemos como elas são projectadas a partir do interior da existência humana. Define-se para nós de algum modo desde sempre o espaço estrutural do que é familiar e nós é próprio, do que nos pertence, e o espaço inóspito do que provoca alienação em nós, nos é estranho e não nos pertence. O espaço desta fronteira é afectivo ou sentimental. As fronteiras alteram-se a partir da intimidade da nossa sensibilidade que nos faz sentir em casa no mesmo sítio que nos faziam sentir não em casa. E vice versa: podemos deixar de nos sentir em casa no mesmo sítio a que outrora chamávamos casa. Há fronteiras delineadas com outros que ficam borradas, quando os outros desaparecem. Há fronteiras definidas com outros, quando não havia nenhuma linha a determinar qualquer horizonte de habitabilidade. Há fronteiras que são imaginadas, quando no passado eram inimagináveis, e passamos a habitar um sítio que é bom de ser habitado. Há mundos perfeitos que desabam por não terem fronteiras afectivas. Não por desaparecerem, mas porque nos lembram cidades fantasma inabitáveis pelos próprios nós que já foramos e não seremos outra vez ou só muito dificilmente. Cada pessoa giza as fronteiras do seu próprio império e tem que se ver com as fronteiras dos impérios que são as existências dos outros. Ao sermos com outros, somos por eles e contra elas, passamos por eles na nossa mais completa indiferença, ou ficamos presos uns aos outros pela ausência de indiferença, quando os outros fazem a diferença e nós fazemos a diferença nas suas vidas. Cruzam-se várias nações com outras pessoas, esboçam-se mundos, refazem-se mundos, desfazem-se mundos, constrói-se impérios e destroem-se impérios.

Somos Roma e as zonas limítrofes mais periféricas, de nós mesmos e dos outros. As fronteiras são desenhadas a partir do próprio que é nosso, a partir do interior, da intimidade da nossa própria vida. A vida nas suas múltiplas formas com outros e sem eles, sensibilidades, impactos afectivos, crises emocionais, ganhos e perdas é vista a partir da Roma do império que somos nós com outros até à periferia do mundo inteiro na sua totalidade. É aí que se definem os outros na importância muita, pouca, nenhuma ou total das nossas vidas nas dos outros e das dos outros nas nossas vidas. É nesse interior que se define o ateniense em nós e os bárbaros, os que são nossos e os outros. É aí que nos definimos, que percebemos se riscamos ou não riscamos, se somos importantes, muito, pouco ou nada, ou somos tudo parar os outros. E nós próprios na multidão de gente que somos, na múltipla personalidade que é a nossa, definimos também fronteiras para o nosso eu mais íntimo, aquele mesmo que nós somos, e para os outros eus que desprezamos, de quem temos medo, que segregamos, que não afirmamos ou até negamos que alguma vez tenham existido. À superfície da consciência ou sou quem giza a fronteira entre o aquém de mim e o além de mim, quem eu integro e quem eu expulso. Que fronteiras são estas? Qual é o sentido do ser fronteira em que eu entro e saio, eu integro e expulso, eu segrego e acolho? Cancelar-me-ei de mim próprio ou estou sempre continuamente numa posição de apropriação? E a fronteira da vida que é o seu limite, o além, depois da morte?

2 Abr 2019

Conhece-te a ti próprio

[dropcap]A[/dropcap] formulação gnôthi seauton, que podemos traduzir por conhece-te a ti próprio é uma máxima que Platão repete na boca Sócrates em diversas instâncias. A versão completa diz também mêden agan: nada de excesso. Importa perceber que o objecto do conhecimento é si mesmo ou si próprio e o verbo é um imperativo aoristo. A fórmula é um convite que diz, pelo menos uma vez na vida, conhece-te a ti próprio ou reconhece quem tu próprio és, e nada de excesso. Que excesso é este? É no conhecimento de si? Podemos conhecer-nos bem de mais? Ou é na própria prática, nas nossas acções? O que quererá dizer “conhecimento” aqui? E quem é esta entidade aparentemente diferente de “mim”, o “si”?

Há várias despistagens possíveis antigas e contemporâneas. A primeira prende-se com o domínio não coincidente do si próprio, self, Selbst, e do eu. Numa crítica a Descartes, Heidegger diz que, se o ego nunca morrer, se repete em cada cogitatio e cada pessoa projecta-se a si mesma como o eu que é para todo o sempre, pelo contrário, o sum, o sou, implica-me no encaminhamento da morte. Eu sou moribundo, sum moribundu: sou aquele que tem de morrer. O ser do sou é diferente do ser do é, do ser do eu. O eu é uma coisa que durará para sempre, que eu não perspectivo fora de mim nunca. Mesmo que eu viva para todo o sempre, o sou é sempre a perder, é sempre a abrir mão de si. O conhecimento que abre para o eu é uma percepção clara e distinta que é coincidente com o aqui e agora em que o eu existe e é também o eu que se desdobra e olha para o próprio eu: eu penso-me a pensar-me coisas pensadas por mim, eu sou o agente da percepção e ao mesmo tempo o conteúdo da própria percepção de mim.

Mas como acedo eu ao sou? A tradição da fenomenologia diz que há uma compreensão não reflexiva, não temática de si. Nós respondemos à pergunta “como tens passado?” com respostas mais ou menos óbvias: bem, mal, assim assim, vamos indo. A resposta dá já conta do modo como nos encontramos. Nós encontramo-nos desde sempre de um determinado modo, nós achamo-nos a nós desde sempre. Encontrar-se e achar-se querem aqui dizer que há um modo de nos surpreendemos sempre num modo de ser, num modo de estar. Há uma melodia que vibra connosco a vida e sentimos estar a ser ou ser de um determinado modo. Os outros que aí estão connosco são também melodias que vibram nas nossas vidas. Não são só eus aos quais acedem por percepções claras e distintas, nem intuições de si mesmos.

Os outros são na sua “fonia” vozes complexas jovens ou velhas, espíritos que sopram nas nossas vidas como o vento nas harpas eólicas. O si próprio de que fala Delfos é este horizonte de melodia em que somos com outros em sinfonia. A música das nossas vidas não é apenas a que Sócrates chamava a versão popular da música. Sócrates achava que tinha feito música a vida inteira para responder à exortação da personagem dos seus sonhos que lhe pediam para fazer música. Achava que tinha feito música a vida inteira e isso era ter feito filosofia, fazer filosofia. Por escrúpulo de consciência tinha composto uma música para acompanhar um poema, mas a verdadeira música que vem da inspiração e do entusiasmo divino tinha sido a filosofia na vida dele.

Conhecer-se a si mesmo é abrir-se à disposição musical em que escutamos e percebemos a nossa própria melodia e a melodia dos outros nas nossas vidas e as melodias das nossas vidas nas dos outros e as dos outros nas nossas. O si próprio em cada um de nós não é um ponto de vista. Os outros não são apenas pontos de vista. O acontecimento humano não é apenas espacial a abrir para um alvo e a definir um horizonte. Nós somos no tempo e distendidos pela totalidade do universo. Cada um de nós é à escala mundial. Não. Cada um de nós é à escala universal. E nós estamos distendidos uns nos outros desde o primeiro homem até ao último homem. O próprio é a dimensão temporal que se desenrola como um manto. O próprio é o agente complexo de todos os protagonistas das suas vidas.

