Dos quatro entendimentos e dos três tipos de coragem – Xunzi

Tradução Rui Cascais

Yao perguntou a Shun: “Como são as disposições inatas das pessoas?” Shun respondeu: “As disposições inatas das pessoas são verdadeiramente detestáveis! Por que razão perguntas acerca delas? Quando se tem esposa e filhos, a piedade filial para com os nossos pais diminui.

Quando os nossos apetites e desejos são satisfeitos, a nossa fidelidade para com os amigos diminui. Quando o nosso estatuto e salário sobem, a lealdade para com o nosso senhor diminui. As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas? As disposições inatas das pessoas são detestáveis. Porquê perguntares acerca delas? Só a pessoa meritória não é assim”.

Existe o entendimento do sábio, existe o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar, existe o entendimento da pessoa mesquinha e existe o entendimento da pessoa servil. Algumas pessoas, mesmo quando falam muito, demonstram a forma apropriada e conformam-se à categoria apropriada das coisas; são capazes de passar todo um dia argumentando as suas posições e, através de numerosas reviravoltas e uma miríade de mudanças as suas categorias orientadoras continuam inalteradas – esse é o entendimento do sábio.

Algumas pessoas, mesmo quando falam pouco, são directas ainda que reservadas no seu uso das palavras. Quando argumentam, conformam-se ao modelo apropriado como se fossem reguladas com exactidão pela linha de tinta do carpinteiro – esse é o entendimento da pessoa bem-criada e da pessoa exemplar.

Algumas pessoas têm um discurso descuidado e uma conduta desordeira. Na sua forma de lidarem com as coisas muito há que pode conduzir ao arrependimento – esse é o entendimento da pessoa mesquinha.

Algumas pessoas são precipitadas e imprudentes e não seguem as categorias apropriadas. Dispõem de várias competências e vasta experiência, mas não lhes dão bom uso. São rápidas na análise e de discurso refinado e fácil, mas não se preocupam com aquilo que dizem. Não se preocupam com o que é certo e com o que é errado e não separam aquilo que é direito daquilo que é torto. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros – esse é o entendimento da pessoa servil.

Da coragem

Há o mais alto tipo de coragem, há o tipo de coragem médio e há o mais baixo tipo de coragem. Há alguns para quem existe um padrão central para todo o mundo, segundo o qual ousam estabelecer-se. Os antigos reis seguiam um certo modo de fazer as coisas e aqueles ousam aplicar o seu entendimento dele. Em cima, não seguem os senhores de uma idade caótica. Em baixo, não se conformam às gentes de uma idade caótica. Não se inquietam com o empobrecimento ou dificuldades que possam advir das coisas que envolvem ren [humanidade]. Não consideram riqueza e honra que possam de advir das coisas privadas de ren. Se o mundo os reconhece, deseja partilhar as dores e alegrias do mundo. Se o mundo não os reconhece, permanecem com independência e sós entre o Céu e a Terra e nada temem. Este é o mais alto tipo de coragem.

Há alguns que praticam os rituais com reverência e cujos pensamentos são contidos. Prezam, seguem e são fiéis a isso e dão pouca atenção aos bens materiais e à riqueza. Ousam promover e elevar aqueles que são meritórios. Ousam apontar e desvalorizar aqueles que não são meritórios. Este é o tipo de coragem médio.

Há alguns que dão pouca atenção ao seu carácter, mas muita importância aos bens materiais. Encontram consolo naquilo que conduz ao desastre e depois procuram libertar-se e escapar irresponsavelmente às consequências. Não se preocupam com a verdadeira disposição do que é certo e errado. Por sua intenção, têm apenas colocar-se ao lado daqueles que desejam destroçar os outros. Esse é o tipo mais baixo de coragem.

Fanruo e Jushi são nomes de grandes arcos dos tempos antigos. Contudo, se não tivessem sido formados pelo torno do criador de arcos não se teriam feito certeiros por si próprios. A espada Cong, que foi do Duque Huan, a espada Jue, que foi do Grão-Duque, a espada Lu, que foi do Rei Wen, a espada Hu, que foi do Lorde Huang, as espadas Ganjiang e Moye, que foram de Helü, assim como as espadas Jujue e Pilü, foram todas grandes lâminas dos tempos antigos. Contudo, se ninguém as tivesse amolado nunca se teriam tornado afiadas. Se ninguém as tivesse empunhado, nada poderiam ter cortado. Hua Liu, Qi Ji, Xian Li e Lü’er foram grandes cavalos dos tempos antigos. Contudo, sem controlo de freio e rédea à frente e sem a ameaça do chicote e da vergasta atrás, para não falar da perícia de Zao Fu na sela, não conseguiriam percorrer mil léguas num só dia.

Quanto às pessoas, mesmo que tivessem uma natureza inata excelente e os seus corações fossem sábios e capazes de discernir com argúcia, ainda teriam de buscar mestres meritórios a quem servir e escolher amigos meritórios com quem fazer amizade. Obtendo-se um mestre meritório para servir, tudo o que ouviremos são as instruções de Yao, Shun, Yu e Tang.

Obtendo-se um amigo meritório, tudo o que veremos é uma conduta leal, fiável, respeitosa e deferente. E então se fará progresso diário na direcção de ren e de yi[justiça] sem sequer nos darmos conta. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Mas se vivermos ao lado de pessoas que não são boas, tudo o que ouviremos será trapaça, engano, desonestidade e fraude. Tudo o que veremos será uma conduta suja, arrogante, perversa, desviante e gananciosa. Além disso, sofreremos castigo e execução sem sequer nos apercebermos da sua iminência. Isso deve-se àquilo com o qual convivemos. Há um ditado segundo o qual “Se não conheceres o teu filho, observa os seus amigos. Se não conheceres o teu senhor, observa os seus companheiros.” Tudo depende daquilo com o qual convivemos. Tudo depende daquilo com o qual convivemos.

25 Ago 2023

A Grande Compilação – 1

Xunzi

Tradução de Rui Cascais

Se o senhor dos homens exaltar o ritual e honrar os meritórios, tornar-se-á num verdadeiro rei. Se a sua acção se basear acima de tudo na lei e se preocupar com o povo, tornar-se-á num líder hegemónico. Se a sua preocupação fundamental for com o lucro próprio e se dedicar frequentemente a enganar, então estará em perigo.

Se quisermos estar próximos de todos os quatro lados ao mesmo tempo, não há lugar melhor do que o centro absoluto. Assim, e de acordo com o ritual, o verdadeiro rei sempre habitará o centro do mundo.

Segundo o ritual, o Filho do Céu faz instalar biombos fora de portas e os senhores feudais instalam biombos dentro de portas. A razão de instalar biombos fora de portas é não querer ostentar o que está no seu exterior. A razão de instalar biombos dentro de portas é não querer ostentar o que está no seu interior.

Segundo o ritual, quando um senhor feudal chama o seu ministro, o ministro não espera que preparem a sua carruagem, mas parte a correr com a roupa em desalinho. As Odes dizem:

Lá vai ele desalinhado

Pois o chama o homem do Duque.

Segundo o ritual, quando o Filho do Céu chama um senhor feudal, este vai numa carruagem puxada por homens. As Odes dizem:

Vou agora na minha carruagem,

Lá até aos prados;

Um emissário do Filho do Céu

Vem a dizer-me “Anda cá”.

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa uma veste com o bordado de uma montanha e um alto chapéu cerimonial. Um senhor feudal veste roupas negras e põe chapéu. Um grande oficial enverga vestes inferiores e um alto chapéu cerimonial. Um oficial regular enverga vestes de pele e um chapéu de couro.

Segundo o ritual, o Filho do Céu tem por acessório um ting, um senhor feudal tem por acessório um shue um grande oficial tem por acessório um hu.2

Segundo o ritual, o Filho do Céu usa um arco esculpido, um senhor feudal usa um arco vermelho e um grande oficial usa um arco negro.

Quando os senhores feudais se reúnem uns com os outros, devem usar os seus conselheiros como intermediários, devem fazer-se acompanhar por oficiais treinados no curso da sua viagem, devem empregar pessoas de ren para ficarem para trás a zelar pelas coisas.

Quando perguntamos por alguém, devemos usar um gui. Ao fazer perguntas a uma pessoa bem-criada, devemos usar um bi. Ao convocar alguém, devemos usar um yuan. Ao despedir alguém embora, devemos usar um huan.3

Quanto ao senhor dos homens, quando nele está estabelecido um coração de ren, o entendimento é seu servo e o ritual o completa. Assim, um verdadeiro rei sempre põe ren em primeiro lugar, pois a ordem Celestial de implementação assim o dita.

O Registo de Rituais de Averiguação diz, “Quando o dinheiro gasto é copioso, isso prejudica a virtude. Quando os recursos utilizados são opulentos, isso perturba o ritual”. Esta história de ritual, história de ritual – será somente uma história de jades e sedas? As Odes dizem:

Estas coisas são tão encantadoras

Basta só que se adequem apropriadamente.

Se não for atempada nem tiver cabimento, se não for respeitosa nem de boa forma, se não for animada nem alegre, então, mesmo que seja encantadora não se trata de propriedade ritual.

