António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hPerfumar a glande [dropcap]E[/dropcap]spanta nos diários de 1906 de Fernando Pessoa a sua confessada decisão de ler dois livros por dia, um de filosofia e outro de literatura, de preferência poesia. E esse ritmo só foi baixando porque a partir de 1913 se imiscui a decisão de aprofundar uma voz poética, ainda por cima em arquipélago e com uma clara propensão para em suaves declinações ensaísticas refinar uma espécie de mathesis universalis. Ou seja, Pessoa desatou a escrever ele mesmo um livro por semana. Exagero e caricaturo, mas releve-se a sua enorme capacidade de trabalho. Mas não é único, apesar de nos ser difícil acreditar (e, em Portugal, no século anterior basta pensar em Camilo). Depois de um delicioso livro de entrevistas e de um muito parcial mas cativante Diccionario De Literatura, pego numa biografia sobre o espanhol Francisco Umbral (1932-2007), outro omnívaro que escreveu cento e tal livros e muitos milhares de artigos e crónicas (só no El Mundo manteve uma crónica diária durante 40 anos). E conta Anna Caballé, a biógrafa-não-autorizada que fez em «Francisco Umbral/ El frio de una vida» o livro definitivo sobre o escritor de Diario de un escritor burguês: «Consideremos qualquer semana de sua vida. Qualquer semana de 1977, por exemplo, um de seus anos mais fecundos. Encontramos Umbral publicando um artigo diário (secção “Diario de un snob”) no El País e outro artigo, também de jornal, para a agência Colpisa, que o distribuia entre os jornais associados. Tem um artigo semanal na Interviú (algumas “Horteras Cartas” em que ensaia várias fórmulas coloquiais) e outro, mais exigente, na Destino, semanal. A essas colaborações regulares deve ser adicionado um artigo mensal com conteúdo erótico para a revista Siesta e uma história erótica bimestral que aparece na mesma publicação. Juntem-se a estas outras colaborações que ele espontaneamente concede em Diario 16, em Triunfo, em Hermano Lobo. Não levo em consideração os textos aleatórios que surgiram no decorrer da sua vida profissional, mas chamo à lista os livros que publicou naquele ano: La prosa y otra cosa, Diccionario para pobres, La noche que llegué al Café Gijón, Las jais, Teoría de Lola y otros cuentos e Tratado de perversiones. Seis livros – quatro deles de criação. Ou seja, um livro a cada dois meses. E não se pode dizer que seja fruto de acaso editorial, já que em 1976 publicou onze livros, quase um por mês. Com razão, o hispânico Jean-Pierre Castellani, baseando-se apenas na intensidade de suas colaborações jornalísticas, considera-o um fenómeno único na Espanha e “talvez na imprensa europeia contemporânea”». O que assombra, com flutuações naturais, é a qualidade média de cada livro, invejável. Cada pico em Umbral corresponderia ao melhor do dos seus colegas escritores, só que Umbral tem uma dúzia de picos. De entre os cinco que li, talvez escolhesse Mortal e Rosa (traduzido, e bem, em português por Carlos Vaz Marques) o livro que escreveu depois da morte do filho, de sete anos, com leucemia, ou El hijo de Greta Garbo. Noutra ocasião farei uma descida à “morfologia do estilo” de Umbral que foi um defensor e um dos mais bem sucedidos cultores do “romance lírico”. Aqui fica um parágrafo, breve, de Mortal e Rosa: «Outubro. Aperfeiçoa-se a rotundidade do mundo. As árvores são violinos cuja música é o azul do céu. O bosque brinca com o meu filho como um tigre verde com um pintassilgo. Somos o âmago de uma lentíssima maçã caindo silenciosamente no tempo». Sirva agora esta nota só para meter alguma humildade no toutiço de alguns jovens escritores que conheço, tão vaidosos como ignorantes, tão convencidos como improdutivos. Ontem fiz o download do livro póstumo que reuniu toda a sua poesia, um livro de 200 páginas. Não é o seu melhor mas tem coisas que me divertiram, como o ciclo de poemas em prosa erótica que dedicou à Letícia/Lutecia. Vê-se que lhe era fácil e como isso lhe menorizava os poemas, nem resistindo, por vezes, ao mau