Rosa Coutinho Cabral Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuEra uma vez uma sombra que fugiu da parede… Aurora, Murnau -1927 “Os poetas , como os cegos, podem ver no escuro” Jorge Luis Borges Entrei numa gruta sem saber onde estava. Os gritos do imperador ecoavam de dor, enquanto os seus olhos se derramavavam nas sombras da sua concubina preferida, reminiscências daquelas que Platão aprisionara na sua caverna. Simulacros lançados na indefinida coreografia que iria reger o ocidente e o oriente, ao compasso de incertas dramaturgias entre transcendência e imanência. Deitei-me, fechei os olhos e disse para mim mesma: daqui não saio, daqui ninguém me tira. O real ensopado de mil chuvas e corroído por mil vermes ficava de fora. Eu ficava dentro, no lugar onde todo o espaço explodia e se guardava no meu olhar, qual porto onde ancorava um desejo antigo, muito antigo de cinema, antropologicamente antigo e aparelhado pelas mãos de Dédalo. Uma vontade de ver imagens correndo em continuidade e animadas pelo vento. O cinema era o Outro, deste outro tempo anterior que já não estava ao alcance da minha mão, mas do encantatório Rosebud sussurado por Orson Welles, hipnotizando o fundo do meu pathos. Fui afectada pelos ecrãs dos cinemas, viajei por muitas cidades cinematográficas desde Griffith, Lang, Ford, Mizoguchi, Renoir… foram dias felizes. Na verdade as metrópoles mais belas da carta-khôra destes meus contos, são acontecimentos, metamorfoses semânticas, rasgos no céu e no devir. Como os gregos, nada somos se não vivemos numa cidade e, diferentemente deles, o que nos atrai, contemporaneamente, é o desvio do que já aconteceu e nos conduz para mais longe, na direcção de um não acontecido – o horizonte poético da potência. As minhas cidades são erguidas pelos artífices e artesãos da arte e porta voz de uma energia urgente e inadaptada, e as cinematográficas rompem a parede onde estão as sombras, passam para o real e para o sonho de uma sombra, percorrendo a extensa região de Píndaro. Eclipsando a importância da Sagrada Família ou da Casa Milá de Gaudí, as notas em sol triste, que ecoavam num beco, atraíram-me como uma fêmea com cio para a cave escura onde Tete Monteliu improvisava ao piano. Connosco o clube ficou com 3, 4 pessoas no máximo, numa total escuridão. Embora o jazz fosse um país que conhecia há muito, e do qual podia desenhar o mapa quase de olhos fechados, lembro-me bem como fiquei emocionada. Tudo o que interessava naquele momento eram as mãos que inquietavam aquelas teclas num misteroso processo, improvisando. É esta a figura do trabalhador que habita as cidades do meu planisfério. O que contraí o síndrome de improvisar como um actor, um músico, um filósofo, e de inventar como um cientista, ensaiar como um pensador… Neste síndrome, vários sintomas sem causa e sem resposta, disparam, emergem, contaminam as sombras negras daquela cave, revelando um corte, uma inadequação, uma esperança, uma guerra. Suspeitava, claro, da violência com que tudo se arquitectava, o que confirmei nas inúmeras visitas que fiz como viajante, a Brecht, Godard, Viola, onde grandes revoluções foram projectadas. Pouco a pouco, o trabalho das sombras fez de mim testemunha de um passe de magia em que o logos foi conquistado pela imagem, soltando-a agora da black-box e expandindo o que o cinema, afinal, nunca pôde prometer. Por todo o lado, o reflexo narcísico e predador invade territorialmente o mundo, numa expansão imperial sem precedentes, na rede, na white-box dos museus, no teatro, nas instalações, nas televisões das casas, nos computadores, nos telemóveis… e, confesso, até tenho medo que a hybris tecnológica mobilizada pela imagem, se torne tão omnipresente que nos possa cegar. Voltei à gruta onde encontro Winona Ryder, imóvel durante 30 minutos, enquanto Bob Wilson ajusta as luzes até a imagem de Dias Felizes desaparecer na escuridão. Fecho os olhos e vejo o último plano de Trás os Montes de António Reis: um homem afasta-se em profundidade na paisagem como se fosse parte de um tempo sem ponteiros. Quem é o outro inventado pelo cinema quando devolve, não a coisa em si, mas a coisa constituída de inesperadas qualidades da mediação? O que muda agora, quando a sombra que se solta da parede continua presente na sua travessia, mesmo