Quem atravessa as águas marca os lugares mais fundos, de modo a que ninguém caia neles. Aqueles que ordenam as pessoas marcam aquilo que é caótico, de modo a que ninguém caia em erro. Os rituais são os seus marcadores. Os antigos reis usavam rituais para marcar aquilo que lançaria o mundo inteiro no caos. Se descartarmos os rituais estaremos a jogar fora os marcadores. E assim, as pessoas ficam perdidas e confusas e encontram calamidades e sarilhos. É por isso que os castigos e penas se tornam profusos.

Shun disse, “A verdade é que sigo os meus desejos e, ainda assim, obtenho ordem”. Assim, génese dos rituais é para benefício dos meritórios até ao povo comum, não para benefício do sábio perfeito. Contudo, eles também são meios de nos tornarmos sábios. Se não os estudarmos, não o conseguiremos. Yao estudou com Jun Chou, Shun estudou com Wucheng Zhao e Yu estudou com Wangguo.

Depois dos cinquenta, não devemos realizar o ritual do luto por inteiro.4 Depois dos setenta, devemos manter só o uso de roupas de luto.

No ritual de “boas-vindas pessoais”, o pai fica de pé, voltado para sul. O filho ajoelha-se, voltado para norte. O pai realiza uma libação e ordena-lhe: “Vai acolher a tua companheira e realizar as tarefas ancestrais. Guia-a com reverência para que sirva respeitosamente como sucessora da tua mãe. Possamos, assim, ter constância”. O filho replica, “Sim. Temo apenas não ter capacidade para isto. Como ousaria esquecer as tuas ordens?”

Quanto à “conduta apropriada”, esta significa a realização de rituais. Quanto ao ritual, é através dele que quem é nobre é tratado com respeito. Através dele, os idosos são tratados filialmente. Através dele, os seniores são tratados com deferência. Através dele, os jovens são tratados com bondade. Através dele, os inferiores são tratados com generosidade.

Oferecer presentes aos membros da nossa casa é como empregar comendas e recompensas para com o estado e seus clãs. Mostrar ira aos nossos servos e concubinas é como aplicar castigos e penas à miríade do povo comum.

A pessoa exemplar trata os seus filhos com amor sem se deixar enfeitiçar por eles; dá-lhes tarefas, mas sem os rebaixar e guia-os no Caminho sem os forçar.

Na sua raiz, o ritual destina-se a tornar consensuais os corações das pessoas. Por isso, aquilo que não está prescrito no Clássico dos Rituais, mas serve para tornar consensuais os corações, também contém propriedade ritual.

As principais e mais gerais tarefas do ritual servem para ornamentar a felicidade quando se destinam aos vivos, para ornamentar o desgosto na despedida dos mortos e para ornamentar o poder que inspira temor quando envolvidos em assuntos militares.

Tratar os familiares como é apropriado para eles, tratar velhos amigos como é apropriado para eles, tratar os servos como é apropriado para eles, tratar os trabalhadores como é apropriado para eles – estas são as gradações de ren.

Tratar os nobres de modo apropriado para eles, tratar os veneráveis de modo apropriado para eles, tratar os meritórios de modo apropriado para eles, tratar os idosos de modo apropriado para eles, tratar quem tem senioridade de modo apropriado para eles – estas são as classes de yi.

Chegar à regulação apropriada na execução destas coisas é a ordenação que reside no ritual.

Ren é cuidado e por isso produz afecto. Yi é boa ordem e por isso produz a conduta apropriada. O ritual é a regulação apropriada e por isso produz o completar [destas coisas].

Para ren, há uma vizinhança apropriada. Para yi, há um portal apropriado. Se, ao tentarmos ser ren, habitarmos numa vizinhança que não lhe é apropriada, então não somos ren. Se, ao tentarmos ser yi, usarmos o portal que não lhe é apropriado, então não seremos yi.

Oferecer bondade sem boa ordem não constitui ren. Seguir a boa ordem sem a regulação apropriada não constitui yi. Seguir a regulação apropriada sem harmonia não constitui propriedade ritual. Harmonia sem expressão externa não constitui musicalidade. Por isso digo: no que respeita a ren, yi, propriedade ritual e musicalidade, o seu completar é unificado.

A pessoa exemplar habita em ren através de yi e só assim é ren. Realiza yi através do ritual e só então é yi. Na implementação do ritual, regressa às raízes e completa os ramos, e só então é ritual. Quando a mestria dos três é total, só então é o Caminho.

Os bens e dinheiros [oferecidos para um funeral] são chamados “donativos”. As carruagens e cavalos são chamados “contribuições”. As roupas e vestes são chamadas “presentes”. A parafernália é chamada “prendas”. Os jades e conchas são chamados “oferendas”. Os donativos e contribuições são usadas para assistir aos vivos. Os presentes e prendas são usados na despedida dos mortos. Se estes não chegarem enquanto o corpo ainda está em câmara ardente, ou se as nossas condolências aos vivos não chegarem enquanto ainda estão de luto e tristes, isso não é considerado propriedade ritual. Assim, avançar cinquenta léguas ao viajar para participar num evento auspicioso, avançar cem léguas num dia ao nos apressarmos para participar num funeral, e assegurarmo-nos de que as nossas contribuições e prendas chegam a tempo das cerimónias – estes são os pontos principais da propriedade ritual.

O ritual é aquilo que puxa o governo. Se não aplicarmos o ritual na actividade de governar, o governo não avançará.

Dada a grande variedade de tópicos aqui coberta, este capítulo poderá ter sido compilado pelos estudantes de Xunzi. Alguns segmentos são praticamente idênticos em capítulos anteriores.

Ting 挺, shu e hù 笏são implementos rituais feitos de diversos materiais e usados como insígnias.

Gui, bi, yuan, jue e huan eram peças de jade de diversos formatos mostradas ou oferecidas à pessoa a quem estes actos eram dirigidos.

O comentador Yang Liang, da dinastia Tang, explica que as partes do ritual a evitar são as que envolvem chorar vigorosamente e saltitar.

31 Jul 2023

Analectos – as conversas de Confúcio

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO II

為政 (Weizheng)

GOVERNAR

2.1. O Mestre disse: “Governar um país com virtude é ser como a Estrela Polar: permanecer no seu lugar, enquanto as outras estrelas volteiam em seu redor.”19

2.2. O Mestre disse: “Os trezentos poemas podem ser resumidos numa fase: ‘Pensar a direito’.”20

2.3. O Mestre disse: “Se o povo for guiado por regulamentos e mantido na ordem através de castigos, para se subtrair à severidade das leis o povo perderá toda a vergonha; mas se for guiado pela virtude e disciplinado pelos ritos, desenvolverá um sentido de honra e comportar-se-á de forma correcta.21

2.4. O Mestre disse: “Aos quinze anos, o meu coração só desejava o estudo. Aos trinta anos, estabeleci-me. Aos quarenta anos, não tinha dúvidas. Aos cinquenta anos, conhecia os mandatos que o Céu me destinara. Aos sessenta anos, os meus ouvidos estavam afinados. Aos setenta anos, podia seguir o que o meu coração desejava, sem transgredir o que é correcto.”22

2.5. Interpelado por Meng Yizi sobre a piedade filial, o Mestre respondeu: “Não a contraries”. Mais tarde, enquanto Fan Chi segurava as rédeas da sua carruagem, o Mestre contou-lhe: “Meng Yizi perguntou-me sobre a piedade filial e eu respondi-lhe: ‘Não a contraries’.” Fan Chi perguntou: “O que queres dizer com isso?” O Mestre retorquiu: “Enquanto vivos, serve os teus pais segundo os ritos; quando mortos, enterra-os segundo os ritos; depois, presta-lhes sacrifícios segundo os ritos.”23

2.6. 孟武伯問孝。子曰:「父母唯其疾之憂。」
2.6. Doutra vez, à mesma pergunta, o Mestre respondeu ao filho de Meng Yizi, Wubo: “Não lhes causar qualquer preocupação, para além da tua saúde”.

2.7. Ziyou24 perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “Hoje considera-se terem piedade filial os que nutrem os seus pais. Mas isso até aos cães e aos cavalos se proporciona. Se não lhes devotares respeito, qual será a diferença?”

2.8. Zixia perguntou sobre a piedade filial. O Mestre respondeu: “O que mais custa é mostrar-lhes boa cara (conter a expressão facial). Libertá-los de tarefas e servi-los em primeiro lugar comidas e bebidas, será que meramente isso pode ser considerado piedade filial?

2.9. O Mestre disse: “Posso falar um dia inteiro com Yan Hui sem que ele faça a menor objecção, como se fosse um idiota. Mas quando ele fica só, examina o que foi dito e tira as suas próprias conclusões. Yan Hui está longe de ser um idiota.”25

2.10. O Mestre disse: “Observa as suas acções, repara nos seus motivos, examina o que os satisfaz. (Se assim fizeres) quem poderá esconder-te qualquer coisa? Quem poderá esconder-te qualquer coisa?”26

2.11. O Mestre disse: “Pondera o antigo como meio de compreender o novo — tal pessoa pode ser considerada um mestre.”

2.12. A pessoa exemplar não é um mero utensílio.27

2.13. Zigong inquiriu acerca das pessoas exemplares. O Mestre respondeu: “Primeiro praticam aquilo que vão dizer, só depois o dizem.” 28

2.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares, ao associarem-se abertamente com outros, não seguem facções; as pessoas menores, as que seguem facções, não se associam abertamente com os outros.”29

2.15. O Mestre disse: “Estudar sem reflectir é inútil; reflectir sem estudar é pernicioso.”

2.16. O Mestre disse: “Tornar-se exímio numa qualquer doutrina heterodoxa não traz senão desgraça.”30

2.17. O Mestre disse: “Zilu31, será que te posso ensinar o significado de sabedoria? Saber aquilo que se sabe e saber aquilo que não se sabe – isto é a sabedoria.”