gosto; por outro lado, são divertidíssimos e a espontaneidade do seu jacto denota que aos setenta (morreu com setenta e cinco, suponho que gasto) mantinha ainda um ímpeto juvenil. Aqui traduzo um poema desse ciclo: EL PERFUME «Há sexos de mulheres que perfumam a glande durante uma semana. Há mulheres que têm na geografia da vulva, nas gargantas da vagina, na caverna das secreções, uma infinidade de jardins subaquáticos, uma pluralidade de peixes que antes foram flores e sonham em se cristalizar, silenciosamente, no sal. Há sexos que deixam um perfume a mancebia babilónica e a armazém portuário, e do mesmo modo que o poeta passou anos sem lavar a testa, pois ali fora beijado por outro poeta, pode-se passar dias sem lavar a glande para que não perca, no freio do prepúcio, a sua aura de mulheres e flores, o seu halo de mar e porto, que é como uma coroa olorosa, essa fragrância que hesita em adoptar uma forma única mas se vai assemelhando ao desenho balístico da glande. A rigor, havia que descer-se à rua com o erecto membro ao léu, circuncidado como o azul no céu, ou uma proa, ou a pequena e vermelha agressão perfumada que distribui fitas aromáticas pela vizinhança, como quando passa o peixeiro. Disse que era preferível não lavar-se, nesses casos, mas a verdade é que há também a mulher indelével, a que perfuma e perfuma, e ao cabo de numerosas e meticulosas lavagens, depois de repetidas esfregas e enxaguamentos, a coisa continua a cheirar ao mesmo, com aquela fidelidade dos cheiros, que é a única fidelidade no amor. Não há maneira.”
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hEncruzilhadas [dropcap]D[/dropcap]epois dos Mestres Cantores eis os Mestres Decapitadores: é uma fanfarra enleada em bosta de cão, na farsa deste século que tropeça nos próprios pés. O pai de uma aluna e um militante islamita radical emitiram uma “fatwa” contra Samuel Paty, o professor decapitado na sexta-feira na região de Paris. É um ver se te avias de fátuas e peregrinas arrogâncias, depois dos 15 segundos de Fama do Andy Warhol temos os 15 segundos de Empolamento do Poder Divino. Dizem os testemunhos, Samuel tratou com deferência os seus alunos islâmicos e antes de mostrar as caricaturas de Maomé nas aulas explicou-lhes porque teria de as mostrar aos outros colegas, não os desrespeitou nem o seu gesto tinha um carácter denegridor. Em 2006, por ingenuidade minha, na universidade em Maputo, querendo mostrar como as nossas escolhas quanto à identidade sexual que assumimos têm o seu quê de construção social, passei nas aulas o filme Crying Games/Jogo de Lágrimas, de Neil Jordan, um dos mais belos filmes que conheço sobre o amor e os conflitos que este pode gerar se toma uma feição desviante em relação à intratabilidade da educação que nos condicionou. Fui depois chamado à direcção do departamento: para um grupo de estudantes islâmicos eu havia “pecado” ao mostrar um transsexual nas aulas e ao falar desassombradamente de sexo. Chocou-me não terem sido frontais, o espírito de baixa bufaria entranhado. Foram umas semanas de tensão no relacionamento com os alunos. Chegado de outras coordenadas não imaginava que o filme chocasse jovens universitários e supus que as virtualidades do debate que o filme suscitaria seriam vantagens sobre qualquer melindre. Tive sorte, o então coordenador do curso meteu-se do meu lado e “decapitou” logo a avançada moralista; estou incerto sobre se o resultado seria o mesmo agora – e este retrocesso é uma realidade descoroçoadora. Hoje, na fronteira norte, supostamente a 3000 km de uma ilusória geografia, decapitam-se pessoas por dá aquela palha. Esta semana, a minha amiga Aliete Matias, postou no fb esta fotografia de Jessica Antola, de uma Mãe Mursi (uma etnia da Etiópia) armada, e comentou “não encontro palavras para esta foto”. Também não encontro, mas aquela arma é para defender o filho nos portais do inferno com que aquela mulher se depara regularmente. Agora que um filho da mãe de um burguês – a ouvir no leitor de cds de um Peugeot da última gama o