Miguel de Senna Fernandes h | Artes, Letras e IdeiasBetsy, no último dia da sua vida [dropcap]M[/dropcap]eticulosamente, o seu pincel deslizava sobre a borda da sua pálpebra esquerda. Aquele tom preto reluzente dava-lhe finalmente a satisfação que já não conhecia havia algum tempo, depois de tanto vasculhar por todas as casas de cosméticos do burgo. Agora sim, os seus olhos destacavam-se claramente. Como ele gostava deles. Mirou-se ao espelho. A sua nudez denunciava a leveza do seu corpo delgado, de pele alva amarfinada, de seios pequenos, braços esguios, dedos de fada, sobre pés de menina. Dava graças ao Divino que a aspereza da sua vida fora benevolente ao seu corpo elegante, que não carecia de veste alguma para se enaltecer. Nessa última noite da sua vida, Betsy preparava-se religiosamente para o evento mais importante da sua existência. Dera tantas voltas e finalmente chegara o momento que tanto sonhara. Iria ser a noite. A maquilhagem, o cheong-sam (1), as unhas de rubro escuro, de comprimento conservador, o penteado clássico a Audrey Hepburn, os saltos, tudo previsto até ao pormenor. À medida que a escovinha de rimmel levantava as pestanas, o coração batia a um ritmo que não conhecia, como se vivesse dentro de um corpo alheio. Uma ponta de saliva crescia no canto dos seus lábios por pintar. Lábios de malabarismos que tanto prazer lhe dera. Sorriu, quando se lembrara da noite duas semanas volvidas, em que Terrence lhe dissera que era altura de a apresentar à sua mãe. Nessa noite, ele saiu da sua casa às duas da manhã, mas ela não dormiu. A adrenalina atingia níveis pouco usuais, o seu coração pulsava a ritmo mais forte. Uma nova prova se avizinhava. Recordara que no passado, por duas vezes tivera a experiência da noite decisiva. Dois homens que supostamente iriam pôr fim à sua vida sub-canina e sem sentido, não lograram cumprir o desiderato. Ricky empresário de sucesso de Hong Kong, viúvo de sessenta e dois anos e sem filhos, depois de lhe ter oferecido um anel de diamante, morre de ataque cardíaco no momento em que lhe iria pedir a mão. Seguiu-se Jason que se arrogava de dono de uma sala VIP de um casino, que lhe levara a viajar pela Europa fora, a alojara em hotéis estrelados e a deliciou em restaurantes michelânicos. O casório teria acontecido se ele não tivesse que se pôr em debandada. Soube-se depois que afinal era mero “bate-fichas” e surripiara dinheiro do seu patrão, um sujeito que fazia tão bem as contas, quanto resolvia os problemas de desvios a tiro e facada. E antes de se ir embora “por tempo que ele próprio não sabia quanto”, pediu-lhe o anel de diamante, para comprar o seu bilhete de avião. Por duas vezes tivera de regressar à realidade depois de sonhar alto, por uma vida condigna, de civilidade, sem problemas de renda, cheiros hediondos de dejectos no corredor do seu prédio, gente sub-humana, camafeus, agiotas e pregos. Por duas vezes chorara pela sua sina de calvário e se revoltara contra a injustiça do Divino que recaíra sobre ela, pobre rapariga de quase trinta anos que apenas suspirava por um lugar ao sol. Betsy nascera Pek Si. Os pais, oriundos de uma aldeia nos limítrofes de Foshan, Província de Cantão, entraram em Macau clandestinamente, onde se estabeleceram no “bairro de lata” então ainda existente na zona norte da cidade. Ele conseguiu um emprego na construção civil, transportando tijolos e ela como lava-loiças de vários estabelecimentos de comidas da zona. Já nessa altura os ilegais estavam sob controlo apertado das autoridades policiais. Era usual verem os seus vizinhos serem caçados e recambiados para lá das Portas do Cerco. Mas, sem drama algum, pois ao cabo de um mês acabariam por se re-introduzirem em Macau de uma ou doutra forma. Ele não teve tanta sorte, porém, quando o mal se abatera sobre si num dia em que ele trepava pela estrutura de bambu, transportando os usuais quilos de tijolo acima. O assalto de pânico não distinguia vítimas e ele descontrolou-se, caindo do segundo piso. Não morreu, mas de maca saía escoltado de Macau, para nunca mais poder regressar. Pek Si, não frequentou a escola como as crianças normais de Macau, não envergou uniformes limpos passados a ferro, nem teve mãe para lhe fazer festinhas. Conheceu quatro paredes num cubículo de lata, onde se penduravam também utensílios vários, desde tesouras, panos de limpeza e canecas de lata para