2.18. Zizhang estudava para os exames oficiais. O Mestre disse: “Se puderes escutar abertamente, deixa de lado aquilo de que não estás certo e fala cautelosamente do resto de modo a cometeres poucos erros; se puderes olhar abertamente, deixa de lado o que é perigoso e age cautelosamente em relação ao resto de modo a que, assim, tenhas poucos remorsos. Poucos erros nas tuas palavras, poucos remorsos das tuas acções — terás uma brilhante carreira.”32

2.19. O Duque Ai de Lu inquiriu Confúcio, perguntando: “O que se pode fazer para obter a lealdade do povo?” Confúcio respondeu: “Eleva aqueles que são verdadeiros acima dos que são corruptos e será tua a lealdade do povo; eleva os corruptos acima dos que são verdadeiros e o povo não será teu.”33

2.20. Ji Kangzi perguntou: “O que fazer para que o povo seja respeitoso, leal e zeloso? O Mestre respondeu: “Supervisiona o povo com dignidade e este será respeitoso; sê filial para com os teus maiores e bondoso com os teus mais novos e o povo será leal; eleva aqueles que têm talento e instrui os que não têm e o povo mostrará zelo.”

2.21. Alguém perguntou a Confúcio: “Por que não tens emprego no governo?” O Mestre respondeu: “Quando o Livro dos Documentos diz: ‘Tudo está na piedade filial! Ser filial para com os pais e amigável com os irmãos fará florir essas virtudes no governo’ – será que isto não é falar do exercício do governo? Será que não se pode governar sem fazer parte do governo?”34

2.22. O Mestre disse: “Não estou certo de que alguém que não cumpra a sua palavra seja viável enquanto pessoa. Se uma carruagem de grande porte não tiver uma barra para o seu jugo ou se uma pequena carruagem não tiver uma barra na sua cruzeta, como poderão ser conduzidas seja onde for?”

2.23. Zizhang perguntou: “Será possível saber o que se passou sob o Céu (天下 tianxia) daqui a dez gerações?”35
O Mestre respondeu: “A dinastia Yin adaptou a observação da propriedade ritual a partir da dinastia Xia e modo como o fez é conhecido. Os Zhou adaptaram a observação dos ritos a partir dos Yin e o modo como a alteraram é conhecido. Se houver uma dinastia que suceda aos Zhou, mesmo que tal ocorra daqui a cem gerações, a continuidade e a mudança poderão ser conhecidas.”

2.24. O Mestre disse: “Sacrificar a espíritos de antepassados que não os seus é bajulação. Não agir naquilo que é entendido como justo (義 yi) é cobardia.”