mais recente disco da Fatoumata Diawara, baixado do Youtube – enquanto aguarda nos semáforos, decida lançar uma fatwa sobre um professor (tudo o indica) que não quis provocar, de modos delicados, num país que não reconhece a alegação da apostasia, é demasiado cínico e macabro. “Um dos nossos compatriotas foi morto hoje porque ensinou a liberdade para acreditar e não acreditar”, acrescentou Emmanuel Macron. Como deve proceder a democracia diante de quem enfia o garfo no coração dos seus direitos mais profundos e o revolve? Como reagir face aos que usam a liberdade para negar a dos outros e não sabem viver senão em suposto apostolado? Há um aforismo do poeta Wallace Stevens que talvez aqui caiba: «A intolerância a respeito da religião dos demais é tolerância comparada com a intolerância a respeito da arte dos demais». Ou seja: talvez não seja só a nossa liberdade que está em jogo como também a nossa arte, vista à luz dos radicais islâmicos. Lembremo-nos das estátuas dos Budas em Gandara. Se o apelo da preservação da liberdade não for suficiente como reacção civilizacional que ao menos o da defesa da arte seja uma razão suficiente para a urgência de pensar e articular uma resposta para estes problemas, sem esquecer que é no vazio do pensamento que se localiza o ninho da víbora. Sem isso, só se seguirá aquilo que Houellebecq previu: a obediência. E já que chamei o poeta à liça aproveito para apresentar uma primeira selecção dos 289 adágios ou provérbios que o Wallace Stevens deixou e a que os organizadores, num livrinho póstumo, deram o nome de Adagia. Esta é uma primeira selecção de entre os cento e cinco primeiros. A tradução é minha: Cada era é uma casinha no pombal. Dos vermes, faz o poeta trajes de seda. Os poetas de mérito são tão aborrecidos como a gente de mérito. O pensamento é uma infecção. No caso de certos pensamentos converte-se em epidemia. Parece o poeta outorgar a sua identidade ao leitor. É mais fácil reconhecer isto quando se ouve música. Refiro-me ao seguinte: à transferência. A imaginação deseja que a consintam. A coisas vistas são as coisas como são vistas. Tem em conta: I. Que o mundo inteiro é matéria para a poesia; II. Que não existe nenhuma matéria especificamente poética. O poeta é o intermediário entre as pessoas e o mundo em que vivem, e também entre as pessoas entre si; mas não entre a gente e algum outro mundo. A poesia não é o mesmo que a imaginação tomada isoladamente. As coisas são em virtude de interrelações ou de interacções. A poesia deve ser algo mais que uma concepção da mente. Deve ser uma revelação da natureza. As concepções são artificiais. As percepções são essenciais. Ler um poema deveria ser uma experiência, como quando se experimenta um acto. A morte de um deus é a morte de todos. Em presença da facticidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação. Tudo tende a tornar-se real; o todo move-se na direcção da realidade. (à suivre)
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hEstamos aqui [dropcap]E[/dropcap]ntretido a ler os discursos dos portas no recebimento do Nobel, leio que Saint-John Perse dizia: «quer se trate do científico ou do poeta, o que aqui se honra é o pensamento desinteressado». É verdade e mentira. Os homens são capazes de ser desinteressados, é o que faz a grandeza do afecto ou a da arte, nalguns. A palavra, pelo contrário é muitíssimo interessada. Mas não somos nós quem as usamos? Nós somos os seus servos, como explicava caridosamente o Coelho à Alice, no País das Maravilhas: «o que interessa é perceber quem manda naquilo que dizemos». E há palavras que nos conduzem para a beleza e outras para o mal; palavras que nos despem, contra outras que nos dissimulam; as que nos serenam e as que contagiam com a ira. Para os antigos o Vento soprava onde o Espírito queria e só Deus subsumiria as suas intenções ajustando-o ao sulco do seu próprio Verbo. Certo é, demasiadas vezes não medimos o efeito das nossas palavras e elas ferem; se acaso nutrem igualmente a alegria, o mais das vezes o