água e escovas de dentes. O papel de jornal era a coisa melhor que se podia ter, pois servia de tapa-buracos, toalha de mesa, limpa-vidros e reforço de cobertor em tempos de frio húmido e implacável do Inverno. O odor a almíscar, mesclado com o de gengibre e peixe da noite anterior, o ar quente que não circulava, era assim na cela que se chamava casa. De nada lhe valeu a “Operação Dragão” (2) em 1990, destinada a reconhecer os imigrantes ilegais que o Governo de Macau na altura levara a cabo. Apesar de ter conseguido obter um documento de identificação, de ser já gente, as condições de vida não alteraram. A mãe continuou a lavar loiça e ela crescendo em paredes meias com a qualidade de vida, com a qual nunca comungara e sempre a fugir-lhe a meros centímetros de distância. Dinheiro passou a ser uma razão de ser, porventura a mais importante. Não compra a felicidade, estava enjoada de ouvir, mas era fundamental para a atingir. Preferiria estar doente sendo rica, a sadia sendo pindérica. É deprimente ser pobre, chorava para os botões. Teria que dar um salto para um mundo fora do de Pek Si. De se chamar outra coisa. Betsy foi o que ouvira numa noite de devaneio, quando um bife a chamara no meio de copos, piropos e apalpadelas. Nunca mais respondera a quem pronunciasse o seu nome de origem. Deixou crescer o seu cabelo para além dos ombros, passou a usar roupa mais ajustada e saltos altos. Os seios eram pequenos, mas sabia como compensá-los com a flexibilidade das suas ancas. Aos dezasseis anos virou boneca da noite. Viu muito homem, na maioria estafermos e cretinos. Só com Ricky Lam e Jason Chiu, pôde experimentar o que era uma vida de gente, de ser servida com amabilidades e deferências. Limpeza. Sofreu muito quando a sorte lhe fora travada por duas vezes a milímetros do seu alcance. Entrou em estado de luto por uma semana, e quando acordou ao sétimo dia, olhou para o sol, apontou-lhe o dedo e bradou: “Ainda não acabou!” De facto não seria assim que previra o seu fim. Por duas vezes a hora lhe fintara, para descobrir que afinal ainda não chegara. Esboçou um sorriso, ajeitou os seus sedosos cabelos lisos, arrebitou os seios e, meneando as suas ancas experientes, caminhou para a frente em antecipado desafio à sorte ainda por vir. E conheceu Terrence. Com trinta e três, era filho único de uma família distinta de Macau e Hong Kong. Aluno de Harvard, com brilhante mestrado em gestão de empresas, fino nos modos, voz mansa e de trato fácil. Houve uma altura em que até se sentia inferiorizada a seu lado, porque achava não ter a sua categoria e que só lhe faria figura triste. Mas, docilmente ele aplacava os seus temores e lhe dizia que não se importunasse com questões falsas. Foi num caraóque com amigos, aos quais se juntaram outros amigos, reunindo-se todos numa única sala de canto. Ele destacava-se, não por falar muito ou de ser o engraçado da turma, mas pela simplicidade de um homem que atraía respeito. Não cantaram. Falaram é muito no meio da barulheira e da desafinação descarada dos comparsas. E continuaram a falar depois sentados à beira do mural da Meia Laranja, cada um com a sua lata de cerveja, sobre tudo o que trivialmente vinha à cabeça. As horas batiam três, ele levou-a de carro até a casa. Aí pôde ver que não era um bora-botas. O automóvel era lindo, a cheirar cabedal novo. Nunca esteve num Bentley, mas sabia que era muito mais distinto que um Mercedes ou BMW. Pela primeira vez não esperou que ele subisse. O seu trato era tão reconfortante que preferiu voltar a vê-lo no dia seguinte. E mais dias seguintes vieram. Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente. Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno. Enquanto os outros dois apenas a conheciam na cama, este dava-lhe chão para caminhar. Pela primeira vez, também, sentira que havia algo tão importante como o dinheiro. E quando dera por isto, já ela o amava perdidamente. Não frequentaram restaurantes requintados. Ela preferia levá-lo a conhecer a comida de rua, sentados em banquinhos no passeio partilhando o pote de carneiro cozido servido com fu-ü (3), nas noites gélidas do Inverno. Mas nessa noite, a última da sua vida, iria passar pelo teste da sua existência. Ela sabia que não seriam favas contadas, não se casaria com Terrence sem mais nem menos. Toda a sua vida foi construída de provações e era mais uma por onde