O conhecimento resulta desta forma complexa de abertura a si, como ninguém quer a coisa, sem se saber como pode vibrar sobre todos os eus que nós somos, sobre todos os comités de gente que nós somos, sem saber como é possível reunirmos em nós a cidadela. O si é a cidadela de todas as cidadelas que existem desde os primeiros seres humanos e que pensavam no que havia antes de terem nascido. O Si somos nós na hora da nossa morte, antecipando todas as gerações de pessoas que estão para vir. O si somos nós na hora da nossa morte já sem ninguém a antecipar. Perguntamos quem seremos nós na hora da nossa morte. Perguntamos quem seremos nós depois de termos desaparecido daqui, sem pai nem mãe nem irmãos, sem os nossos amores. O que seremos sem os nossos amores e quem serão os outros sem o nosso amor. Conhece-te a ti próprio é a abertura de amor ao outro como nos temos aberto a nós próprios no concerto difícil da totalidade da vida a ser.

Nada de excessos!

19 Mar 2019

Biologias II

[dropcap]A[/dropcap]idade moderna dissocia dramaticamente a mente do corpo. Descartes torna irreconciliáveis pensamento e mundo. A “cogitatio” e a “extensio” são termos que se contradizem. Se o mundo é material, corpóreo, divisível e extenso. O pensamento é imaterial, incorpóreo, indivisível e inextenso. Descartes não deixa de dar uma formulação positiva para pensamento. A cogitatio é a abertura “aqui e agora” que dá acesso ao conteúdo “aqui e agora” de cada uma das nossas vidas com as suas agendas individuais. A percepção clara e distinta é a dupla presença sincronizada de mim a mim, de mim ao mundo, de mim ao outro. A percepção torna presente um dado conteúdo que coincide comigo e é interceptado por mim. O agora traz-me de cada vez um conteúdo determinado. Todas as pessoas existentes têm o seu conteúdo agora diferente do meu, no decurso das suas vidas. O presente que de cada vez se renova e actualiza é pensado à luz das nossas percepções que se reactualizam e renovam, mesmo tendo o mesmo conteúdo à sua frente. Deus é omnipresente não apenas por que tudo vê, mas porque cria o presente. O ser humano por defeito de finitude capta o presente a constituir-se e a trazer consigo o seu conteúdo específico. Mas nenhuma percepção poderia criar um momento presente. Nem o homem mais rico do mundo consegue comprar um só instante de tempo. Descartes procura assim mostrar que a evidência com que se constitui uma percepção clara e distinta resulta da consciência da simultaneidade de mim e de qualquer conteúdo, inclusive de mim próprio, quando me surpreendo a ter uma percepção de mim. Eu penso-me a pensar coisas pensadas por mim. Durante o tempo em que tenho essa consciência, não deixarei de ter a percepção da minha existência. Nem um génio maligno nem um deus enganador poderão estancar a consciência da duração, consciência que para ser tida também tem de durar. A percepção estende-se na duração para poder captar a duração, durante a qual as coisas duram. Passar muito tempo ou pouco tempo, todo o tempo do mundo ou nenhum tempo do mundo requer uma actualização contínua da percepção ou de fases de percepção. De outro modo, não poderíamos perceber a duração da nossa casa desde que temos a primeira percepção dela e a sua continua renovação. Sem duração nunca conseguiríamos ouvir música, a co-existência de sons numa sinfonia, perdura ao longo do tempo numa sucessão que permanece. O que se passa com a música na distribuição de sons por tempos, passa-se com toda captação sensorial. Não veríamos a continuidade de cores e texturas ou formas e figuras num quadro permanecer numa coexistência, mesmo se não olharmos para o quadro de forma abrangente. Podemos olhar para o canto superior esquerdo e deixarmos desatento o canto inferior direito. Quando recuperamos este canto, não é como se a tela não tivesse sido pintada. Um momento do quadro é visto depois de outro, mas percebe-se que ambos os momentos estão saturados de tinta, há uma permanência da coexistência de todos os pigmentos de cor que formam figuras e texturas.

Há, contudo, um elemento comum ao pensamento e à extensão, ao eu e ao mundo. Descartes fala de uma res cogitans e de uma res extensa. A realidade da coisa é a substância. A substância de uma coisa é tornada possível pela sua subsistência. A subsistência de uma coisa é a duração. Não é só a extensão material e corpórea que subsistem. O pensamento, mesmo durando um lapso de tempo dura. A duração do pensamento tem de coincidir com duração de uma coisa. A duração do eu tem de coincidir em possibilidade com a duração do mundo. A minha duração é a duração do meu mundo. Só que não vemos a duração do tempo, porque não vemos o tempo. Sentimos o tempo a passar, podemos até dizer que temos uma percepção do tempo, mas o que temos quando dizemos que sentimos ou temos uma percepção do tempo? O que é ter uma percepção de si, quando precisamente somos sem extensão, não temos realidade material no pensamento? Por outro lado, o mundo é o mundo pela sua realidade. No mundo pode ser visível a passagem do tempo, pelo menos na proximidade, porque o céu azul é o mesmo de sempre, a lua é a mesma de sempre, o Atlântico é o mesmo de sempre. A passagem do tempo sente-se, quando podemos dizemos, por outro lado, que o céu azul já não é o da infância, tal como não são os primeiros dias da primavera, nem o primeiro mergulho de verão atlântico é recuperável agora, ainda que possa ser tudo feliz. Sente-se o tempo passar mesmo sem que haja vestígios da sua passagem. Não é necessária a ferrugem no ferro, nem o míldio, ou a podridão, ou o caruncho, nem lombadas de livros desbotadas pelo sol, nem folhas amarelecidas, nem flores murchas, nem a idade estampada nos rostos das pessoas, nem ruas que se desfazem ou prédios que se desmoronam, amizades acabadas, pessoas mortas. O tempo passa e temos uma percepção da sua passagem, como temos uma percepção da nossa passagem. Ou será antes que é por termos uma percepção da nossa passagem que percebemos o tempo a passar e que tudo passa. Nós somos esse tempo a passar inexoravelmente. Eu sou esse tempo inexorável mesmo se vivesse para sempre. A sequência é tempo, sem dúvida, como a coexistência e a simultaneidade, mas invertida. O sentido da sequência, o ser do tempo, é, sem dúvida o tempo que virá, que começa agora. Mas é também o tempo da irreversibilidade, o tempo inultrapassável e irrepetível. Descartes não viu este tempo. Viu um outro tempo que era omnipresente, omnisciente, omnipotente. Temporalizou Deus. E divinizou o ser humano e o seu mundo, mas erradamente. Porque até o seu Deus cria o tempo e conserva-o. É a origem do primeiro momento e da sua repetição e tudo o que é abrangível pelo tempo. Mas o ser humano não senhor do seu tempo, não pode enganar-se, não pode fazer que tudo seja como no princípio, mesmo que haja muitas coisas no princípio. Ou poderá? Pode o verdadeiro e autêntico princípio ser a meio da vida e o que era tido por o princípio ser já velho e estafado e só enganosamente o princípio. Terá sido um começo mas não um princípio.

O princípio é agora. Haver eu e ser outro. Haver outro e ser comigo.