Notas

19. Um dos objectivos últimos do pensamento de Confúcio é a formação de homens capazes de governar com virtude. Alguns comentadores consideram que neste ponto estamos perto do conceito taoísta de não-acção (無為 wu wei), ou seja, que o governante deve unicamente exibir um comportamento virtuoso e exemplar, tornando-se num modelo para os outros homens que à sua volta giram como as estrelas volteiam em redor da fixa Estrela Polar. Assim, o governante ideal intervirá o menos possível no socius, ou seja, na vida das linhagens que, considerando o comportamento benevolente e recto do soberano, por ele pautarão igualmente as suas acções. De algum modo, aqui está descrita a utopia confucionista.
20. Referência de Confúcio ao livro que, segundo a tradição, ele próprio editou, o Livro das Odes (詩經 Shi Jing), que contém, na realidade, 305 poemas. É aqui citado, como súmula do próprio livro, um verso de uma dessas odes que fala poderosos cavalos de guerra criados para puxar carruagens e avançar a direito sem se desviarem do caminho desejado — tal como o pensamento e o comportamento devem avançar sem se desviarem dos seus fins virtuosos.
21. Neste ponto, estabelece-se uma oposição entre a prática de governar através de leis coercivas e de castigos e a prática de governar através de exemplos de virtude e do cumprimento dos ritos. Zhu Xi comenta: “Embora provavelmente não se atrevam a fazer nada de mal, a tendência para fazer o mal nunca os deixará”. Para o confucionismo, as meras leis ou as punições delas decorrentes não são o caminho para a governação. O governante deve, sobretudo, ser um exemplo de virtude, o que levará ao seu reconhecimento pelo povo e este deve conformar o seu comportamento aos ritos. A menorização das leis e dos castigos tornará o pensamento de Confúcio inimigo dos sábios legistas, como Han Fei Zi, por exemplo, que enformam o pensamento e a acção de Qin Huandi, o imperador que unificou o País do Meio em 221 a.E.C e fundou a dinastia Qin.
22. Aqui temos aquelas que muitos consideram as últimas palavras de Confúcio. Segundo a tradição, o Mestre terá morrido aos 72 anos. Este número levanta algumas suspeitas nas mentes mais cépticas, na medida em que se trata de um número extremamente correcto porque é um múltiplo de 9, a expressão numerológica da totalidade. Por exemplo, na mitologia chinesa, a invenção das armas e da forja é atribuída a Chiyou (蚩尤), um ser maléfico que morreu em batalha contra o Imperador Amarelo (黃帝 Huangdi), num combate mítico cuja reprodução ritual tem atravessado a história da China. Chiyou, cuja natureza aparece por vezes repartida em 72 (9×8) ou 81 (9×9) irmãos, tem um aspecto temível: cabeça de cobre com a testa em ferro e semelhanças bovinas. A tremenda batalha em que defrontou Huangdi surge recheada de contornos mitológicos, em que cada um arregimentou para o seu lado diferentes seres mitológicos: a sua legião de demónios espalha uma misteriosa neblina, no seio da qual Huangdi para se orientar inventa a bússola; depois o monarca derrota o seu inimigo graças a uma trompa mágica que imitava o grito do Dragão. Chiyou terá mesmo sido morto pelo Dragão Yin, o dragão da Chuva que, juntamente com Niu-pa, a deusa da Seca, secundava Huangdi. Duzentos anos antes da nossa era, esta figura terrível foi recuperada pelo primeiro imperador dos Han, Liu Bang (劉邦), que era suposto ostentar 72 sinais numa perna e lhe dedicou um sacrifício .
É por isso muito possível que estejamos aqui perante uma espécie de divinização de Confúcio, estabelecida por um percurso (dao) ascensional que começa pelo estudo até, aos 30 anos, compreender qual o seu lugar de excelência onde deve permanecer; para depois, aos 40 anos, adquirir certezas sobre o mundo e as coisas, não sendo já surpreendido e, aos 50 anos, entender qual o destino que o Céu (tian) lhe impusera. Aos 60 anos, de “ouvidos afinados”, distinguia imediatamente as palavras certas das erradas e, finalmente, aos 70 anos, era suficientemente sábio para agir com toda a liberdade sem que com isso causasse qualquer desarmonia. Assim, pelo menos para os neo-confucionistas, liderados por Zhu Xi, Confúcio era o Grande Sábio, um Santo, que imolava os “iluminados” do budismo.
23. Falando da governação, emerge inevitavelmente o tema da piedade filial, na medida em que o confucionismo estabelece uma relação entre a hierarquia e os deveres no seio da família e a hierarquia e os deveres na sociedade. O soberano ou o superior hierárquico deverão ser respeitados como respeitados são o pai ou o irmão mais velho. Os pontos seguintes elaboram de modos diversos esta questão. Meng Yizi 孟懿子 (531-481 a.E.C.) pertencia a um dos mais importantes clãs do reino de Lu (parte da actual província de Shandong), onde vivia Confúcio. Fan Chi (樊迟) era um discípulo menor que aparece por vezes nos Analectos.
24. Ziyou 子游 (nascido circa 506 a.E.C.), nome de cortesia de Yan Yan 言偃, foi um dos dez discípulos sábios de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Ziyou é frequentemente mencionado juntamente com Zixia 子夏. Era muito mais novo que Confúcio e só se tornou um seguidor do Mestre quando este já era idoso. Confúcio estimava-o especialmente pela sua educação literária. Na sua juventude, Ziyou ocupou o cargo de magistrado de Wucheng 武城 (hoje Feixian費縣, em Shandong). A sua administração era orientada pelo princípio confuciano de “amar o povo”. Quando o Mestre passou pela cidade de Wucheng, ficou muito satisfeito com a música que ali tocava. Ziyou também criticou os discípulos de Zixia, dizendo que estavam “suficientemente realizados em aspergir e varrer o chão, em responder e retorquir, em avançar e recuar, mas estes são apenas os ramos da aprendizagem, e foram deixados na ignorância do que era essencial”. Ziyou sublinhou também a importância da contenção na aplicação da moral. Por exemplo, segundo Ziyou, não era apropriado exagerar o luto. Após a morte de Confúcio, Ziyou tornou-se num professor algo desviado do caminho do Mestre. Mais tarde, foi duramente criticado por Xunzi 荀子 e nunca teve a mesma importância de outros discípulos de Confúcio.
25. Yan Hui 顏回 (521-481 a.E.C.) foi o discípulo mais importante e preferido. Nascido em Lu 魯, tal como Confúcio, o seu pai Yan Wuyao 顏無繇, foi um dos primeiros seguidores do Mestre. Trinta anos mais novo que Confúcio deve ter morrido em tenra idade. Yan Hui cresceu numa família pobre, mas tinha um amor imenso pelo estudo. Por isso, nunca aceitou um cargo e preferiu ser discípulo de Confúcio. O Mestre estimava desmesuradamente Yan Hui e elogiava-o pelo seu comportamento nobre e benevolente. Para Confúcio, era um modelo de virtude e um igual a si próprio, progredindo a cada dia no caminho da benevolência. Outros discípulos invejavam Yan Hui pela sua capacidade de saber tudo sobre um assunto. A morte prematura de Yan Hui comoveu profundamente o Mestre que terá gritado: “o Céu destrói-me!”. “Se não chorasse amargamente por este homem, por quem haveria de chorar?”, terá perguntado. Yan Hui parecia, por vezes, desesperado na sua esperança de compreender os ensinamentos do Mestre. “Olhei-os e pareciam estar mais altos; tentei penetrá-los e pareciam estar mais firmes; olhei para eles à minha frente e de repente pareciam estar atrás. O Mestre, com o seu método ordenado, conduz habilmente os homens. Ele ampliou a minha mente com o estudo e ensinou-me as restrições da propriedade ritual. Quando desejo aceder ao estudo das suas doutrinas, não o posso fazer, e tendo exercido toda a minha capacidade, parece haver sempre algo que se ergue à minha frente e, embora deseje segui-los e agarrá-los, não encontro realmente maneira de o fazer”. O Mestre instruiu-o nas quatro evasivas (não olhar, não ouvir, não falar, nada fazer contrário à benevolência), e Yan Hui prometeu seguir esta directriz embora fosse “deficiente em inteligência e vigor”. Foi exactamente por causa desta obediência obstinada que Confúcio também criticou Yan Hui como não sendo de grande ajuda para ele, porque nada havia que o Mestre dissesse que não o deleitasse.
26. Interessante esta deriva psicologista de Confúcio que a considera como parte da arte de governar. O governante terá de desenvolver a sua própria capacidade de ler o carácter alheio, além das aparências, de modo a entender as motivações mais profundas dos que o rodeiam e usá-las a seu favor no estabelecimento de uma administração recta e benevolente, aceitando uns e rejeitando outros.
27. Este famoso adágio foi sujeito a diversas interpretações. Por exemplo, a pessoa exemplar (junzi)não deverá ser entendido como alguém capaz de desempenhar uma função particular (como um utensílio/ferramenta), como por exemplo, um carpinteiro que se especializa no trabalho da madeira; pelo contrário, terá uma visão mais abrangente do mundo e das coisas. Neste sentido, poder-se-á argumentar que nele o cultivo de si não passa unicamente pela aquisição de conhecimentos específicos, mas primordialmente pela formação ética, sendo capaz da Prática do Meio (Zhong Yong). Confúcio parece assim aconselhar o governante a não desperdiçar os talentos de um junzi, utilizando-o apenas para uma função, sem aproveitar todo o seu potencial, sobretudo a sua capacidade de produzir moral e assim ser um exemplo para os outros. André Levy, contudo, traduz esta frase de modo diferente. Para ele, deve-se ler: “O homem de qualidade (junzi) não trata ninguém como um utensílio” e questiona: “não concederia (esta exegese) a Confúcio um pensamento mais elevado, conforme à sua concepção de altruísmo, amor e respeito pelo homem enquanto tal?”
28. Esta fórmula pode ser interpretada de diferentes modos. A pessoa exemplar só ensina o que já comprovou pela prática ou que assim estimula os outros a pôr em prática o que pretendem afirmar antes de o fazerem.
29. A existência de várias facções no seio dos reinos era, para Confúcio, um dos grandes problemas da sua época.
30. Por doutrinas heterodoxas, refere-se outras escolas de pensamento, nomeadamente o taoísmo e o moísmo, a quem pouco importava a tradição ritual e política que vinha de Yao e Shun e dos fundadores da dinastia Zhou, que Confúcio procurava emular. A desgraça seria o esfarelamento do frágil império Zhou em diversos reinos que, constantemente, combatiam entre si. O facto de assentar as ideias na tradição, numa espécie de Idade do Ouro, garantia ao Mestre a sua rectidão.
31. Zilu 子路 (542-480 a.E.C.), nome de cortesia de Zhong You 仲由, foi um dos dez discípulos. Nasceu em Bian 卞 (hoje Sishui 泗水, em Shandong) no reino de Lu 魯 e cresceu pobre. Era o mais velho dos discípulos de Confúcio, sendo apenas nove anos anos mais novo que o Mestre. Zilu tinha um carácter simples, corajoso e decidido, mas era também grosseiro, inculto, ousado e guerreiro; e não gostava particularmente de discussões académicas. Venerava muito Confúcio e protegia-o onde quer que fossem. Confúcio gostava do discurso directo de Zilu, que nada ocultava. Zilu seria, disse o Mestre, o único a segui-lo sobre uma jangada e a flutuar sobre o mar. Morreu cruelmente durante uma revolta no reino de Wei. Mêncio considerou-o igual aos sábios governantes do passado.
32. Zizhang é um dos 72 discípulos mais importantes de Confúcio, criticado pelos seus pares pela pressa que revelava em adquirir um posto oficial. O mais importante é cultivar as virtudes interiores, que segundo o ruismo advêm do Céu, como a benevolência, a rectidão, a autenticidade, etc. Se o fizerem, em princípio, as recompensas, como tornar-se ministro ou conselheiro, serão alcançadas, embora tal não seja certo. Mêncio diz: “Os antigos cultivavam as honras celestes e as honras humanas seguiam-se naturalmente. Hoje as pessoas cultivam as honras celestes apenas como um meio para obter honras humanas, e uma vez que recebem as segundas, abandonam as primeiras. Isto é uma ilusão e, no final, só pode levar ao desastre.”
33. Jiang Xi 江熙 comenta: “O Duque Ai foi presenteado com uma oportunidade única na vida quando o seu reino se encheu de dignos sábios. Se ele os tivesse simplesmente tratado e empregado, poder-se-ia ter tornado no verdadeiro rei de Lu. Infelizmente, preocupava-se apenas com os prazeres sensuais e deixou o controlo da administração a um bando de malfeitores. Como resultado, o coração do povo encheu-se de ressentimentos. O Duque Ai estava perturbado com este estado de coisas, e por isso fez esta pergunta a Confúcio.”
4. Esta resposta de Confúcio sublinha a contribuição de cada um para o governo, ou seja, do dever cívico, independentemente do facto de fazer ou não parte da administração do reino. Assim, a governação não está apenas nas mãos dos poderosos mas disseminada entre o povo, na medida em que o exemplo de cada um pode produzir resultados concretos ao nível de toda a sociedade. Resumindo, ninguém, rico ou pobre, governante ou governado, se pode eximir ao dever de viver com benevolência, cumprir a piedade filial e os ritos, contribuindo assim para a harmonia social e a boa governação.
35. Eis uma passagem que provoca sérias dissensões entre exegetas e comentadores. Segundo alguns, a pergunta de Zizhang refere-se ao futuro: será possível saber o que acontecerá sob o Céu daqui a dez gerações? Contudo, lida assim a pergunta, a resposta de Confúcio seria de uma atroz banalidade e, de certo modo, transviada. Pelo contrário, a ser uma questão sobre o que seria conhecido do passado daqui a dez gerações, a resposta do Mestre enquadra-se na sua crença de que algo do passado sempre permanece no futuro, ou seja, há sempre continuidade apesar das mudanças. Além disso, inscreve-se na importância que o confucionismo outorga ao conhecimento das instituições do passado. Um sintoma de mudança significativa aparece nos ritos e nas alterações que vão sofrendo com as mudanças histórico-sociais.

16 Mar 2023

Analectos – o principal livro do confucionismo

Tradução de Rui Cascais
Revisão e notas de Carlos Morais José

LIVRO I

學而 (Xue Er)1

ESTUDAR

1.1. O Mestre disse: “Estudar para aplicar na altura certa2 aquilo que se aprendeu – não será isto uma fonte de prazer? Ter amigos que chegam de partes distantes – não será isto uma fonte de alegria? Suportar sem acrimónia não ser reconhecido pelos outros – não será isto a marca de uma pessoa exemplar (君子 junzi)?”3

1.2. Mestre You4 disse: “Desafiar a autoridade é algo muito raro em alguém que tem o sentido do dever filial e fraternal (孝弟xiaodi). E nunca se ouviu que aqueles que não têm gosto em desafiar a autoridade apreciem dar início a rebeliões. As pessoas exemplares concentram os seus esforços na raiz, pois quando a raiz se fixa, a partir dela a Via (道 dao) crescerá. E não será o dever filial e fraternal a raiz da benevolência (仁 ren)?”5