quando abandona a projecção numa sala de cinema? Já de partida, e sem resposta, sonho com Diotima que nasce do negror clássico e me traz numa caixinha de berlindes a memória de Eros. Mais do que deus da ligação, ele é aquele que é capaz de tornar visível o que não está ligado, aparelhando tecnicamente a circulação das imagens, transformando-as na mais poderosa carga de afecção do mundo actual. Como ser intermediário, Eros captura o síndrome da visibilidade irreversível, num movimento de sombras nunca visto. Identifica os sintomas num mundo agora prometido aos Maelstrom de Poe, que é preciso, se calhar, preencher com imagens que não eram previsíveis ou que estavam ocultas e desligadas no anterior regime de virtualização do mundo. Imagens que são agora o que nos securiza na grande queda da vida e se soltam e correm em todo o terreno possível. Ao contrário de Platão, que temia que a escrita matasse a memória, eu, afinal, não temo que as imagens ceguem o mundo. Sei que os corpos terão de levar para longe, muito longe, esta carga, em subtis remediações de imagens neste mundo medial. Mas nunca esqueço que Murnau ainda é a cidade onde encontro a mais bela e triste aurora…
Rosa Coutinho Cabral Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuConto 2 Tenho um olimpo de bolso onde moram o clássico, o moderno… Coro: Sou solidário: como, sem alguém que o assista, sem um sócio que o esguarde, infeliz, sozinho sempre, padece de moléstia que não cede… Neoptólemo: Começo pelo início: somos gregos, se é isso o que desejas conhecer. Filoctetes: Que som subtil! Depois de tanto tempo, ouvir desse rapaz a doce música. Estou deitada de costas de olhos postos no céu, como se ele fosse o grande atlas de todas as cidades que planeei conhecer nestes contos. O céu, não sei onde termina, mas sei que é do tamanho do meu olhar. Lá se projectem as imagens do Olimpo, que contemplo da humilde plateia planetária. Está tudo ali desde a primordial angústia, o primitivo som, o original risco, a grávida palavra, o primigênio grão semeado, o inconfudível símbolo orto-gráfico, a paradigmática sedentarização, a linguagem que nos permite, entre outros, ao trágico e à cidade. Anseio que se soltem na tela do destino todos os pequenos olimpos que os humanos guardam no bolso, libertando performativamente a figuralidade, entre passados, presentes, e futuros, na valsa da realidade que nenhuma linguagem pode captar totalmente. O baile, devassando poeticamente a experiência, remete as obras para a empiricidade e para as imagens, que se instalam na crosta volúvel e caprichosa da Terra, o singular acontecimento que nos move no mundo. Em profundidade, a cena ganha a cor dos belos cabelos de Ariadna quando entrega a Teseu o fio que, mais do que salvá-lo no labirinto, o salva da natureza que ela representa e, traindo-a, o herói afirma a isonomia e a polis. Vendo isso, Dionísio, deus da potência e do irracional, casa-se com a princesa abandonada por Teseu e dá-lhe filhos. Mais tarde, mata-a, projectando para sempre no céu a constelação da figura trágica de Ariadna. O labirinto pode ser Dionísio, mas pertence ao touro -“besta que desatrela a vida e que a afirma na legitimidade da ocupação do seu labirinto”- como segreda Deleuze. Certo é ser um lugar sempre inaugural: cada vez que se avança, entre figuras, fantasmas e corpos, a natureza incontrolável da experiência renova-se nas entradas, corredores e clareiras, onde afinal não nos perdemos, mas retornamos nietzscheanamente. Numa voluntariosa afirmação, Sófocles, o cidadão da polis grega, e Godard, saído da multidão contemporânea, entram em cena, opondo dramaturgicamente a cidade que ganha, à cidade que nos perde. A imagem é refractada e desfocada pelo choro que inquieta as urbes quando a tradição se quebra, e novas linguagens emergem. A Tragédia, quando a cidade está na aurora da sua positividade com o nascimento da Polis Grega; o Cinema, quando a cidade moderna enfrenta o seu primeiro momento de crise e negatividade, como é a Paris de Baudelaire e Benjamin. Neste devir solta-se um testamento que não é destinado ao futuro, como desconfia Char, mas deixa herança desde que romperam na terra a divisão entre os que veem e os que actuam, criando uma comunidade específica: a dos espectadores, separados fisicamente do