nosso rasto é negativo. Será por isso que os homens ainda são reféns da imagem – no fundo, não confiam nas palavras!? O Trump sabe tudo sobre imagens quando se propõe sair do hospital vestido de Super-Homem. Impediram-no os assessores mas a intuição dele estava certa: seria um golpe de marketing tão intratável como genial e mostraria que ele, como Cristo, veio para dividir, para trazer a espada se o terreno é de combate, em vez de oferecer a amorfa normalidade dos homens comuns que estão condenados ao esquecimento. Trump julga-se um homem providencial – nisto aproxima-se perigosamente da idolatria e resvala para a loucura. A desgraça é que tudo nele está calibrado para o mal, que é o que escorre quando a palavra ficou com o freio preso nos dentes e corre corre tomando a dianteira sobre o coração. Se perder as eleições, Trump está de tal modo desvairado que tenho a certeza de que vai fundar uma religião. O espantoso é que vai ter aderentes. Recordava o polaco Czeslaw Milosz, no seu discurso: «o exílio do poeta é hoje o exercício elementar de uma descoberta que nos revela como os detentores do poder têm as ferramentas necessárias para controlar a linguagem, e não só mediante a censura, mas sim especialmente alterando o significado das palavras. Produz-se desta maneira um fenómeno singular, que leva a que a linguagem de uma comunidade cativa adquira certos “costumes” duradouros, pelos quais podem zonas inteiras da realidade deixar de existir simplesmente por carecerem de nome. Haveria que indagar se existem vínculos secretos, entre uma teorias literárias como a da Écriture (da linguagem que se alimenta a si mesmo) e a do desenvolvimento do estado rotalitário (…) é indiscutível que não há razão fundamental para que o Estado não tolere uma actividade que consiste em criar poesia e prosa experimentais, como sistemas de referência autónomos, emoldurados nas suas próprias fronteiras. Pois só se suposermos que o poeta é um ser infatigável no seu combate para libertar-se de estilos emprestados, na sua busca da realidade, é que a sua existência nos parecerá perigosa. Numa habitação fechada e onde um grupo de pessoas instaura a conspiração do silêncio uma palavra verdadeira soa como um disparo de pistola.» Terrível a suspeita que levanta o polaco sobre a ingenuidade política de certas manifestações de foro estético ao mesmo tempo que advoga uma questão essencial: o poema não é um efeito de um fraseado “mais poético” mas um tecido verbal que produz “mais real”. E é engraçado que seja Saint-John Perse, no seu fantástico discurso, a conjugar poema e realidade quando escreve: «o real no poema parece falar-se a si mesmo». Nem há outra meta para o poeta: desalienar. Confesso, a minha imersão na sociedade moçambicana fez-me compreender de um modo inapelável o que são sociedades cativas, nas quais a semântica se vira do avesso porque os significados cabriolam em contorcionismos impensáveis; já fiz artigos em que mostrava que mesmo discursos sobre ou apelando à paz, nos jornais, estão eivados de uma retórica de guerra. Distorções que com uma descomunal fortuna se disseminam pela comunicação ou as redes sociais, às quais se associa uma crescente negação da memória. Para entender como a corrupção da realidade começa pela distorção da linguagem, convém ler o ensaio de Milosz, A Mente Cativa, que já existe em português, ou o do iraniano Daryus Shayegan, Le Regard Mutilé/ Pays tradicionnels face à la modernité. Entretanto, Armand Robin, o anarquista, poeta e tradutor, já escrevera isto em 1947: «A Fé será suprimida/ em nome da Luz, /então a luz será suprimida.//A Alma será suprimida/ em nome da Razão, / depois será a razão suprimida.//A Caridade será suprimida/ em nome da Justiça/ após o que se banirá a justiça.// O Amor será suprimido/ em nome da Irmandade,/ será aí suprimida a irmandade.// O espírito da Verdade/ será suprimido em nome da Mente Crítica,/ então a mente crítica conhecerá a supressão.// Excluiremos o significado da Palavra/ em nome do significado das palavras/ e, em seguida, baniremos o significado das palavras.