1.3. O Mestre disse: “Hábeis palavras e faces afáveis raramente albergam verdadeira humanidade (仁ren).”
1.4. Mestre Zeng disse: “Todos os dias examino a minha pessoa relativamente a três aspectos. Nos meus trabalhos para bem dos outros, terei lealmente oferecido o meu melhor? No meu convívio com colegas e amigos, terei sido sincero? Aquilo que me foi transmitido, tê-lo-ei realmente aprendido?6
1.5. O Mestre disse: “A via para reger um reino de mil carros de combate com eficácia é desempenhar os deveres oficiais com respeito e cumprir a sua palavra; ser frugal nas despesas e amar os seus pares; e usar o povo apenas na estação apropriada do ano.”7
1.6. O Mestre disse: “Enquanto irmão mais novo e enquanto filho, sê filial (孝xiao) em casa e age com deferência (弟di) na comunidade; sê reservado no que dizes e cumpre sempre a tua palavra; sê amável com todos mas apenas íntimo daqueles cuja conduta é benevolente (仁 ren). Se depois de assim te comportares ainda te sobrar energia, usa-a para te cultivares através do estudo.”8
1.7. Zixia9 disse: “Quanto às pessoas que prezam mais o carácter do que a beleza, que no serviço de seus pais são capazes de se aplicar devotadamente, que se colocam sem reservas ao serviço do seu soberano, e que no convívio com colegas e amigos cumprem a sua palavra – mesmo que delas fosse dito que não tinham frequentado qualquer escola, eu insistiria que são deveras bem educadas.”
1.8. O Mestre disse: “As pessoas exemplares a quem faltasse gravidade não teriam dignidade e o seu saber seria frágil. Que o teu fio condutor seja fazeres o teu melhor e cumprires a tua palavra. Não tenhas como amigo ninguém que não valha tanto como tu.10 E, quando errares, não hesites em emendar a tua conduta.”
1.9. Mestre Zeng disse: “Sê circunspecto nos serviços funerários, mantém os sacrifícios aos antepassados distantes e a virtude (德 de) do povo comum florescerá.”
1.10. Ziqin perguntou a Zigong11: “Quando o Mestre chega a um dado Estado e precisa de saber como este é governado, será que procura a informação ou esta é-lhe oferecida?” Zigong respondeu: “O Mestre obtém tudo o que necessita sendo cordial, contido, deferente, frugal e despretensioso. É provável que este modo de procurar informação seja diferente do modo como outros a obtêm.”
1.11. O Mestre disse: “Estando o pai vivo, julgue-se o filho pelas suas intenções; quando o pai morre, julgue-se o filho pelo que faz. Alguém que, durante três anos, se abstém de reformar os modos de seu falecido pai pode ser chamado um descendente filial.”12
1.12. Mestre You disse: “Na prática dos ritos (禮 li), atingir a harmonia (和he), através dos correctos procedimentos, é o mais precioso. Ela faz a beleza da Via e das instituições dos antigos reis, sendo um padrão de conduta em todas as coisas, grandes e pequenas. Mas realizar a harmonia pela harmonia sem respeitar as regras cerimoniais dos ritos (禮 li) não trará quaisquer resultados.”13
1.13. Mestre You disse: “É na medida em que o respeito à palavra dada corresponde à rectidão (義 yi) que as promessas devem ser cumpridas. Se a deferência seguir o rito (禮 li) mantém à distância a desgraça e o insulto. Quem age sem ofender e perder os que lhe são próximos também é merecedor de estima.”14
1.14. O Mestre disse: “As pessoas exemplares contentam-se com uma alimentação frugal e uma habitação humilde. São ardentes a agir e reticentes com as suas palavras. Andam junto a homens virtuosos e na sua companhia se corrigem. De tais pessoas deveras se pode dizer que têm amor pelo estudo.”15
15. Zigong disse: “O que pensas do ditado: Pobre mas não inferior, rico mas não superior?” O Mestre respondeu: “Não é mau, mas não é tão bom quanto: ‘Pobre mas desfrutando a Via, rico mas amando os ritos’.”16 Zigong disse: “O Livro das Odes afirma: ‘Como osso esculpido e limado, / como jade cortado e polido.’ Não é isso que tens em mente?”
O Mestre disse: “Ci, só com alguém como tu posso discutir as Odes! Com base no que foi dito, tu sabes o que está para vir.”
16. O Mestre disse: “Não te preocupes com não seres reconhecido pelos outros, preocupa-te com o facto de não os reconheceres.”17