palco ou do ecrã. A luz baixa, e dois offs – que os textos também os têm – juntam-se à cena. Aristóteles (OFF): A plateia é a comunidade de cidadãos… Barthes(OFF): … que provavelmente conhecem as tragédias que vão assistir. Como se uma grande faca tombasse sobre a experiência, a mão grega corta ontologicamente com a totalidade mítica do mundo. Numa paideia cívica sem precedentes a Tragédia exorta a universalidade racional da acção humana e persuasão dos cidadãos pela palavra, no espaço público da polis. Vernant e Barthes confirmam que as perguntas dramatúrgicas expressam o novo quadro cívico e se distanciam das antigas respostas míticas. O fio de Ariadna ligava, afinal, dois mundos cuja separação foi mobilizada politicamente na Tragédia, celebrando com os contemporâneos a superioridade do novo mundo grego. Como um tremor de terra, 2000 anos depois, a crescente velocidade tecnológica acelera e instabiliza a experiência, esfacelando o espaço público clássico, actualizando um modo de ver adequado à vivência moderna: tempo descontínuo, espaço fragmentado, montagens rápidas de imagens e sons, numa estética do choque. O cinema é a escola desta nova forma de percepção, “aquilo que os gregos designavam por estética”. Benjamin deixa claro que a “percepção da colectividade humana transforma-se ao mesmo tempo que o seu modo de existência”. Benjamin(OFF): A plateia do cinema é uma multidão que perde a capacidade de contemplação e se conforma em ser um colectivo de espectadores distraídos e alienados. Num mesmo lance, defrontam-se as raízes do clássico e do moderno e estremeço porque sou ávida desta dilogía em que balança a positividade e negatividade da civilização ocidental, desde o seu berço à sua forma contemporânea. O cinema representa o “inconsciente visual” da sua época, como “um caleidoscópio dotado de consciência dos “perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” e a função política do cinema, “não está em condicionar espectadores distraídos, mas em descondicionar espectadores manipulados. O grande cinema é crítico, não mobilizador”, palavras de Benjamin com ressonância criativa em Godard, que se inspira também na vontade do filósofo de conceber uma obra a partir de arquivos, citações, montagem, constelações, e que se ergue de novo no palco deste meu pequeno olimpo. Godard: o cinema foi a fábrica do século XX e do mundo contemporâneo! Vernant: A tragédia foi a fábrica do século V e do mundo grego! Do homem trágico que morre de temor de não viver na cidade. Num interlúdio trágico as figuras valsam neste céu de veludo que somos nós a pensar. Porque o pensamento está sempre a recomeçar.
Rosa Coutinho Cabral Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuO flâneur, conto1 “Ce quelque chose q’on nous permetra d’appeler modernité” Baudelaire Moro em Baudelaire e gostava de dizer que nasci lá – naquele reino que me enche de comoção – mas nasci noutro lugar que não quero revelar para já. O que urge agora é ser o habitante daquela cidade parida num acto de escrita, e largar o meu corpo no passeio bouleversant das suas palavras, autênticas pontadas de civilização no meu coração nu, sangue de uma nova espécie de humanos: o flâneur que deambula sem profissão nem destino entre boulevards, quartiers, passages subtis e mergulhar “na multidão como um imenso reservatório de electricidade”. E a multidão, como ouvi em Benjamin, “é o véu flutuante através do qual Baudelaire vê Paris”. Ando e desando na cidade e, como numa atracção melíflua, vou sempre parar a Les fleurs du mal – bairro de Baudelaire onde me tenho embebedado, drogado e feito amor com a multidão, desposando-a em cada visita. A cidade é o espaço em que me quero mover para extrair a matéria prima que me interessa: o eterno do transitório na grande fábrica de choques que rege a cidade moderna na “realização do antigo sonho do labirinto” que o flâneur persegue, segundo também encontrei em Benjamin. Benjamin é também uma cidade que visito com frequência, guiada pela minha carta-do-mundo. Nas últimas décadas foram escavadas importantes ruínas cartográficas, lugares de baldaquinos, cartografias e Globos Terrestres na cidade de Sloterdijk – topos deslumbrante mas muito inquieto! Bem sei que parece impossível, mas nem sempre as cidades mantêm as mesmas coordenadas. À