Von Uexküll usava o termo Umwelt, palavra alemã composta de Um- e Welt, respectivamente: em redor ou envolvente, por um lado, e, por outro, mundo. A sua biologia teórica procurava mostrar de que modo o mesmo local era completamente diferente para diversas formas de vida, ao ponto de terem mundos diferentes, impermeáveis e incompatíveis uns com os outros. As espécies que habitam uma árvore, por exemplo, não vêm o mesmo que nós humanos, quando olhamos para uma árvore, se é que druidas, caçadores, guerrilheiros e amantes vêem a mesma árvore. [Continua]

15 Mar 2019

Educação II | Compreender como se é e tornar-se esse alguém

[dropcap]N[/dropcap]a segunda ode pítica Píndaro escreve um gnômon que é recuperado na história do pensamento ocidental. Nietzsche populariza uma das suas traduções possíveis: Werde der, der du bist: torna-te naquele que tu és.”Werde der, der du bist!” Übersetzt von Friedrich Nietzsche. As traduções mais interessantes acentuam o particípio aoristo: mathôn. Eugen Dönt: “Beginne zu erkennen, wer du bist (começa a conhecer quem tu és)” e a de Hölderlin: “Werde welcher du bist erfahren (torna-te naquele de que fizeste experiência)”. Mas também as traduções inglesas: “Become such as you are, having learned what that is (torna-te tal como tu és, tendo aprendido o que isso é)” ou “Be what you know you are” (sê quem tu sabes que és)” “Be true to thyself now that thou hast learnt what manner of man thou art (sê verdadeiro contigo próprio, agora que aprendeste que tipo de homem tu ês)”, “Having learned, become who you are (tendo aprendido, torna-te em quem tu és).

A frase de Píndaro γένοι’ οἷος ἐσσὶ μαθών (genoi’ hoios essi mathôn) permite compreender dois complementos do verbo manthânô, que quer dizer aprender mas também compreender. Um complemento é “hoios essi” (como és). O outro é “génoio” (possas tornar-te, sejas capaz de tornar-te). Portanto, aprender como és e aprende a tornar-te como és. A fórmula de Nietzsche perde o contacto com o verbo aprender. Sente-se o valor imperativo, mais do que exortativo, no “werde” (torna-te). A fórmula de Píndaro acentua a identificação de um modo de aprender ou compreender e o que resulta de uma aprendizagem e de uma compreensão. Nós tornamo-nos no que compreendemos e compreender é ser de um determinado modo.

Há uma compreensão tácita de que aprender, compreender, conhecer e reconhecer são actividades. Fazer é saber. Quem não sabe não faz. Saber é explicar. Quem não explica não sabe. A palavra para aprender e compreender implica como Hölderlin acentua na sua tradução uma experiência, um fazer a experiência. Ter estado numa situação, ter passado por uma situação, é não apenas o resultado passivo de ter sido obrigado a passar pelo que não queríamos. Não é necessariamente negativo. Trata-se da compreensão de que, ao passar por uma situação, ao estar num determinado contexto, há uma interpretação do modo como somos e como reagimos ou somos proactivos relativamente à saída possível. A antecipação resulta de um amadurecimento da experiência passada, das memórias activas que permitem dar resposta a situações que reclamam a nossa acção. Aprender um desporto, um gesto técnico, aprender uma língua estrangeira, uma arte e uma técnica não é uma actividade meramente teórica ou prática. É uma coisa e outra. Implica um gesto técnico em que intervimos no mundo. Do ponto de vista teórico e cognitivo ou do ponto de vista prático e estético há uma modificação do modo como nos encontramos. Sabemos de diversas matérias em que podemos ser peritos ou mais ou menos experimentados. Mas quem somos nós? O que poderemos aprender para sermos quem somos?

Aprender é aprender por estudo e esforço, para poder aplicar um património de conhecimento: num desporto, numa actividade lúdica, num saber técnico. Aprender é também fazer a experiência do que é novidade ou daquilo a que nos habituamos. Aprender cria uma disposição em nós que pode estar adormecida mas, ao ser acordada, permite responder às exigências de uma situação. O conteúdo da aprendizagem é a existência. De que modo estou vivo, sou e existo? Quem sou eu?

O conteúdo é um modo de ser, um jeito, uma maneira. É adverbial. No ser do sou está a locução adverbial: ao meu modo, autêntica e propriamente. De cada vez que se conjuga o presente do indicativo do verbo ser e se diz eu sou ou sou eu, estamos a dizer implícita e tacitamente o nosso modo de ser, quem somos, quem eu sou e mais ninguém, ao modo de ser eu, diferente de todos os outros e de cada um ser como cada qual na sua diferença. A educação grega implica este reconhecimento do abismo: poder chegar à existência, atravessar a existência, sair da existência e nunca ter sido quem era suposto sermos. Ser cada um de cada vez o que é resulta do esforço de encontro consigo, da sua própria invenção, um “si” que desde sempre anda à procura do seu autor, mas que pode nunca ser descoberto e nós podemos nunca ter sido quem poderíamos ter vindo a ser.

12 Mar 2019

Biologias I

[dropcap]A[/dropcap]s disciplinas contemporâneas “biologia” e “zoologia” visam a vida. A biologia estuda a vida e os organismos vivos. Comporta em si diversos campos de investigação. A zoologia faz parte da biologia e estuda a vida animal. De qualquer modo, o acrescento “-logia” tal como noutras palavras: teologia, filologia, antropologia, significa disciplina científica. Portanto, há um suporte teórico e um modelo cognitivo de acesso a objecto específico pertencente a cada disciplina. Ainda: percebe-se que há ramificações e especificações em cada disciplina ao ponto de se poder pensar no plural: biologias e zoologias. Não se pretende reivindicar os termos “biologia” e “zoologia” para novas ciências ou novas concepções da vida em geral, humana e animal. Pretende-se, antes, procurar perceber o que na antiguidade estava em causa quando se falava de “bios” ou de “zôê”.

 

Muitas vezes, o que quer que os antigos visassem com o termo “bios” e “zôê”, ambos tinham o mesmo referente. Tal pode ser percebido quando verificamos a expressão “bios te kai zôê” (a existência tal como a vida) em Aristóteles. A hendíade reforça um único campo de investigação, ainda que com duas expressões diferentes. Mas mais. Parece haver uma troca de referente ou campos semânticos. Às vezes, o que parece ser visado segundo uma designação, noutras circunstâncias, parece ser visado pela outra. Por um lado, “bios” parece ter o sentido de “zôê”. Por outro, “bios” e “zôê” têm sentidos diferentes, ainda que se complementem.

Mas vamos por partes.

 

Aristóteles, na Ética a Nicómaco, distingue formas de vida ou horizontes “zoóticos”, para poder identificar a que diz propriamente respeito à existência humana. Primeiro, identifica uma dimensão que nós, humanos, partilhamos com animais mas também com vegetais. A nossa capacidade de assimilar nutrientes e de crescer é comum ao reino animal e ao reino vegetal. Cresce-nos o cabelo e as unhas. Aumentamos de tamanho desde a mais tenra idade. Desenvolvemo-nos até à idade adulta. Definhamos, envelhecemos. Morremos. A vida manifesta-se no seu sentido vegetal mais próprio na capacidade de processar alimentos, nutritivos, sólidos e líquidos, de os ingerir, digerir, assimilar. Nós e os animais e os vegetais. Aqui, não há diferença alguma entre a vida humana enquanto horizonte zoótico e os reinos animal e vegetal. Sem dúvida que há diferença no modo como nos acercamos dos nutrientes, os seleccionamos e segregamos. A planta de modo diferente dos animais. Os animais de um modo diferente do ser humano. Mas a “dieta” e o “regime alimentar” sempre foram objectos de estudo desde a antiguidade e encontra-se mesmo fixada nos textos mais antigos do pensamento ocidental.