//Vamos remover o Sublime/ em nome da Arte,/ para de imediato abolir a arte./ Seguir-se-ão os Escritos Livres, excluídos/ em nome dos Comentários/ e, sem tardar, excluiremos os comentários.// Vamos remover os Santos/ em nome do Génio, / para que, que no fundo, o seja génio removido.// Suprimiremos o Profeta/ em nome do Poeta,// então suprimiremos o poeta.// Arrasaremos os Homens com Brilho/ Em nome dos Iluminados/ então suprimiremos os iluminados.// Doravante, será o Espírito suprimido/ em nome da Matéria,/ sendo a matéria então suprimida.// Em nome de nada será o homem suprimido;/ o seu nome: ei-lo apagado;/ não haverá mais nome: AQUI ESTAMOS.» Tremendo.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hDuelo ao Sol: Barcelona 5 – Real Madrid 1 [dropcap]F[/dropcap]ixei uma antologia que sairá em 2021. Há sempre textos de que se têm pena que não estejam no lote dos salvados, como estes quatro: NA VERDADE NÃO PODE HAVER UM ARMISTÍCIO Na verdade, que armistício entre o que fui e o que sou? Fui pedra, fui fisga, fui uma lâmina intrometida entre o selo e a carta, fui aquele relógio que aparvalhou o Stockhausen, capaz até de florir. E fui quem que se esqueceu de retocar as cabrinhas de Giotto meio delidas, porque me entretive com a filha do curandeiro; e fui, meu Deus, o ignorante que não compreendeu que a poesia é o que na ciência se chama “um atractor estranho” – uma orelha para onde converjem cerejas. Nada disso me amnistia: nunca me alistei na imensa vaga dos que anseiam pertencer, fundir-se, nem quis amarrar-me ao amor como se amarra ao cachorro um jardim que ele arrasta em corrida. Todavia que armistício, se me converti à clorofila? Se derrotar os hábitos é o mais difícil (cresça a criança entre ervilhas e julgar-se-á um gafanhoto) tinha o dever de lembrar: nenhum medíocre é inocente! Vivo num país onde o riso é privado, embora o escândalo seja universal: não sairemos vivos dos incorporais com que engomamos os colarinhos do tempo. Quem nos arranca à automoribundia do alheamento? Como pude esquecer-me que só respiramos no singular, que os pais de Sócrates se chamavam Sofronisco e Sefarete, e que, isso não lhe bastando, arranjou uma mulher com nome de palha-de-aço: Xantipa, onde depositou três ovos: Lampoclés, Sofronisco (um júnior, quem diria?) e Menexeno (a ferrugem que dá às algas). Depois deste descalabro (bem sei que em grego), aonde poderia o pensamento conduzi-lo senão ao cárcere? Ser campeão de pingue-pongue aos oitenta, poderia ser um desígnio, declarado, apesar de ser sabido: os hamsters são reféns do destino. Mas o que fica é isto: não fui suficiente incisivo a lembrar que nenhum medíocre é inocente! MESSI E RONALDO: DUELO AO SOL Pende-lhe a franja sobre uns olhos de ratinho almiscarado – a fraca figura. O outro é só peitaça, o cabelo em crista, é esplêndido – em brilho e manicura. Mas no combate é Aquiles o primeiro e o segundo Heitor. A assistência a Di Maria foi um primor de engenharia, o segundo foi já assinatura. É uma pepita Cristiano, na orbe dos terrenos, mas Messi é selenita e precipita a sua alma na rota dos Deuses. Há que ter calma, não humilhar mais o madeirense, ainda um astro na sua ilha mesmo que não mais que um amanuense no universo. A glória é só uma, para quê insistir na vilania de ver Cristiano depenado pela melancolia? Abriram-se-lhe as pernas de espanto ou susto? O treinador é que o topou e por isso o tirou, estava o herói embargado – assim ao menos caiu calçado. Sempre que Cristiano encontra o argentino confunde os hinos e diante d’el gran sedutor a ialma lhe falece como o sangue a Heitor: Olé, olá, olé, olarilolé! OS PONTOS NEGROS QUE NOS MAPAS INDICAM OS CEMITÉRIOS Subia as escadas a matutar na urgência de despachar as provas do livro da Hilda Hilst, quando ouvi salmodiar. Tinha quatro anos. Uma menina. Bonita e airosa como a mãe. Morava no 12º andar e encontrava-as na escada, borboletas arquejantes, lamentando sorridentes a eterna avaria do elevador. A menina era propensa