frente destes olhos que o tempo há-de guardar, o mapa entra em mutação, como uma aranha desandasse a sua teia, e leva a cidade de Sloterdijk para perto de Marx, cidade incontornavelmente moderna. Mas o território representado no mapa não pára de se transformar e arrepia-se que nem uma serpente, insinuando-se nas cercanias de Kant, zona montanhosa e tradicional. E, não fica por aí, pois já a vi saltar para a frente da sombria cidade de Foucault ou mudar-se provisoriamente para a Ásia… mas isso fica para um conto a propósito de cidades-móveis que terei todo o gosto de vos falar quando chegarmos a Borges, a cidade de todos os Alephs, esferas mágicas, labirintos, bibliotecas encantadas, infinitudes que se concentram num só ponto. Tenho uma absoluta consciência que a minha carta de orientação pode ser uma constelação: aquilo que pertence ao tempo, aquilo que se move, aquilo que está mas que não vemos sempre, aquilo que a luz obscura nos mostra e que podemos ligar a nosso bel prazer, dando nascimento às rotas que nos constituem no caminho. E sigo pela minha viagem. Agora o que interessa é a minha visita a Baudelaire, uma cidade “crispé comme un extravagante”, “éprise du plaisir jusqu’ à l’atrocité”, “beugle”, e “hurle”. Senti-me como “un poète sinistre, ennemi des familles, favori de l’enfer” na maldição poética de Baudelaire. Finalmente instalei-me no Hotel dos Mortos, entre românticos e modernos. Como no Homem da Multidão de Edgar Alan Poe, eu ofereço-me como narradora desta aventura. Neste conto anormal das teorias do céu, o narrador é uma versão longínqua do flâneur, natural de Baudelaire. Neste conto sigo o olhar do flâneur que captura a paisagem num estado de distracção, ou melhor, “embriaguez anamnésica”, vagueando no presente à procura de “aventuras horríveis, raras, através das capitais”, glorificando a vagabundagem. Afinal ando à nora, entre informações disfuncionais. A minha rede de informações em Baudelaire leva-me a tantas outras cidades enterradas dentro dela, que fico tonta. A cidade subterrânea, escapista, as sensações multiplicadas com excesso e intensidade nos bairros de Mon coeur mis à nu, do Pintor da Vida Moderna, nos Tableaux Parisiens, inquietam-me. Como qualquer criminoso, percorri o submundo da técnica moderna das fábricas, dos filmes, e aspirei a dissolução da experiência certa que ser consciente do meu próprio tempo é fundamental. Certa que quase “toda a nossa originalidade vem da marca que o tempo imprime nas nossas sensações.” Posso gritar Eu sou o Outro! O Outro sou eu!! Como um poeta da revolução que abre trincheiras e caminhos secretos para as cidades de Rimbaud e Pessoa. Que sarilho – sinto-me como un Bateau Ivre, um soldado em fuga com uma malinha pequenina e castanha de couro da Suécia, onde guardo dois preciosos materiais: a aura e a experiência, por isso sou o narrador deste conto sobre cidades que nasceram no grande continente da Poesia rodeados do mar da literatura. Voo para o Oriente. Aterro em Pessanha porque tenho esta incrível faculdade de conhecer as senhas de passagem entre cidades, como se fossem bilhetes de ida-e-volta para lugar nenhum. Apenas a viagem me alicia. Pessanha é uma cidade fin de siècle, acertada com o zeitgeist do seu tempo e, coisa rara, com a inteligenzia europeia. Nela reverberam outras cidades, a ocidente do oriente, neste caso, como Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine… Movi-me como um flâneur entre uma multidão de palavras moventes, álgidas, imagens fugidias, voláteis, instantâneas, fantasmagóricas. Exalo o ópio, o absinto talvez, mas sobretudo aquele bairro de tempo que se chama Clepsidra. Detive-me lá como se eu, a narradora, encarnasse um destino adivinhado a pairar sobre Macau. arando em um montão de estrelas a topografia poética das palavras daquela cidade-móvel que se exilou a oriente do oriente. Nas suas ruas e tabernas embebedo-me com lágrimas e fragmentos de palavras ouvidas na cidade e misturando-as no meu choro: Ai meu coração volta para trás, nas róseas unhinhas, dentinhos, conchas e pedrinhas de um mar em sofrimento, derramado dos olhos mortos dos soldados e guardado no pranto do mundo! “Foi no entanto que choramos a dor de cada um… E o vinho em que choraste era comum: Tivemos que beber no mesmo pranto.” Camilo Pessanha