 

O segundo estrato zoótico, se assim lhe pudermos chamar, é o da vida sensitiva ou perceptiva. Há textos em que Aristóteles exclui o reino vegetal da possibilidade de ter percepção. Outros há que o inclui. O reino animal partilha da possibilidade humana de ter capacidades perceptiva ou sensorial. Mas como é que uma planta pode ter percepção? Para Aristóteles, o facto de absorver água e os seus nutrientes e mesmo a necessidade de luz para a sobrevivência indicam, mais do que simbolicamente, a possiblidade de as plantas serem “sensíveis” ao meio ambiente. De resto, o modo como Aristóteles via a morfologia de uma planta por analogia com um animal não deixa de nos deixar perplexos do mesmo modo que nos permite compreender o que ele tem em mente. Diz Aristóteles, no De Anima, que a planta está de pernas para o ar, com o que corresponde, analogamente, à cabeça de uma animal enterrado na terra. Os seres animais, como os seres humanos, alimentam-se pela boca, normalmente, situada na cabeça. Assim, também uma planta. Só que a planta está de pernas para o ar e com a cabeça enterrada na terra. Podemos argumentar que o girassol parece ter a cabeça virada para o sol e, assim, gira orientado pelo movimento que o sol parece esboçar-se. Ainda assim, percebe-se que a terra dá nutrientes e a fotossíntese é uma realidade. Por outro lado, seres humanos e animais partilham de uma capacidade mais sofisticada de percepção, de locomoção, de reprodução e conservação, defesa, protecção e caça. A visão parece ser partilhada pelo cavalo, o boi e o ser vivo. Todavia, vemos de maneiras diferentes a mesma coisa. Podemos até reconhecer uma capacidade de visão ao falcão que nunca teremos. O mesmo com o olfacto do cão, etc. etc..

 

O horizonte zoótico que é próprio do ser humano, segundo Aristóteles, e não é partilhado por nenhum ser vivo nem ser vegetal, é o prático ou pragmático. Se quisermos, os humanos podem “existir” e a vida humana acontece na existência. Mas a vida animal e a vegetal, embora estando na realidade e na vida, nunca poderão existir. Uma planta está junto de outra. Pode até ser enxertada noutra. Mas nunca conviverão. Um animal pode conviver com outro animal, mas não existirá como cidadão num mesmo estado. “Ser um com outro” é uma expressão reservada ao ser humano. Só o ser humano existe com outro na polis, tem história e antecipa futuro. A zôê praktikê de que fala Aristóteles designa o horizonte específico do ser humano, mas, ainda assim, não capta a característica fundamental do bios.

O bios quer dizer a existência humana enquanto cronologicamente constituída: o tempo finito ou crónico, a distribuição da existência por tempo sido, tempo ser e futuro a haver, aspirações e desejos, conquistas e perdas, ambições e frustrações. Para os gregos, o bios mais do que um horizonte da cronologia que nos é loteada, é o resultado de uma escolha em que cada um pode ser de um determinado modo e ter um modo de vida.

8 Mar 2019

Educação I. Paideia. Uma questão semântica

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]gostinho da Silva costumava dizer que não gostava da palavra educação. Preferia a palavra instrução. Educação vinha do verbo “educo” em latim, um verbo composto de “duco” e do pré-vérbio “ex”. Assim, ex-duco quer dizer conduzir de dentro para fora ou desviar. Agostinho da Silva preferia, por isso, o verbo instruir, também um verbo composto do latim. Prevérbio “in” e o verbo “struo”. Instruir é assim construir a partir do interior, edificar. A palavra alemã para o que referimos como educação é “Ausbildung” e que quer dizer basicamente o mesmo que “instrução”. Não nos importa bem perceber qual é a palavra correcta para dizer o que acontece, quando falamos de instrução ou de educação, quais os seus conteúdos ou disciplinas e métodos. Importante mesmo é compreender o que a filosofia entendia pelo fenómeno da educação, da instrução ou da cultura, palavra que é, sem dúvida, um anacronismo. A palavra que os gregos, em geral, usam para referir o que podemos chamar educação é paideia. Habitualmente é a palavra que usamos para traduzir em grego o que dizemos já nas línguas modernas para nos referimos a educação. Mas o que é que os gregos pensavam que era a paideia. A palavra tem na sua raiz “pais, paidos” que quer dizer criança. O sentido é mais o de uma brincadeira de crianças. A situação crítica da padeia não refere apenas a circunstância de se pensar a paideia para crianças, a sua instrução e educação, mas uma aprendizagem para a vida. A paideia formalmente queria dizer uma brincadeira para se aprender a compreender de que é que se trata na vida. No limite, para aprendermos a saber quem somos, o modo com reagimos às coisas, se primária se secundariamente. Como podemos antecipar o que quer que seja na situação já aberta e em que nós desde sempre já caímos e na qual nós desde sempre também já nos descobrimos? A padeia tal como era pensada por Platão não era um corpo de disciplinas que formava um currículo, para a instrução primária, ciclo preparatório, curso complementar, ensino superior, para usar o nome das etapas que uma miúda ou miúdo da minha idade tiveram que ultrapassar. Era uma outra coisa completamente diferente e que faz parte do que podemos chamar criação e o que está na base do modo como fazemos experiência das coisas na vida, como temos ou não temos experiência da vida, como temos ou não temos mundo. A circunstância que Platão refere nas Leis, como a situa. Primeiro fazemos o treino da sombra. A “sombra” é para o boxe o treino em frente ao espelho ou isoladamente de técnicas que o iniciado tem de aprender a desenhar, a plástica do murro e por outro lado a coreografia do jogo de pernas. O avançado ou o pugilista amador ou profissional faz uso do treino sombra não apenas para aquecer mas para desenvolver rapidez e potência nas técnicas de puno e nas deslocações para “ter noção” do próprio corpo. Em segundo lugar, diz Platão, o pugilista tem de testar o poder e a rapidez dos seus golpes no embate no saco das mais diversas técnicas isoladas ou combinadas entre si. Em terceiro lugar, o pugilista ensaiará movimentos de esquiva e manobras de ataque com o seu parceiro de treino. Mudará de parceiro tantas vezes quantas as necessárias. Tudo será no ginásio onde se encontra. Depois, treinará com tantos adversários que puder. Por fim, será apresentado no ringue e fará o que puder. O processo de paideia de que Platão fala visa uma única coisa através de um processo complexo e de uma lenta agonia. O objectivo é o combate e o objectivo do combate é a vitória. Mas o mais importante é a compreensão de que nada do que se aprendeu fará sentido se não houver a capacidade de antecipação. Poderíamos falar de rotina de mecanismos. Podemos compreender que um jogador inato tem um talento que desenvolve, mas é nas situações concretas mais difíceis que ele inventa ou descobre a solução a partir do património de soluções que já estudou mas que têm de sair como se estivessem a ser inventadas na hora. Quem sabe faz a hora. Não espera acontecer. O mesmo processo de educação está posto ao serviço da administração interna para defesa de uma cidade. Os exercícios militares devem ser os mais duros possíveis. Tem de se pensar em todos os cenários e de desfecho letal e destrutivo. Diz Platão que, mesmo se um militar for ferido ou sucumbir à dificuldade, tudo deverá ser permitido dentro dos limites, sem dúvida, mas para que as mulheres e crianças de uma cidade possam sobreviver, a cidade possa ser preservada para as gerações vindouras.