às laringites e decidiram operá-la. Jaz agora na hirta rigidez da tumba. A operação degenerou em espíritomiríade e tornou-lhe avaros os dedos, prometidos a búzios e pianos. A mãe lembra agora uma formiga preta consumida por dois canhões nos olhos. Negligência médica. Foi o mês passado. O de hoje tinha treze anos. Era tão gordo que na sua alma ouviam-se os batuques que afastam os hipopótamos. Mas era um bom menino, amigo dos seus amigos, e estivesse o céu crivado de estrelas ou de chuva não faltava aos seus deveres de guarda-redes. Na véspera de começar a gabar-se “gosto de estar entre miúdas nices” (desconheço se tinha o afinco para isso), deslocou um pé. Coisa mais grave quando se não é mais leve que um cedro libanês. Vi-o três vezes a arrastar-se com o gesso para descer ou subir ao quarto andar, a mãe no comando da operação de desmantelamento & resgate, e desejei-lhe as melhoras. O gesso foi mal colocado. Provocou uma ferida que gangrenou. Depois o sangue tomou antenas invisíveis e a locusta decapitou-o. Há quatro dias que se sucedem os cerimoniais, e até os degraus da escada se consternam sem saber que fazer sem todo aquele pólen que o miúdo carregava. Deus, nestas paragens, tem mais mortos que dentes: eis o desdentado padrão, em fundo. AS COISAS QUE IMPORTAM As televisões anunciam: revólver de Al Capone leiloado em Londres. E eu em Maputo. Serei sempre como a figueira, molenga, uma alma que é uma espelunca-de-aluger e incapaz de frutificar a tempo de ter as raízes pisadas pelas olorosas sandalinhas de Cristo. Já perdi por um fio a guilhotina de Robespierre, um tufo da melena de Hitler, uma sela marchetada a marfim de Bush, o texano, um selo exortativo da Grã Perenidade de Mugabe e dois botões de punho de Kadhaffi. Só nos últimos 6 meses. É isto, sem nada para deixar aos filhos. Talvez um 123 para porem as farófias no ponto, mas, é lá o mesmo! A minha vida deslaça sem que eu adira, ainda que simbolicamente, a um crime de monta, uma crueldade com estardalhaço que vergue de medo a própria sombra. Que tristeza ó minha mãe, que me erodiste a ruindade: eis-me um podengo do bem! Uma revoluçãozinha, onde eu pudesse fuzilar os refractários e alguns poetas mais burgueses! Chamava-lhes um figo. Hum! Não há aí quem queira leiloar esta minha incapacidade para estar onde as coisas que importam acontecem? Eu vendo, por muito dinheiro!
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hCadernos de Bernfried Järvi 20/08/20 [dropcap]“A[/dropcap]prende como aprendem as folhas a cair/ Fora de perigo, por amor”, escreveu o poeta inglês James Fenton, e disse tudo sobre o que um Estado, em últimas instâncias, deve proporcionar aos seus cidadãos: condições para aceitar a morte, por amor. Nos antípodas do que aconteceu com aquela mulher em Cabo Delgado, que foi interpelada por soldados e teve o destino lancetado por um ímpeto de crueldade. É irrelevante saber se os soldados eram do exército regular ou se eram insurgentes camuflados para denegrir os supostos legítimos. Foi um resultado do mesmo clima que fez brotar insurgentes nos ramos de cada cajueiro e transformou o estupro na única regra moral. Profusos, multiplicam-se e pendem como frutos, depois de se sentirem maltratados, esquecidos, tratados como gado, escarnecidos das suas expectativas e do sonho de serem engenheiros de pontes ou informáticos de ponta. Foram abandonados nas mãos dos radicais islâmicos e de outros recrutadores da rebelião. Quando não se dá educação, é isto que acontece. Quando não se dá habitação é isto que acontece. Quando não se dá oportunidades iguais, é isto que acontece. Quando se abandona tudo aos encarniçamentos tribais, é isto que acontece. Quando se pensa mais na riqueza das minas do que na saúde das pessoas, é isto que acontece. Quando se pensa na política como um modo de extorsão e não como um Meio para o desenvolvimento sustentável… ei-los que pendem estranhos frutos, tão intragáveis como os da canção de Billie Holliday. 