Notas
Não é por acaso que o primeiro capítulo dos “Analectos” surge subordinado ao tema “estudar”. Com efeito, Confúcio encara a educação dos indivíduos como o meio para atingir a reforma da sociedade e assim se construir um modelo ideal de relações humanas, na qual o indivíduo possa desenvolver ao limite as suas naturais capacidades. Não se trata, no entanto, de uma mera aquisição de conhecimentos, algo que o Mestre considera insuficiente. Como é referido logo nas primeiras sentenças, o mais importante será saber quando e como aplicar esses conhecimentos. E se é na prática que o conhecimento se revela precioso, a sua eficácia só adquirirá valor se for balizado por uma ética cuja objectivo é dotar cada sujeito da capacidade de agir com benevolência (仁ren), sustentada pela rectidão (義yi) e pelo cumprimento de pressupostos rituais (禮li) modelados nos valores e hierarquias da piedade filial (孝xiao). A rectificação da natureza moral (xing) de cada sujeito passa então pelo cultivo de si (修身 xiushen), por uma educação que permitirá expurgar de cada coração (性 xin) os desejos egoístas e participar plenamente na construção de uma sociedade onde, quando realizada, predominará a harmonia.
2. “na altura certa”, shi 時. Este caracter tem sido interpretado de dois modos diferentes: por vezes, significa “repetidamente”; doutras “momento oportuno” ou “altura certa” porque também se refere às estações do ano e ao momento em que o Filho do Céu ritualmente as marcava.
3. Neste primeiro terceto de afirmações imediatamente se aflora o perfume hedonista do confucionismo, a saber, a importância da satisfação e do prazer que resulta da prática informada pelo estudo; da socialização com pessoas que partilham a mesma Via, trocando experiências e informação; e de, interiormente, para si mesmo, não depender do reconhecimento alheio. Esta abertura assume o gesto de uma promessa de felicidade.
Assim, a existência de uma pessoa exemplar (junzi) será pautada por sensações de satisfação e prazer. Estas advêm, em primeiro lugar, da realização prática dos seus estudos, não bastando a aquisição de conhecimentos mas, sobretudo, saber quando os aplicar com eficácia. Em segundo lugar, a fruição da companhia de amigos, provavelmente gente que chegava de sítios distantes para o seguirem como discípulos. O caracter 朋(peng) significa, etimologicamente desde o tempo de Confúcio, alunos de um mesmo mestre, seguidores de uma Via ou membros de uma confraria. Mas esta interpretação é contrariada por alguns comentadores que vêm na expressão de Confúcio uma simples referência a “amigos” sem que estes tenham forçosamente de se sentar à sombra das suas ideias. Em terceiro lugar, o Mestre refere-se a movimentos do coração e ao facto de uma pessoa exemplar não albergar sentimentos negativos por não ter reconhecimento social. A pessoa exemplar não sentirá ódio, nem inveja, nem ciúme ou sequer desapontamento. Este mergulho na interioridade e a presumível construção de uma harmonia interna serão o culminar do cultivo de si (修身 xiushen)e da posterior prática da benevolência (仁 ren).
4. O círculo mais interior de discípulos tratava You pelo título honorífico de “mestre”, devido à sua excepcional memória e amor pelos textos antigos, o que, de algum modo, o assemelhava a Confúcio.
5. O dever filial baseia-se no que é devido aos pais (a vida) e a fraternal no respeito devido aos irmãos mais velhos. Ambas implicam uma série de modelos de obediência e submissão, deveres, formas específicas de tratamento, etc.. Tendo sido estendido ao contexto extrafamiliar, o conceito adquire um valor político, na medida em que prescreve uma extensão do modelo familiar, logo indica a necessidade de aceitação, obediência e submissão à hierarquia social. Neste sentido, a harmonia familiar reflecte-se na sociedade como é explicado no “Estudo Maior” (II, cap. 9). Contudo, alguns comentadores acrescentam que, apesar da piedade filial e fraternal estar na raiz da benevolência, na raiz da piedade filial estão, por seu lado, a rectidão (yi), o padrão (li) e um coração rectificado pelo cultivo de si. No Jardim das Persuasões (說苑 Shuo Yuan), de Liu Xiang (77-6 a.C.E.) está escrito: “Se as raízes não forem rectas, os ramos serão certamente tortuosos, e se os inícios não florescerem, os fins certamente murcharão. Uma ode diz: ‘As terras altas e as terras baixas foram pacificadas/ As nascentes e ribeiros foram tornados límpidos/ Uma vez que as raízes estão firmemente estabelecidas, a Via crescerá’”.
6. Zeng Zi, um dos mais importantes discípulos de Confúcio, com quem ele terá composto o “Clássico da Piedade Filial”, e a quem alguns atribuem os comentários do “Estudo Maior” (大學 Da Xue). Talvez não tão dotado quanto outros, Zeng ganhou a estima do Mestre pela sua piedade filial e outras qualidades morais. Já no Estudo Maior, Zeng Zi citava a inscrição da banheira de Tang: “Renova-te com rigor dia após dia. Que haja uma renovação diária” (Estudo Maior, II,1). Aqui explica os passos que percorre para efectuar a referida renovação. Primeiro, a extensão máxima da benevolência. Segundo, uma honesta autenticidade. Terceiro, a séria disposição para apreender os ensinamentos do Mestre.
7. Instruções sobre a governação. Um reino de mil carros é uma mediana, ou seja, um dos que não é dos maiores, nem dos menores, do império, talvez como o reino de Lu de onde Confúcio é originário, dotado de um exército de médio porte. “Usar o povo na estação apropriada do ano” significa recrutar gente para o exército ou para os grande trabalhos públicos tendo em conta o calendário agrícola.
8. Confúcio sublinha aqui a prioridade de enquadrar num comportamento ético a aquisição de conhecimentos.
9. Zixia 子夏 (507– c.420 a.E.C.), nome de cortesia de Bu Shang 卜商, foi um dos dez principais discípulos de Confúcio (Kong men shi zhe 孔門十哲). Zixia era 44 anos mais novo que Confúcio e conhecido como um dos mais inteligentes e educados dos seus seguidores. O Mestre elogiou frequentemente Zixia pela sua inteligência e capacidade para explicar o significado dos clássicos como o “Livro das Odes”. No entanto, Confúcio era da opinião de que Zixia ainda não tinha alcançado a máxima plenitude de virtude, de modo que lhe disse: “Sê um estudioso segundo o estilo da pessoa exemplar e não da pessoa menor”. Após a morte de Confúcio, Zixia voltou para sua casa, em Wei, onde fundou a sua própria escola e transmitiu os ensinamentos do Mestre. Deixou de trabalhar como professor quando o seu próprio filho morreu. Certos comentadores entendem que os ensinamentos de Zixia continham princípios legistas. Esta é a razão pela qual o mestre legista Han Fei 韓非 não considerava Zixia entre as oito escolas confucionistas do seu tempo. Contudo, durante a dinastia Han (206-220 a.E.C.), Zixia foi considerado como um dos mais importantes confucionistas, na medida em que contribuiu para a canonização dos Clássicos. Para Hong Mai 洪邁 (1127-1279), de todos os discípulos de Confúcio, só Zixia era perito nos escritos antigos que mais tarde se tornariam nos Seis Clássicos.
Alguns comentadores acreditam que se trata aqui de uma referência à adequação das quatro relações: entre marido e mulher, filho e pai, soberano e ministro e entre amigos. Como You Zuo 游酢 (1053-1123), por exemplo: “Durante as Três Dinastias, estudar tinha apenas a ver com iluminar relações humanas. Uma pessoa capaz de dominar as quatro relações (mencionadas nesta passagem) pode dizer-se que tem uma profunda compreensão das relações humanas. Ao aprender isto como a Via, poder-lhe-á ser acrescentada alguma coisa? Zixia era famoso pela sua cultura e aprendizagem, por isso, se falava assim dá-nos uma boa noção do que os antigos queriam dizer quando falavam de estudar.”
10. Aqui trata-se, segundo os comentadores, claramente, de uma questão de virtude e não de filiação. Ou seja, o valor dos amigos escolhidos reside no grau da sua virtude e não na nobreza da sua linhagem.
A ideia de que não se deve aceitar um amigo que não nos é um “igual” pode parecer um pouco estranha se não conhecermos a “amizade virtuosa” no sentido que lhe dá Aristóteles. Para o Estagirita, “A amizade perfeita é a de dois homens bons e iguais em virtude. (…) Pois a igualdade e a semelhança, sobretudo a semelhança na virtude, porque, sendo constantes em si mesmos, assim permanecem a respeito do outro.” (Ética a Nicómaco, VIII) Segundo Confúcio “um amigo” (友you) é uma pessoa que partilha as mesmas aspirações morais. Devemo-nos comparar com outras pessoas em geral para avaliar o nosso progresso moral, mas o convívio virtuoso proporcionado por um amigo produz um poderoso impulso para um maior desenvolvimento moral e uma importante sensação de solidariedade, também como consolo, durante o árduo processo do cultivo de si.
11. Zigong (子貢), nome de cortesia de Duanmu Ci (端木賜) era um distinto estadista e mercador, tão apreciado como criticado por Confúcio. Se, por um lado, originário de uma família rica, Zizong possuía uma esmerada educação e era extremamente eloquente; por outro lado, denotava um grande amor ao dinheiro e pouco se preocupava com a situação dos outros. Confúcio regularmente lhe chama a atenção para a discrepância entre as suas palavras e os seus actos. No entanto, os comentadores consideram-no o segundo favorito, depois de Yan Hui.
Para Zhu Xi, são os governantes que, atraídos pelo poder da virtude do Mestre, o procuram para discutir problemas de governação. Em todo o caso, a questão é que Confúcio “procura em si mesmo, não nos outros”, ou seja, “o sábio procura por meio da sua virtude, ao contrário das pessoas comuns que procuram as coisas com a mente”. Enquanto as pessoas comuns perseguem consciente e deliberadamente objectivos externos, o sábio concentra a sua atenção na sua própria virtude interior e permite que as coisas externas cheguem a ele naturalmente. Confúcio não se intromete activamente ou procura informação, mas é tão perfeito na sua virtude que tudo lhe chega sem que ele precise de agir.
12. Três anos é o período de luto pelo pai. Como Kong Anguo 孔安國 (156-74 a.E.C.) explica: “Quando o seu pai ainda está vivo, o filho não é capaz de agir como quer [porque tem de obedecer às ordens do pai, pelo que só se pode observar as suas intenções como meio de julgar o seu carácter. Só quando o seu pai tiver falecido, é que o filho pode aprender sobre o seu carácter através das suas próprias acções. Enquanto o filho filial estiver de luto, a sua tristeza e saudade são tais que é como se o pai ainda estivesse presente, e é por isso que ele não altera os caminhos de seu pai”. Yin Tun 尹焞 (1071–1142) esclarece: “Se os caminhos do seu pai estiverem de acordo com a Via, é perfeitamente aceitável que passe a sua vida inteira sem os mudar. Mas se não estão de acordo com a Via, porque há-de ele esperar três anos para os mudar? Mesmo neste último caso, o filho filial passa três anos sem fazer quaisquer alterações porque o seu coração está bloqueado por uma certa relutância”.
13. O respeito pelas regras na prática dos ritos, que finalmente perpassam praticamente todos os comportamentos sociais, assegura não apenas a harmonia mas a manutenção da posição social de cada sujeito e da ordem estabelecida. Através da observância das regras rituais, cada um sabe como manter um comportamento adequado. Se cada um mantiver um comportamento adequado, atinge-se a harmonia. É importante notar que aqui não se refere apenas os rituais propriamente ditos, como os sacrifícios, por exemplo, mas a ritualização de todos os comportamento, em todas as situações.
14. Mêncio diz: “O governante nem sempre é necessariamente fiel à sua palavra, porque só está preocupado com a rectidão.” Portanto, estabelece-se que se pode faltar à palavra dada se isso for necessário para implementar a justiça ou a benevolência. Uma historieta exemplifica esta situação, embora de modo leviano: Wei Sheng prometeu encontrar-se com uma rapariga debaixo de uma ponte. Infelizmente, houve uma grande tempestade no dia seguinte e a água do rio subiu desmesuradamente. A rapariga ficou em casa, mas Wei Sheng recusou-se obstinadamente a não cumprir a sua palavra e foi ao local do encontro onde morreu afogado. “Este é um exemplo de apego à palavra que não está de acordo com o que é adequado à situação. De facto, seria melhor não ter cumprido a sua palavra”, conclui o comentador.
15. O elogio da frugalidade, a desvalorização dos bens materiais e a crítica da ostentação, bem como a qualidade das companhias escolhidas e a acção eficaz perpassam neste ponto, que complementa as afirmações iniciais deste livro. Ao concluir que tal ser humano demonstra um verdadeiro amor pelo estudo, Confúcio sublinha a prioridade da ética e da eficácia sobre a mera aquisição de conhecimentos. Estudar, em si mesmo, não chega. É preciso saber como e quando aplicar os conhecimentos adquiridos. De algum modo, poder-se-á dizer que “estudar” significa aprender a aplicar os conhecimentos.
16. Zhu Xi comenta: “As pessoas comuns ficam atoladas na pobreza ou na riqueza, sem saberem como se comportarem em tais circunstâncias, conduzindo necessariamente a dois erros: obsequiosidade ou arrogância. Uma pessoa que é capaz de se libertar de ambas sabe como se comportar, mas ainda não atingiu o ponto de transcender completamente a pobreza e a riqueza… Quando uma pessoa é alegre, relaxa a sua mente e o seu corpo, esquecendo a pobreza; quando gosta dos ritos, está em paz onde quer que vá e segue os princípios de uma forma alegre e bem-humorada, não querendo saber da riqueza. Zigong era um homem de negócios, provavelmente começou pobre e depois tornou-se rico, e por isso teve de se esforçar para se controlar. É por isso que ele faz esta pergunta em particular. A resposta do Mestre foi provavelmente destinada a reconhecer o que Zigong já tinha conseguido e ao mesmo tempo encorajá-lo a continuar a lutar pelo que ainda não tinha alcançado.” Mais do que afirmar o valor intrínseco de alguém, independentemente da sua situação financeira, como pretendia Zigong, Confúcio sublinha a importância da prática, no caso do rico ou do pobre. Este poderá retirar satisfação da Via, enquanto o outro deverá, apesar da sua riqueza, cumprir os procedimentos rituais se quiser tornar-se numa pessoa exemplar.
17. Esta sentença final do primeiro capítulo realça a primazia do conhecimento sobre o reconhecimento social, da sabedoria sobre a vaidade pessoal ou mesmo a aquisição de poder político, pois os alunos de Confúcio, a quem se destina, procuravam geralmente cargos públicos onde poderiam aplicar a doutrina do Mestre e, concomitantemente, alcançar um estatuto social superior. Mas o que convém sublinhar é a alteração que, a partir de Confúcio, se processa no próprio conceito de 學 (xue). De facto, em língua portuguesa a palavra “estudar” não abrange o significado que os Analectos lhe dão, pois não se trata apenas de uma mera aquisição de conhecimentos nem da disposição interior de um sujeito que se compraz com meros acrescentos de saberes e de sentidos.
O caracter 學 (xue), na sua origem, representaria um salão de tiro ao arco, onde a aristocracia Zhou estudava e aprendia essa arte. Daí terá adquirido um sentido mais geral, passando a designar todo o tipo de estudo ou educação, eivado de um conteúdo cerimonial e religioso. O confucionismo, mantendo o seu sentido de aquisição de conhecimentos, elevou 學 (xue) à dignidade de um aperfeiçoamento moral e, ao mesmo tempo, de uma realização pessoal, na medida em que o define como o caminho para o cultivo de si e consequente recuperação da natureza original e única de cada indivíduo.