Estes exemplos de situações concretas e difíceis visam lidar com a vida em circunstâncias limite. Não podemos despedir Platão como adepto de desportos de combate pela sua violência ou como um militarista nacionalista. Em causa está a situação lúdica ou da brincadeira séria com diversos limites de aprendizagem que não pretendem nunca uma repetição do que está a ser aprendido, uma lembrança em memória que diz tin tin por tin tin o que é repetido. Visa-se a resolução de uma situação crítica em face da qual, na vida, não há nenhuma espécie de solução. A filosofia não é o saber de tudo o que há para saber, a fim de obter uma repetição mecânica do que se aprendeu. Visa instruir-nos para as situações em que não sabemos nada da vida, não temos respostas e, ainda assim, temos de sobreviver o melhor possível. Quando não se sabe, quando não se pode, quando não se é capaz, talvez se possa gizar um sentido à luz do qual haja uma perspectiva com futuro.

5 Mar 2019

Elenchos: passar vergonhas e submeter a tratos

[dropcap]A[/dropcap]filosofia é uma obsessão compulsiva com a transparência. É uma paixão. É uma forma de erôs. Pode acontecer a partir de episódios de espanto em situações extraordinárias. O maior espanto é de segunda ordem: um espanto com a ausência de espanto, o que quer dizer que a trivialidade causa espanto por si, porque torna trivial o que não é trivial, o facto de as coisas serem em alternativa a não serem e serem precisamente como são e não de outra maneira. A filosofia é método: modo de fazer o caminho, viajar, fazer uma jornada. Não é uma deslocação. É uma mutação em que nada fica na mesma, ainda que a força do quotidiano e da atitude natural se possa sobrepor às paisagens visitadas.

Muitas das palavras usadas pelos filósofos para descrever o seu método estão pejadas de violência. Na famosa alegoria da caverna de Platão, onde se encontram os humanos, prisioneiros das sombras, aquele ser humano excepcional que vê a luz passa faz uma experiência violenta, aparentemente contra a sua vontade, de uma forma inesperada. Ele é agarrado, empurrado e puxado para cima. Da posição de sentado é atirado para a superfície do poço em que se encontra. Lembro-me como na Florida num campo de diversões fui arremessado, sentado numa cadeira, para o alto, uma centena de metros: da escuridão de uma sala para o dia de sol sob a abóbada celeste. Na verdade, fui puxado e empurrado. Não sabia ao que ia, como o prisioneiro. Muda o quadro da situação, muda o plano de fundo da escuridão, da noite, do interior, para a luz, o dia, o exterior. E, ainda assim, terá de voltar para o interior, para o fundo, para a escuridão, porque tem de regressar para os seus e tem de contar o que viu. Comunicar não é apenas informar, por mais meritório que seja. A comunicação é constitutiva do ser humano. Mais do que uma forma de expressão é a possibilidade não anulável de aproximação ao outro, de neutralização da solidão. Mas do mesmo modo que custa ouvir as verdades também aos outros custa escutá-las. Custa tanto que podemos nem sequer perceber do que se trata.

As palavras como procura, inquérito, processo denunciam, por outro lado, a linguagem jurídica que perpassa toda a história da filosofia. A abertura de inquérito, contudo, nem sempre é pensada num estado democrático com boas práticas cheias de humanidade. Na verdade, a prova de fogo ou a pedra de toque são os critérios que os antigos usavam não apenas para testar metais, designadamente o ouro. Mas, se o inquérito for policial, os métodos antigos não são ortodoxos. São a violência pura da tortura. O elenchos (refutação) e o basanos (pedra de toque) são os operadores utilizados para o apuramento da verdade.

Em parte, pode perceber-se que a interrogação se pode fazer às cegas, sem ter nada de concreto. Por outro lado, o inquérito é como um interrogatório a que se submete alguém. Mas somos nós que nos submetemos a um interrogatório, sem sabe bem a que chegaremos, e, de facto, submetemo-nos a um interrogatório de um modo violento, submetemo-nos a tratos. o elenchos quer dizer argumento que visa a refutação, uma redução ao absurdo. Não se trata de uma prova por defesa mas uma acusação que visa a descredibilização de alguém ou da opinião de alguém, visa dizer que a opinião de alguém é infundada e que alguém não é digno de crédito. Uma vez mais, se nós formos o sujeito submetido a inquérito tal quererá dizer que não somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são infundadas, quando achamos exactamente o contrário: que somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são oraculares. O exame cruzado, o teste, a submissão a escrutínio implica precisamente uma forma de pensar que sai verdadeiramente de si. Pensar por si não é apenas pensar para si. Pensar por si desvincula-nos do alto conceito que temos de nós e põe-nos em questão, põe problemas ao que pensamos, faz-nos perguntar sobre se o que pensamos é fundado ou não, obriga-nos a dar conta da nossa própria vida e em última análise dá-nos a oportunidade de nos retratar. Por outro lado, temos de fazer prova primeiro contrária do que achamos saber e depois para defender o que achamos que é uma opinião saudável. Tal como num processo judicial do ponto de vista da acusação, temos de fazer prova que leve à condenação do arguido. A defesa procurará provar a inocência. A condenação e a inocência dependem do processo judicial que o júri avaliará para ditar a sentença. Mas o arguido, o réu, o condenado e o absolvido, a acusação e a defesa e o próprio júri são a mesma pessoa. A filosofia age em prol da verdade do ponto de vista da acusação. Procura mostrar que tudo o que sabemos assenta num julgar que se sabe. Julgar é apenas subjectivo. O saber pode depender inteiramente desse julgamento opinativo e nada ter que ver com a verdade. Julgar saber é privado, subjectivo, e não pode ter pretensão de verdade, quando a tem em absoluto. Mas como submeter tudo a exame? São todas as nossas opiniões de um ponto de vista teórico?

A palavra elenchos quer também dizer passar por uma vergonha, passar por um vexame. Tal quer dizer que se trata de uma experiência violenta, extraordinária, excepcional, eventualmente episódica. Significa que o que fazemos é mal feito, do ponto de vista moral, psicológico, atenta contra a nossa integridade física, psíquica e pessoal. Mas ao passarmos por um vexame somos postos em causa, por termos feito qualquer coisa às escondidas, que não queríamos que se soubesse que a tínhamos feito, e é denunciada, somos apanhados em falso. A forma: fazer em privado qualquer coisa às escondidas, em que não queremos ser apanhados, e seremos denunciados é a forma da vergonha, do atentado ao pudor, do vexame. Não é qualquer coisa pela qual gostaríamos de passar. Era a última coisa que queríamos que se soubesse independentemente da sua causa ser moral, psicológica ou o modo como avaliamos pessoalmente quem nós somos e o que fizemos. Mas uma coisa é passarmos involuntariamente por uma vergonha e outra coisa é queremos passar por uma vergonha, confessarmos à última pessoa a quem queríamos confessar a única coisa que fizemos e não queríamos que ninguém soubesse. É justamente aqui que a filosofia encontra o seu método. Como se tivéssemos cometido um crime e fossemos rapidamente à polícia para nos confessarmos e sermos julgados o mais depressa possível, para sermos condenados e assim purgados desse crime. O crime na filosofia é a opinião, termos uma opinião que não sabemos de quem é autoria, sermos o resultado de preconceitos, vivermos pejados de preconceitos contra os outros, contra as coisas, contra nós próprios.