21/08/20 Uma boa malha é este pequeno (grande) livro que agora comecei a ler, uma das minhas compras felizes em Lisboa, Cadernos de Bernfried Järvi, do Rui Manuel Amaral (Livraria Snob). Ainda só li um terço do livro mas é uma delícia. A epígrafe do livro talvez lhe dê uma chave de leitura. É uma frase de Erik Satie: “Chamo-me Bernfried Järvi como toda a gente” (sublinhado meu) e no fundo Rui Manuel Amaral procede a uma imensa paráfrase do enigma que se coloca de imediato: quem é afinal este anónimo Silva? Numa pulsão diarística, o livro expõe uma sensibilidade que parece nascida de uma liga que fundisse Bernardo Soares, Kafka (o dos Diários), os delírios de Arlt, e os cafés de Cela (o de A Colmeia), com uma especiosa precisão na linguagem e recursos imagéticos tanto mais ricos quando “acontecem” de um modo imanente, “como quem não quer a coisa”. Aliás, de x em x páginas a narrativa é interrompida por uma irónica “manobra de abrandamento das espectativas” que introduz blocos informativos (O que são as nuvens?/ Como se originam as nuvens?/ Qual é a causa da neve?/ Porque não damos pelo movimento de rotação da terra?/ Que efeitos produzem os eclipses nos homens, nos animas e nas plantas; etc.), os quais, à maneira de um flaubertiano dicionário de ideias feitas, nos pretendem advertir sobre a inutilidade de esperar-se demais da narrativa ou do putativo personagem que é o polinizador destes cadernos. Entretanto, degustamos (inúmeros) fragmentos como este: «Mais uma noite sem dormir. Para não enlouquecer, fecho os olhos e imagino-me a arrancar ervas daninhas num jardim. Imagino os dedos a envolver cada caule e a força exercida pela minha mão para desenterrar os filamentos vivos da terra. O mesmo gesto, uma e outra vez, toda a noite até o pálido rubor da aurora estremecer perto dos subúrbios de Aachen. O jardim é muito amplo e há uma quantidade infinita de ervas daninhas: cardos, chicória, beldroegas, trevo branco, funcho, dentes-de-leão. De quando em quando, por entre o verde exuberante das folhas, avisto a sombra indolente de um gafanhoto, um escaravelho em fuga, pequenos objectos, abundantes tesouros: pregos, cacos, vidrinhos afiados, uma chave. Mas não me deixo distrair do meu objectivo. Perto das seis da manhã, exausto, emocionado, orgulhoso, contemplo a minha obra.» (pág. 22) Vou ainda na pág. 45 mas uma coisa me é evidente: se o conseguimento de uma narrativa se afere pela sua capacidade em criar um mundo autónomo, de uma lógica de funcionamento própria, com personagens e figurantes congruentes com a sua refracção do mundo, a aposta de Rui Manuel Amaral está plenamente realizada. E acaso os meus amigos já deram conta da excelente colecção que o Rui Manuel Amaral dirige na Exclamação, a Colecção Avesso onde já sairam livros do Rubén Dario, do Charles Cros, do Alphonse Allais, do Arlt, de Félix Fénéon, ou de Alexandre Andrade, entre outros? Um percurso intelectual muito sério que merece ser acompanhado. 22/08/20 Na recta final da tradução de um longo poema de Chantal Maillard, o primeiro passo para a tradução completa do seu livro, que foi prémio nacional em Espanha, Matar Platão. Deste poema de 18 páginas divulgo o seu poderoso desenlace: «escrever/ como alguém que foge de um hospital e arrasta atrás de si/ o soro, o seu gotejar, a máscara de oxigênio e corre/ sobre agulhas envenenadas // Despertai!/ ninguém pode evitá-lo!/ é só uma questão de tempo/ contai os gritos sonhados/ no fundo da água/ Contai os gritos!// Cada qual com a sua dor a sós/ a mesma dor de todos. // – Alguém dissimula./ Sorri,/ devolvo o sorriso. Sei-o/ já no umbral obscuro./ Também ele sabe./ Mas esforça-se. Todos/ nos esforçamos./ Gritar é esforçar-se./ Gritar é rebelar-se. –// Escrever/ porque alguém se esqueceu de gritar/ e agora ficou um espaço em branco,/ que o habita// escrever porque é a forma/ mais rápida que tenho para me mover// escrever// e não fazer literatura?/ … / e o que mais dá!?// há demasiada dor/ no poço deste corpo/ para que me seja importante/ uma questão deste/ tipo. // Escrevo// para que a água envenenada/ possa beber-se.”