passaria. Malgrado, não sabia que era a mais importante. Iria encontrar-se com a pessoa de uma importância gigante para Terrence. A mãe era uma mulher de maneiras aprumadas, com “postura imperial” como alguns conhecidos seus diziam. Naturalmente graciosa, Mabel fazia questão em se vestir bem. Mesmo nas situações mais triviais ela escolheria roupa que, sem destoar a informalidade da ocasião, evidenciaria a elegância que encarnava. Todas as semanas estaria no seu cabeleireiro, para manter o seu penteado enformado. Não era muito conversadora, mas o sorriso era garantido para todos com quem se relacionava. De estatura média, delgada de pele muito clara e lisa, aos sessenta, as suas faces mantinham o rosado jovem, duma senhora delicada, à qual os anos passaram à ilharga. Uma ou outra ruga, no canto dos seus olhos, não alteravam a jovialidade da sua aparência. Continuava “bela como nos tempos de ouro”, como suspiravam nostálgicos os cavalheiros que a conheceram jovem. Apreciava a serenidade nas pessoas e o sentido de oportunidade de cada um. “Sem nos trairmos, somos todos circunstanciais”, dizia amiúde. Uma mulher de personalidade ferro, que nunca precisou de levantar a voz, Mabel tinha um jeito sedutor de manifestar a sua autoridade e desagrado, e atingia o alvo com pontaria de alfinete, mantendo intacta a sua calma e timbre. Haveria que saber interpretar as suas pausas descompassadas, acompanhadas do seu olhar fixo e enigmático sorriso. Não se abria com facilidade, mas Terrence lembrava-se de tantas ocasiões, mesmo já homem feito, em que se deleitava nos braços da mãe que lhe fazia festinhas na testa, cantarolando-lhe “Yeh Loi Heong…Yeh Loi Heong” (4) uma melodia de Xangai que aprendera em miúda, ao som do piano na telefonia. Betsy ouviu tudo isso como uma criança diante de um conto de embalar e apaixonou-se por essa figura que por sinal também lhe será importante um dia. Dias a fio, tomou notas e memorizou tudo o que era preciso saber sobre Mabel. Até, sem querer, já ensaiava poses de elegância, tentando reproduzir a sua mulher de referência. Nessa derradeira noite da sua vida, estava pronta. Olhou para o espelho e pôde constatar a sua postura de classe com que ela vestira. Tudo ao pormenor estudado com dias de antecedência. Não era ela, mas gostou do que vira e a vontade de ser o que estava diante dos seus olhos crescia. Suspirou, tinha que ter calma. O seu coração ribombava. Terrence segurou-lhe a mão, mas ela recusou. Ainda não era altura. Mabel conversava com o gerente do restaurante, sorvendo o seu chá. Estava de cheong sam verde com tons de jade. Seus olhos abriram-se ante o deslumbramento que Betsy lhe causara, percorreram por todos os cantos da sua aparência. Terrence encontrara uma modelo, dizia para si. Os gestos da Betsy eram brandos e pausados, sem pressa alguma. Evitou gesticular em demasia as suas mãos, mas apenas o necessário para realçar essa ou aquela ideia. Ombros sempre rectos acompanhando a sinuosidade do seu dorso. Tinha iniciativa de conversa, mas sempre a propósito dos comentários que Terrence fazia. Betsy estava tão à-vontade que se até se esquecera de que estava sob escrutínio. O olhar de Mabel brilhava a todos os detalhes que ela lhe dava. Terrence estava feliz, ao presenciar a intensidade da interacção entre estas duas mulheres mais importantes da sua vida. O jantar decorreu conforme o previsto, sem falhas. Cumprira com mestria tudo o que foi combinado. A mãe, todo o tempo muito cordial, mas reservada. Sempre preferiu ouvir a falar. De olho atento, o seu sorriso era doce e meigo, os seus gestos limitavam-se ao mínimo como um menear da cabeça, um franzir da testa, um trejeito leve dos seus lábios, em reacção deste ou daquele comentário que se fazia ao longo da conversa amena da noite. “Estou muito feliz por ter esta oportunidade de a conhecer. O Terrence fala-me tanto de si e consigo agora perceber a razão por que ele tem a grande admiração pela senhora.” Betsy ensaiou com timidez um cumprimento. “Terrence conhece muito bem a sua mãe”. Riram-se todos, e Terrence aproveitou a boa disposição e pousou a sua palma sobre a mão débil de Betsy. “Conhece tão bem, que sabe do que gosto. Cresceu atencioso para as coisas da mãe até ao ínfimo pormenor. Coitado dele, pelos inúmeros sermões que aturou de mim.” Mais uma ronda de risada e a noite prometia. Betsy ria de coração, agora liberta