É preciso uma prova de fogo ou como os antigos diziam um basanos, uma pedra de toque para identificar o ouro. Quando passado o ouro por essa pedra, nela ficava uma linha amarela que indiciava que o metal não era falso mas era ouro. Do sentido literal do termo ficou um sentido figurado: teste, tentativa de verificação da autenticidade ou da genuinidade de qualquer coisa ou de um testemunho. Era também a palavra em Atenas para tortura que visava extorquir evidências a escravos, para testemunharem contra os seus senhores. Aqui, somos nós que nos submetemos a tratos, à tortura violenta que nos leva a abrir mãos dos nossos preconceitos, dos juízos prévios e irreflectidos, tudo o que nos envergonha, tudo o que é ignóbil, tudo o que nos desonra e nos deixa seres menores ou desprezíveis ainda que só aos nossos olhos.

E para quê? A hipótese que nos lança neste projecto é-nos imposta tal como o espanto, numa primeira instância. Mas pode constituir-se em necessidade intrínseca, como um modo de vida, como a maneira de fazermos caminho. Não há caminhos sem nos fazermos ao caminho. O caminho faz-se andando. Tal como o método para os antigos. Saber é fazer. Saber é explicar. Na mais longa viagem que é a nossa vida, na jornada terrível e admirável que temos cada vez mais curta pela frente, o real é menos do que o possível, o sonho é maior do que a realidade concreta, mas a possibilidade remete para a realidade como o sonho para a vigília. E vice versa. A escuridão define-se relativamente à luminosidade, a noite para o dia, a morte para a vida. Nada do que nos acontece está fora do horizonte aberto, irreversível, mutante da vida continuamente a deixar de ser. Nenhuma opinião é fora deste contexto. O que achamos que é para sempre é caduco, quem nós achamos que não desaparece nunca está a deixar de ser. Também nós não percebemos o ridículo das nossas opiniões e do nosso saber. E também saber que é ridículo o que sabemos e que é ridículo repeti-lo é uma forma de passar pelo vexame e pela vergonha de ousar submeter-nos a tratos para passar vergonhas.

Mas o longe é possível assim, somente.

 

26 Fev 2019

II O espanto

[dropcap]U[/dropcap]m dos problemas postos no interior da actividade filosófica, da acção do filosofar, é o da motivação, o da fundamentação complexa que desencadeia o filosofar. Tanto mais assim que toda a filosofia procura a transparência relativamente ao seu próprio acontecimento. A obtenção de transparência relativamente a si próprio enquanto filósofo procura sempre obter inteligibilidade sobre esta possibilidade humana. A hipótese com que sempre nos teremos que ver a respeito da filosofia é a de que lhe corresponde um modo inteira e radicalmente diferente de vivermos a nossa vida com os outros no mundo. Isto é, o modo como habitualmente nos encontramos depostos nas coisas, a maneira como nos relacionamos com os outros, a forma como damos conta de nós próprios, pode ser diferente. Para que esta hipótese não seja académica e afastada da nossa realidade, tem de se perseguir vestígios da possibilidade de haver um mundo diferente daquele em que vivemos, de o mundo poder apresentar-se, se não, como é em si, pelo menos numa apresentação diferente daquela de que ele se reveste, que nós próprios podemos ser diferentes, outros, irreconhecíveis para nós tal como somos, que os outros também nos podem aparecer sob uma outra luz completamente diferente. Uma coisa é certa. É extraordinariamente difícil abrir mão do preconceito fundamental que nos faz aderir à compreensão que temos das coisas, na verdade, que a nossa compreensão nos permite interpretar as coisas tais como elas são em si, impermeáveis a qualquer tonalidade privada e subjectiva. O primeiro passo é o da auscultação da diferença. Como perceber que a interpretação do mundo de coisas e dos mundos que são os outros bem como do nosso próprio mundo enquanto a vida que é é a que temos é precisamente a nossa interpretação. De uma forma mais precisa: a minha interpretação. Sou eu o agente e o protagonista da vida. És tu o agente e protagonista da tua vida. É ela e ele o protagonista da vida dela e da vida dele. Somos nós, sois vós, os protagonistas das nossas, vossas vidas e eles das vidas deles. Os gregos encontraram no espanto a possibilidade concreta de encarar a sério a possibilidade de as coisas não serem como nos aparecem ou como nos parecem ser. A palavra thayma descreve um objecto espantoso, uma experiência espantosa, uma afectação que provoca um estado mental de espanto. A palavra exprime um sentido que excede o conteúdo do objecto enquanto tal. O que é espantoso no objecto não é, a bem dizer, nada. É o modo como se dá a ver, como se apresenta, como nos afecta que é espantoso, agente provocador de espanto, o próprio resultado de espanto. A par da palavra espanto, pasmo, encontramos as palavras admirável. admiração, admirador, maravilhoso, maravilha, emaravilhamento, maravilhado. A experiência do espanto, do espantar-se com algo ou alguém e até o ficar espantado consigo é complexa. Há dois vectores afectivos que podemos determinar. Por um lado, produz-se uma atração na direcção do que provoca espanto. Queremos olhar para o espantoso, o que está presente no étimo de admirar: mirar, olhar para. Por outro lado e pelo contrário, espanta, põe em fuga, desperta aversão ou um respeito que não nos deixar encarar olhos nos olhos nem arostar com o que é espantoso. Fazemos uma experiência de perplexidade. Por um lado de emaravilhamento e por outro de espanto em sentido estrito. Um pode ser preponderante em relação ao outro, pode haver sensações sucessivas dos dois sentimentos, pode dar a sensação que maravilha e espanto estão a acontecer ao mesmo tempo.

Todas as coisas maravilhosas do mundo vinculam-nos num olhar para as ver e estar a ver. Todas as coisas espantosas do mundo podem ser medonhas e terríveis. Metem medo, receio, terror e horror. Podemos perceber que a experiência implica objectos que são assim caracterizados: a beleza de uma pessoa, a linha do horizonte, o Atlântico, o pôr do sol, o cume de uma montanha, o jogo da luz a criar as luminosidades do dia, as estações do ano, etc., etc.. Há também coisas que metem medo: o olhar frio do assassino, o poder demolidor de um exército, de catástrofes naturais, tsunamis, incêndios, desastres. Há coisas que são dignas de admiração tal como pessoas. Há coisas e pessoas que espalham o terror. Em qualquer dos casos e qualquer que seja a combinação entre as disposições que são despertas em nós, fazemos a experiência de perplexidade, somos acordados violentamente do sono quotidiano, do modo como nos encontramos habitual e normalmente. É o que acontece no fenómeno da paixão, da “filia”, da obsessão compulsiva com um determinado objecto, na relação perplexa com um conteúdo erótico no sentido mais lato do termo, com aquilo que mexe connosco, de que gostamos muito, que constitui a nossa identidade.

Na paixão, sentimos uma invasão total, avassaladora, com a presença de alguém, que muda simplesmente a nossa vida. Mas não se trata apenas da alteração do estado da consciência provocado pelo amor erótico ou pela amizade profunda e amor que sentimos por pessoas. A alteração provocada pelo estado de paixão pode ter como objecto a ciência, a arte, a religião, tudo aquilo a que nos dedicamos, as nossas devoções, o que nós somos e o que nós fazemos.