10 Mar 2023

Dias melancólicos se encontram no Outono

NASCIDO EM 1963, em Zigong na província de Sichuan, Zhen Danyi, vive actualmente em Hong Kong, onde publica na Sixthfingerpress, uma editora-oásis, digamos assim, no ténue contexto cultural de Hong Kong.

A sua mãe era actriz, uma intelectual que a Revolução Cultural poupou lançando-a para uma fábrica de açúcar para o resto da vida. Algumas das primeiras palavras que Danyi disse quando nos encontrámos foram: “odeio açúcar”.Os poemas aqui apresentados são de “Wings of Summer”, uma colectânea que reúne poesia de 1984 a 1997 em tradução inglesa de Luo Hui.

É curioso encontrar um poeta que, ao contrário do cinismo em moda na Europa, não aposta em desdenhar do seu ofício. Em Portugal, por exemplo, tornou-se fino entre poetas dizer que “a poesia não interessa” (um famoso dictum de T.S. Eliot). Até faz sentido, para quem escreve nos subúrbios da vida, por tédio.

Não no caso de Zheng Danyi, onde a escrita e a vida não são separáveis. Na sua poesia, como em muita da arte contemporânea chinesa, há uma crueza e um desassombro por vezes quase brutais que têm obtido uma recensão fora da China que as considera como violência gratuita ou como estranheza deliberada. Mas que outra coisa esperar de uma crítica e de uma sociedade que se habituaram a ver a arte como mero exercício?

Como posso fazer-te acreditar que isto é o
/Outono
Quando tudo aqui
Prova o oposto!
Quando a mais fria água pega fogo

Quem sabe – colo o meu ouvido
A um sino. Quem sabe –
Encomendei uma rajada de vento! Num mês

As folhas caíram
O sino esgotou o seu repique
Como pode ter sido vinho
A privar-me do meu desgosto!
Como podes tu, caminhando sozinho
Ter-te tornado escravo da tua alma

Como podem os pássaros, mortos há muito
Subitamente reaparecer no céu?

Outono. Dias indescritíveis
Dias em que o fogo extingue fogo
Não, como posso fazer-te acreditar
Que estes são dias em que electricidade se
/ dobra em metal!

Estes são dias de apocalipse! Quando eu,
/ para ti
Escancaro a porta da morte…

Agora entra. Perplexas faces, gloriosas faces
Dias melancólicos se encontram no Outono!

QUANTOS OUVIDOS DA ALMA OUVEM

Quantos ouvidos da alma ouvem idade
Ou solidão? A última, a única liberdade
Está desfeita. Quando intoxicada

No cume da felicidade
Nas profundezas de enormes plantas

Quantos ouvidos da alma ouvem
Rodas de pequenos dentes, girando
Infinitamente girando
Violentas línguas enredadas sob água
Prodigalizando flores e interminável
/ bom vinho

Porém cada nascer é um salvamento
Como banquetes, uns a seguir doutros
Pois o terror é bastante. Pois a terra
Rouba antes de dar de novo
Demasiado obsoleto! Por favor –
Quantos ouvidos da alma ouvem

O seu próprio arquejar, ou as batidas
/ do coração
De crianças cantando
Em punido ar
A derradeira canção de inocência

PRIMAVERA

Como uma palavra de veias cortadas
Isto é Primavera
Após numerosas Primaveras
Certos inimigos acordam
Como um suave jardim
Ervas, chuva, ou uma aguda vedação
Tais coisas, no passado poderiam ter sido
Espadas e adagas

Amor, solidão… deixa estar
Entre sonhos e fantasias
Estão essas flamejantes pétalas
Línguas traindo o amor

Ou veias
Secretamente quebradas?

O vidro faz progressos
Carregado com órgãos internos…Árvores
/ palácios
Fazem progressos
Em direção a gentileza, ou a cristal ou sal?

Olha, vermiculares dedos, rostos
Como Terreiros de execução –
Meras folhas de papel branco
Como poderemos suportar assaltos de sangue

Olha, o que faz
Este planeta de valas comuns entontecer,
/ cansar
Não! Certamente não
Costumes, morte, nascimento…ou um jardim

Nas margens da carne destinadas a rebentar
A terra está preparar, a devorar
Outra Primavera

CONHEÇO OS SONHOS DESTA REGIÃO

Conheço os sonhos desta região
Ao lado de uma ave fugitiva e de um sino
/ que toca
Em Nanjing. Rochas para rochas se retiraram
De Edifício graves
Deixando muito espaço para árvores

Flor de primavera, lua de Outono, ano sim,
/ ano não
Paisagem e beleza desfilam, ar púrpura
Fugindo de templo e igreja

Buscando um cheiro, um bando de corvos
Paira sobre o quarteirão…Um bando
/ de corvos
Relutantes na partida, até
Turistas serem trazidos ao alto do monte
A mais bela
Capital que já vi – a invernosa Najing
Na margem da morte
Mostrando paisagem. Secreta, serena…Até
Carnudos remoinhos
São trazidos de labirintos subterrâneos

Abrupto ar de entardecer espalha ansiedade
/ e medo
Uma ave fugitiva
Sonhos de um sino que toca

A capital foi para norte, as pessoas
/ ergueram-se
E eu sei segredos mais profundos
Para além da vista. Em delapidados
Palácios, uma pérola única
Ou uma cabeça tombada
Causaram enorme incêndio

Em Nanjing, metade do fogo penetrou
/ a poesia. A outra metade
Contida por montes e lagos
Imagens rectificadas por paisagem
Torre subidas para ver –

Nunca curta semana, a frente fria cruzou
/ o Yangtze
Vestido em roupa almofadada
Eu regressei
À outra margem da morte…Oh

Os meus passos apressados me envolveram
Em sonhos desta região. Buscando um cheiro
Repetindo faces fictícias

A última noite trouxe grande neve
Um par de sapatos de algodão me acenou
Adeus às portas da cidade…
A ave fugitiva, de novo, sonhou com um sino tocando

Janeiro de 1989

OITO POEMAS CHAMADOS ESTILHAÇOS

1. O VENTO BATE COM SUAVES CASCOS
O vento bate com suaves cascos nos vidros
/ da minha janela
Eu balanço como água num copo
No corredor branco do tempo
Como um copo de água não me posso
/ inclinar

O vento, depois dos bosques, varre agora
/ as ruas….
O vento, saindo da cidade…a um distante
/ vale

Abre: castanha felicidade engarrafada
Olho para dentro de mim…O vento
Fica no copo, por isso só posso tremer
Tremer. Ecoar
O som das rochas despejadas nos tímpanos
/ do vale

2. POESIA

O horário marcado, papel preparado, sangue
/ grita em calma
Um som inclina-se para a frente
Uma sombra varrendo diz: Agora
A escrita começa
Quando o vale mistura a sinfonia das canções
/ de amanhã

Rasgo as ligaduras
Rasgo a pele da dor para veres –

Olha, aqui
Poesia – este pássaro a ficar cor-de-rosa
Penas cheias, músculos fortes, ossos
/ embrulhados
Cordas vocais prateadas e finas como asas
/ de cigarra
Todo completo…E aqui
O crescimento no céu

E fundos arranhões que deixou no papel…

3. RECUSA

Toneladas de gelo flutuando no céu
Chamamos-lhe nuvem
Toneladas de raiva agitando-se no céu
Chamamos-lhe trovão

No cálice do universo
Relâmpago gelado junta-se de novo a carne
Toneladas de carne
Chamamos-lhe amor

Chamamos-lhe: qualquer coisa –
Até que finalmente lhe chamamos; ódio
Flutuando no coração
Um pedaço de rugoso osso

Entre estas linhas
Nuvens de diferentes designações recusam-se
/ a fundir

4. VOCABULÁRIO BRANCO
Então, deve ser assim que se cospe gravilha
“Sobe rochas, esmaga…”
Então, deve ser assim que se limpam
/ feridas mortas
“Luvas, rochas, serra eléctrica…”

Já não sonhamos para além de amanhã
Nas rochas, vocabulário branco
Paciente aguarda que a ordem esguiche,
/ em massa

5. MAS UM POETA É SÓ

Mas um poeta é só um rádio amador
No coração de sal e cristal, rápido nevoeiro
/ prevalece