Tudo pode resultar de uma espécie de entusiasmo, uma invasão do divino em nós, que permite escutar o que as musas têm para dizer e que o dizem como se estivessem a ditar o que temos para escrever. É como se sentíssemos a inspiração que “sopra” uma brisa ou um vento que cria uma dimensão diferente daquela em que habitualmente nos encontramos. O que sucede nestas variações disposicionais complexas é a criação de mundos paralelos que estavam adormecidos que eram como se não existissem e passam a ser despertos, mantidos acordados. E nós transformamo-nos para podermos habitar esses mundos e existir nessas outras formas de vida. Há uma metamorfose do objecto e uma metamorfose dos próprios. O músico é diferente quando vai de pagar impostos e quando está tomado de um transe inspirador que o transporta para a dimensão intrínseca do horizonte musical. O mesmo se passa com o actor, com o pintor, o escultor, o escritor, o poeta, o sacerdote e o professor.

Temos estado a referir experiências radicais, recalcitrantes, que testemunham a diferença entre a vida de todos os dias de que não despegamos ou que não nos demite e uma outra possibilidade de vida mais intensa, radical, que depende da existência de inspiração, entusiasmo, espanto, admiração, respeito, interesse.

O espanto filosófico é, contudo, diferente. Ou antes assume um rosto diferente também. Não é apenas o episódico e o extraordinário que permite compreender a diferença entre o mundo criado pelo entusiasmo e o mundo sem entusiasmo. O destino da filosofia está em compreender que os maiores problemas se encontram depositados nas coisas mais banais e aparentemente triviais. O espanto não é com o diferente é com o igual. Como é que a mesma coisa, a mesma pessoa, nós próprios, tudo é o mesmo objectiva e realmente e, contudo, completamente diferente, tudo pode ser completamente diferente. Podemos apaixonar-nos por uma pessoa que nunca vimos, como por actividades de que não tínhamos nunca feito a experiência. Mas podemos também ver uma pessoas 2000 mil vezes e apaixonar-nos por essa pessoa à bilionésima primeira vez. Podemos dar conta da maravilha daquilo a que nos dedicamos e do que propriamente fazemos, décadas depois de o termos iniciado, já estafados e sem o entusiasmo sequer de principiante.

Aristóteles dizia que era espantosa a incomensurabilidade do triângulo, as fases da lua, os eclipses do sol e da lua. Mas mais espantoso é isso ser espantoso, porque é assim que esses fenómenos extraordinários são. Mas tudo é extraordinário. Estar vivo e ser é espantoso porque há ser e não nada, estamos vivos e não se dá o caso de estarmos mortos. Espantoso são todos os objectos, todas as coisas, todas as pessoas por que sob plano de fundo existe o horizonte relativamente ao qual tudo é forma, no qual tudo está distribuído numa coexistência de sequências temporais que entroncam num mesmo e único tempo que se está a fazer ao mesmo tempo que ele próprio passa e com ele todos os conteúdos que são no seu todo.

19 Fev 2019

Um itinerário

[dropcap]O[/dropcap] João Paulo Cotrim com o anfitrião José Teófilo Duarte e eu, decidimos animar com filosofia o magnífico espaço da Casa da Cultura de Setúbal, às segundas sextas-feiras de cada mês. O João Paulo Cotrim, com o seu jeito, inato e trabalhado, para títulos, é o autor deste. Agora, temos como anfitrião o Carlos Morais José, que nos abriu a porta do Hoje Macau. Não se fará a transcrição do que tem acontecido e irá acontecer, até mesmo porque não temos gravado todas as sessões. O que lá se tem passado resulta de uma preparação dos temas em conjunto com o João Paulo Cotrim que não é mero entrevistador, por mais elevada que seja a prestação do entrevistador. O João Paulo Cotrim é um actor protagonista que comenta, resume, lança e relança os pontos que temos previstos no alinhamento e itinerário para cada tema. É disso que em certo sentido se trata: oferecer aos leitores do Hoje Macau aquilo a que os alemães chamam protocolo das aulas. As aulas dos seminários começam com um resumo da aula anterior. A partir daí retoma-se a própria aula. Dividirei tanto quanto possível o assunto de cada mês em quatro partes. Cada uma delas corresponderá a uma parte do protocolo da sessão inteira. Esta primeira procura esclarecer o sentido do título a pés juntos ligado explicitamente à filosofia.

“A pés juntos” explica adverbialmente o modo de saltar, entrar, jurar. Mas também podemos atirar-nos de pés juntos, num movimento ofensivo, para cair em cima de um adversário. Ou, apoiar pés juntos, para esticar as pernas e nos afastarmos do fundo do mar, para vir à superfície. A expressão dá ênfase ao sentido do verbo. O que será então a filosofia a pés juntos? É um modo como podemos abordar a filosofia. Fincar pé e, enfaticamente, procurar saltar para ela, entrar nela, num movimento que vai na sua direcção. Pode significar, também, se a tomarmos como sujeito, que é a forma como ela acontece, ao assaltar-nos ou ao entrar dentro de nós. As sessões a decorrer na Casa da Cultura de Setúbal terão este mote. Soltaremos filosofia para que nos ajude a saltar para o âmago de temas que nos assolam. Despiremos a sua roupagem técnica. Deixaremos que cerque, abalroe e invada tudo quanto nos preocupa. É assim também que lidaremos com ela. Como se fosse um animal que nos serve de defesa e, por isso, não pode estar completamente domesticado. Terá de encontrar vestígios, farejar pistas que tentaremos perseguir. A sua presa será sempre emboscada. O sentido que se persegue a pé juntos com a filosofia terá de dar caça a cada tema das nossas conversas.

Educação?

A educação é uma das presas a que daremos caça. Agostinho da Silva dizia que se devia banir o termo e, consequentemente, o sentido que lhe dá compreensão. Dizia ele que educação vinha do latim ex-duco que quer dizer conduzir de dentro para fora. Portanto, educar pode querer dizer levar para fora do caminho interior de cada um. Podemos pensar na diferença anulada por uma versão do ensino que procura uni-dimensionar cada pessoa, homogeneizá-la, planifica-la. A sua proposta para o ensino era expressa na palavra instrução. In-struo em latim quer dizer construir a partir do interior. Portanto, a aprendizagem é uma compreensão da essência de cada pessoa, o seu modo de ser, como é suposto existir com as suas possibilidades mais radicais. A possibilidade mais radical de um ser humano será a técnica ou a poética e a prática. Agir é importante. Produzir é importante. Criar é importante. Não saber o que quer que seja assim sem mais para ter sabido, mas para intervir, sobretudo, sobre o próprio.

Fronteiras

As perguntas mais básicas da filosofia interrogam sobre a situação em que cada um de nós se encontra. A mais básica é onde estamos ou onde somos? Em que tempo vivemos? Quando passamos por aquilo pelo qual passamos? Com quem fazemos vida? O que fazemos aos outros, sob a nossa acção e o que os outros nos fazem deixando-nos vulneráveis às suas acções? Todas as perguntas desenvolvem a questão fundamental pela situação existencial. A situação terá de começar por uma explicitação espacial, regional, local, fronteiriça. Erigimos barreiras entre os problemas que temos em lidar com determinadas pessoas e assuntos que jazem fundo nas nossas vidas. Mas também destruímos muros. Abrimo-nos aos outros tal como nos abrimos para nós, quase sempre por causa dos outros. Também traçamos fronteiras físicas, geográficas naturais e artificiais, linguísticas. Há entre quem cada um de nós é no seu interior e o meio que o envolve fronteiras. Há o interior e o exterior. Há espaços privados com o direito reservado de admissão. Há espaços interditos, privados. Há espaços públicos. O próprio corpo no seu interior tem a pele como fronteira para o mundo exterior. E entre o interior da nossa alma e o exterior que é o nosso corpo não haverá também barreiras que se erigiram e podem ser intransponíveis se não fizermos adequadamente a pergunta como somos alma e corpo, ou mente e físico?

Justiça

Dos problemas sempre decorrentes, a definir como a filosofia entra a pés juntos no que procura compreender, por ser opaco e nós querermos obter transparência, é o da justiça. Sócrates dizia que é melhor sofrer a injustiça do que a cometer. Dizia ainda que, uma vez tendo nós cometido a injustiça é melhor pagá-la do que ficar impune. Aparentemente, Sócrates defendo o mundo às avessas. Não queremos nós “fazê-las”, primeiro, antes que no-las façam a nós? E tendo nós sido injustos não estaremos continuamente a invocar pretextos e desculpas que tendem à atenuar o que fizemos de mal aos outros, com o fim da nossa absolvição? Ser justo ou ser injusto, sofrer a injustiça ou obter justiça implica uma relação intrínseca, não anulável, ao outro. É por sermos uns com os outros, antes de tudo o mais, que, mesmo sem o sabermos e, apenas pelo facto de existirmos, podemos fazer os outros sofrer. Ou porque sem querer os ignoramos e não lhes ligamos nenhuma. Ou porque dizemos da boca para fora uma palavra ao próximo. Impensada uma palavra pode ferir. Ou porque uns se deixam aos outros para ficarem cada um deles com outros ou sozinhos. Seremos nós vítimas de todas as injustiças ou os algozes das injustiças que infligimos aos outros?

Identidade

Talvez devêssemos falar de identidades. Reconhecemos uma coisa, quando dizemos a sua identidade específica. A identidade de uma coisa dá-se na identificação dessa coisa no que ela é, por onde é que ela vem a ser o que é. Um rectângulo de madeira, pintada de azul com 2.10 m de altura e 70 cm de largura, perpendicular ao chão, não permite reconhecer a porta de uma sala. Nem tudo o que é rectangular é porta e há portas que não são rectangulares: ser de forma rectangular, ser de madeira, ser azul, ter determinadas medidas são os conteúdos específicos da porta, mas o ser da porta não “existe” nesses conteúdos. A identidade da porta é o que faz a porta ser porta. É abrir e fechar para deixar entrar e sair, é libertar e prender, é deixar preso num interior ou permitir sair para o exterior. Os infinitivos nucleares: abrir e fechar, deixar entrar e sair, são o ser da porta. Não são conteúdos presos aos componentes da porta. A identidade da porta é reconhecida, quando, ao olhar para os seus componentes materiais, a porta se dá reconhecer pela sua compreensão. Compreender uma porta é saber poder intervir nela, accionando efectivamente a possibilidade que oferece. Como identificar uma pessoa? Será o humano definível como se define um objecto técnico, uma peça de vestuário, um artigo ou instrumento? Os antigos diziam que a identidade pessoal é diferente da identidade natural ou técnica. Ser eu tem uma identidade no próprio, no mesmo, que me permite reconhecer ser eu próprio e não apenas a abstracção animal racional.

Corpo

Nem sempre o corpo foi compreendido em oposição à alma. Em Homero há duas palavras para dizer o corpo vivo e o corpo morto, como talvez possamos compreender que um cadáver é um corpo morto. O que qualifica a compreensão de um corpo morto, sem alma, abandonado pelo espírito? Como podemos compreender o corpo como um organismo que alberga aparelhos, que por sua vez, são feitos de órgãos, como compreender o corpo como mecânico e, por outro lado, como o horizonte no qual cada um de nós se encontra consigo, com a vida e com o mundo, com o mundo e a vida dos outros? Somos nós do tamanho da nossa altura ou do que vemos? Estamos nós apenas no interior das fronteiras do corpo ou estamos sempre fora de nós, a olhar já para as coisas como que a tocar-lhes e não para as lentes dos óculos ou de contacto nem para a superfície ocular para lá da qual começamos a ver? E quando adaptamos próteses, guiamos veículos, manobramos máquinas, usamos utensílios não estamos antes a intervir no próprio corpo como aquém e além de nós mesmos? Não nos apropriamos também como se fosse uma segunda natureza, um segundo corpo, de todos os instrumentos que nos permitem uma intervenção no mundo? E o corpo do outro é o que vejo apenas anatomicamente ou é de quem eu tenho medo e me terroriza ou o que me atrai no outro, que eu desejo, que eu amo? E o meu corpo para o outro sou eu reduzido de mim no que sou ou sou isso mesmo apenas, o meu corpo, veículo de terror e de desejo?

Criação

O sentido do ser na antiguidade era expresso pela natureza que faz nascer. Ela própria está continuamente em movimento criacionista e é a partir dela e para ela que tudo nasce e morre. A produção, poiêsis, o produzir, poiein, é a metáfora viva do ser. Criar é uma forma radical de ser, fazer existir, fazer ser. A obra de arte e a natureza interrogadas na sua origem têm uma concepção de criação. Criar é por um lado fazer artística, técnica ou profissionalmente algo, mesmo até na genética e na sua engenharia se podem criar seres humanos. Mas esta criação é feita a partir do que já existe. Não é formar é transformar. Não há criação a partir de nada, diziam os antigos: ex nihilo nihl fit. Mas não é a criação, pensada a partir do nada. Do nada que não existia, passa a existir, pelo menos, algo. Ainda assim, é da massa informe que surge a forma, do que estava mergulhado na noite do ser que passa a despontar o dia e todos os objectos que possam ganhar contornos e ser definidos, do caos que tudo engoliu de um só trago passa a haver o cosmos, a ordem que ordena e organiza intrinsecamente todas as coisas que são, porque age sobre si própria a partir do princípio formador das coisas que são. A criação é decalcada da conservação. A realidade é mantida, repetindo o que lhe esteve na origem, quando ainda não era nem nada de real ainda tinha passado a ser.

Cidade

É um dos lugares específicos em que o humano vive. É o seu sítio natural se não fosse aparentemente artificial relativamente à paisagem que achamos que encontramos no seu estado virgem: o campo, o interior e o litoral, as diversas morfologias geográficas são pensadas em contraposição à urbe. Como é uma cidade sem alcatrão, estradas, ruas, travessas, calçadas, avenidas? Como são as cidades de Portugal sem calçada portuguesa? Mas a cidade não é apenas a morfologia artificial que transforma a natureza. A polis era o próprio estado. Estruturalmente, cada ser humano era a cidade inteira, não apenas os seus contemporâneos, os seus concidadãos, mas os seus compatriotas das gerações passadas e vindouras. A cidade nasceu de uma aglomeração de seres humanos ou, antes, não será porque cada ser humano é já todos os outros humanos que se deu a conglomeração e o ajuntamento? E a comunidade complexa da comunidade ou da sociedade dos humanos que habitam o planeta terra não terão uma saudade da cidade de Deus ou daquela outra cidade que é um projecto e talvez uma construção do humano, mas que alberga o universal humano de que todos de nós, coletiva e individualmente, somos portadores?

12 Fev 2019