Cristal, olhos translúcidos, fixa blocos
/ de cimento
Organizados como caixões ao longo
/ do céu
Mais alto, num inferno de cimento, é salve-se
/ quem puder

Mas um poeta pode voar – no sonho
De um objeto voador feito de gralhas e papel
/ encharcado

Mas um poeta é só alguém que fala no
/ nevoeiro
Só um falante
Em espesso nevoeiro
Um archaeopteryx, exalando quentes
/ baforadas

6. COM POESIA

Escuridão. Escuridão continua
Um brilho branco no crânio
Nunca pode ser esmagado

Começo a limpar sangue em cadáveres
Com poesia, começo a rezar
Deixo sair calor aprisionado nos membros
/ de vocabulário
Com poesia – o radiador inquebrado

Quando no meu vas deferens algo se agita…

7. VIDA

Vida, o que podes espremer agora
A parte perecível pereceu
A parte que abana foi abanada
O que pode ser perdido, perdido
O que pode ser sobreviver, sobrevive…
Oh, Vida, a que me espreme

Mas já não podes espremer mais, nem sequer
Uma lágrima forçada

8. APARTAMENTOS DE CIMENTO

Recuas perante ti mesmo, recebes
O lençol branco com clavículas

As portas estão sendo instaladas, uma a uma
A cama, amarando as suas oito pernas,
/ não está disposta a suportar –
Um frio

Desejo de se erguer ocupa o leito de morte
Desnecessariamente largo

Com expressões presas e câmara lenta
Novos inquilinos estão-se a mudar
Erguendo-se, caindo, em fila

As portas estão numeradas por dentro,
/ com endereços…
Como pedras tumulares erigidas na mente
“Não mais escrita – não mais!”

Um cheiro ardente penetra as narinas
Ela jaz na cama como suave fio
Queimado por um sonho de alta voltagem…

Maio de 1985

De Dezasseis Poemas, 1988
Introdução e Tradução de Rui Cascais

26 Jan 2023

Han Fei Zi e o legismo

Han Fei (280 -233 a.E.C.) nasceu na família real do País de Han, no centro da China, durante a fase final do Período dos Estados Combatentes. Na sua formação foi determinante a influência de Xun Zi um confucionista de grande relevo político à época. Para além deste mestre, a outra fonte para as suas teorias políticas foi, curiosamente, o “Dao De Jing” de Lao Zi, que Han Fei interpretava mais como um texto político do que como um guia místico, como pareceu ser prática subsequente e mesmo hodierna. Han Fei via o “Dao” como uma lei natural que todas as coisas e todos os homens estavam destinados a seguir. No entanto, o filósofo acabou por chegar a um pensamento em que o soberano era colocado no centro absoluto, controlando o Estado com a ajuda de três conceitos: poder (“shi”), técnica (“shu”) e as leis (“fa”). Este pensamento seria objecto de um radical refinamento ao longo da sua vida e obra.
Han Fei assistiu ao gradual, mas constante, declínio do Estado Han e, em diversas ocasiões, tentou persuadir o rei a seguir políticas diferentes, apesar do monarca nunca ter ouvido os seus conselhos (diz-se que Han Fei seria gago, o que se, por um lado, lhe dificultava a comunicação das ideias na corte, por outro, o terá levado a desenvolver aquele que ainda hoje é considerado como um dos mais brilhantes estilos escritos da China). Com um desespero crescente, via como os políticos do seu tempo eram levados pelos filósofos Ru (nome da escola confucionista) e pelos seguidores de Mo Zi (490-403 a.c. Filósofo de estatura equivalente à de Confúcio, que recusava a ordem aristocrática e preconizava uma certa noção de “Amor Universal”) que pregavam interminavelmente acerca das virtudes morais.
Para além desta influência, que considerava perniciosa em extremo, os estados da sua época estavam à mercê de bandos de cavaleiros mercenários que a cada passo escarneciam e agiam contra as leis, acrescentando à confusão da sociedade e dos regentes, como uma errante nuvem negra de anti-heróis pairando sobre todo um período histórico.
Por fim, as obras de Han Fei acabaram por chegar ao centro de poder do Estado de Qin, onde pontificava aquele que viria a ser o Primeiro Imperador (o imperador Huangdi). No entanto, na corte Qin o filósofo foi rapidamente vítima de uma teia de suspeitas relacionadas com a sua origem no país de Han e consequente incapacidade natural de servir a outro senhor. Este clima conspiratório acabaria por conduzir Han Fei ao suicídio.

O Legismo da Dinastia Qin

O ponto principal e básico de onde Confúcio e Mencius partiram assentava numa visão do homem como fundamentalmente bom. Cada ser humano nascia com “de” ou “virtude moral”. Curiosamente, um dos maiores confucionistas da antiguidade, e mestre de Han Fei, Xun Zi (298 -238 a.E.C.), acreditava exactamente no oposto: que todos os seres humanos nasciam fundamentalmente depravados, egoístas, gananciosos e cheios de luxúria. No entanto, esta não era uma visão inteiramente tenebrosa e pessimista da humanidade, pois Xun Zi acreditava, simultaneamente, que os homens poderiam ser tornados bons através da educação e da convivência social. O seu aluno Han Fei começou a pensar a partir do mesmo ponto, embora tenha chegado à conclusão de que os seres humanos são tornados bons pelas leis do Estado.
Para o filósofo, a única forma de contrariar o egoísmo humano e a sua depravação era através do estabelecimento de leis que recompensassem abundantemente as acções, que beneficiassem os outros (a comunidade, a sociedade; o próprio Estado, na figura do soberano) e punissem impiedosamente todas as acções que causassem mal aos outros ou ao Estado. Se, para Confúcio, o poder era algo para ser usado em benefício do povo, para Han Fei, o benefício do povo residia no controlo sem restrições do egoísmo individual.
Radical, Han Fei acrescentava que se não se puder confiar no próprio Imperador para se comportar à altura do interesse do seu povo, isto é, se se pode esperar egoísmo do próprio Imperador, é necessário que as leis tenham um carácter supremo acima mesmo do soberano. Idealmente, se as leis fossem suficientemente bem escritas e aplicadas com agressividade, não existiria necessidade sequer de liderança individual, pois as leis seriam só por si suficientes para governar o Estado. Mais um aspecto em directa oposição ao idealismo confucionista de uma condição social humana em que as leis não seriam necessárias.
Quando os Qin ganharam poder imperial ao cabo de décadas de guerra civil, adoptaram as ideias dos Legistas como a sua teoria política. Na prática isto significou apenas uma nova forma de totalitarismo uniforme. As pessoas eram obrigadas a trabalhar por períodos indefinidos em projectos do Estado, um dos quais foi a construção de secções de muralhas defensivas, parte da Grande Muralha. Todos os tipos de discórdia com o governo passaram a ser objecto de pena capital. Todos os modos de pensamento alternativo, que os Legistas entendiam como encorajando a tendência natural de fraccionamento da humanidade, foram banidos. Estas políticas acabariam por causar a queda da própria Dinastia Qin ao cabo de apenas catorze anos no poder. As revoltas locais não encontraram resistência por parte dos oficiais do governo, que temiam que os próprios relatórios sobre essas revoltas pudessem ser considerados como críticas ao governo e assim resultassem na sua própria execução. A corte só descobriu estes levantamentos quando era já demasiado tarde e, em termos gerais, os Qin caíram em descrédito por mais de dois milénios.
Apesar de tudo isto, não é de facto simples desacreditar o Legismo como apenas um curto, anómalo e desagradável período de totalitarismo na história da China. Os Legistas estabeleceram formas de governo que influenciariam profundamente o futuro. Em primeiro lugar, adoptaram e colocaram em prática o idealismo de Mo Zi acerca do utilitarismo: as únicas ocupações a que o povo se devia dedicar deveriam ser aquelas que beneficiassem materialmente os outros, em particular a agricultura. A maioria das leis dos Qin foram tentativas de demover as pessoas de certas actividades inúteis tais como as Letras e a Filosofia. Este utilitarismo haveria de sobreviver como uma das correntes mais dinâmicas da teoria política chinesa.
Em segundo lugar, os Legalistas inventaram aquilo a que podemos chamar “o primado da lei”, ou seja, a noção de que a lei é superior a cada indivíduo, incluindo governantes. É a lei que deve governar e não os indivíduos, cuja autoridade se limita à administração da lei.
Em terceiro lugar, os Legistas aplicaram, quase como conclusão lógica, uma padronização uniforme da lei e da cultura. De modo a ser eficaz, a lei deve ser aplicada com uniformidade, ninguém deve ser punido mais ou menos severamente por causa do seu estatuto social. Esta noção de igualdade perante a lei permaneceria, com algumas alterações (nomeadamente na questão religiosa, levantada sobretudo com o advento do budismo organizado na China), um conceito central nas teorias chinesas de governo.
Na sua busca de uniformização, os Qin levaram a cabo um projecto de padronização da cultura chinesa abarcando o sistema de escrita, o sistema monetário, os pesos e medidas, e os sistemas filosóficos (o que conseguiram sobretudo através da destruição de escolas de pensamento rivais). Tudo isto afectou profundamente a coerência da cultura chinesa e a centralização do governo. A dinastia que lhes sucedeu, a dos Han (202 a.E.C. – 9 a.E.C.), continuou esta tentativa de fusão de escolas rivais num processo conhecido por Síntese Han.

16 Nov 2022