de tensão. Via em Mabel a dignidade de uma mulher simples e afável. Era isso que ela gostaria de ser. “Há alguma coisa que ele não saiba de si?” aventurou-se Betsy, apoiada agora do sorriso confiante de Terrence. Mabel sorriu para o vácuo. De repente, tudo parou, nem música de fundo se ouvia. “Claro.” Pausou e depois prosseguiu. “Não sabe que a sua mãe também pode ter várias faces, fruto de muitas vidas que teve. Não sabe que a sua mãe vê o que anda a tramar e a combinar com outros para lhe agradar. Oh, como amo o meu filho, que quer sempre a sua mãe feliz. Só que muitas vezes isso tem um preço, que é o de estar preso por algo que afinal não é bom para si. Eu, como mãe, naturalmente sofrerei.” “Não entendo o que está a dizer” sorriu Betsy ainda na onda da boa disposição reinante. “Entendes sim, e muito. Tens uma escola de invejar, fizeste tudo com fina arte. Mas falhaste num pormenor. Foste perfeita demais.” “Mãe… o que se passa?!”. Mabel ignorou o filho e fixou-se em Betsy. “Estudaste muito bem a lição e deste todos os passos até ao ínfimo pormenor. É a tua experiência da vida que falta a muita gente. Confesso que gostei do teu profissionalismo, fizeste tudo do agrado de qualquer pessoa. Mas, menina … não é assim que se conquista. O meu filho não é um troféu e eu não sou parva.” “Mas … Deve haver um equívoco. Que mal fiz eu?” . Estava atónita. Mabel retorquiu com um sorriso. Não deixava dúvida de que algo de mal se seguia. “Escolheste vestir a roupa que não é tua. Foste tudo menos tu própria. Não tenho tempo para estas coisas. Se queres roubar, é na rua e não na minha cara. Betsy, volta para casa e aprende melhor a lição. Tiveste a sorte de o Terrence ser meigo e inexperiente. Mas o azar teu é teres de enfrentar uma mãe-galinha como eu. Levantou-se. “O jantar foi bom e a companhia agradável. Mas, não desejo repeti-lo. Terrence telefona ao Ah-Seng para vir buscar-me”. Saiu do restaurante. Terrence largou logo a mão de Betsy. Era visível a sua aflição perante a situação com que não contava. Doía-lhe presenciar a rejeição da mãe. Nunca lhe tinha acontecido isso. “Peço desculpa, isto não devia acontecer. Volto daqui a pouco, juro!” E desapareceu. Ainda ficou por mais dez minutos. Sem fala. Por fim, saiu do restaurante, sem saber se Terrence voltara como prometera. Que importava mais, se estava tudo dito? Nunca ligou para essas coisas do destino, mas começara por acreditar que era esse o seu. Não estava com raiva, o seu coração até palpitava normalmente. Sentiu era o vazio que sugava para si a sua existência, a sua razão de ser. O vazio que vinha da desilusão, da fraqueza de Terrence perante o seu próprio destino. Da sua condição de dependência dessa rocha que ela pensava que fosse. Ele foi a primeira pessoa por quem lutaria mesmo que fosse pobre. Respirava tenuemente enquanto caminhava pelas ruas húmidas, ante olhares de curiosos ou de indiferentes. Na Meia Laranja, tirou os saltos e lançou-os para longe. Não tinha forças para gritar como gostaria. Mas não havia mais nada por que gritar, nem revolta, nem nojo de si. Recordou as palavras de Mabel e concordara com elas: andou a cobrir-se com a roupa dos outros, como andou sobre saltos dos outros. Nada sobre o seu corpo era dela. Ela própria era um enfeite para o deleite de olhos alheios. Lançou os brincos para o lago. Queria fazer o mesmo com o seu penteado, com as suas unhas, com a sua maquilhagem. Surpreendeu-se quando deu por si a chorar, não de tristeza, mas de desespero de quem se quer livrar dum emplastro agarrado ao corpo. Betsy era uma invenção, uma via que se transformou num beco. Toda a sua vida fora uma miragem sem contornos. Não podia continuar a viver, porque nunca devia ter nascido. E essa fora a última noite da boneca que vestira tudo para estar junto à vitrina E prosseguiu a sua caminhada, mergulhando-se no escuro da madrugada. No dia seguinte, transeuntes encontraram um cheong sam, uma pulseira, no mural enquanto pousavam uns saltos, um aqui outro acolá, sobre as rochas existentes no lago. Ninguém soube decifrar esse enigma, nem tão pouco dizer quem os usara. Quem se importaria? Nunca mais se ouvira falar de Betsy. Onze meses passaram. Os seus dedos continuavam delicados e lindos, assim como as unhas, agora mais curtas e sem verniz. Pressionavam os botões da caixa de registo das compras que se sucediam peça por peça, ante o olhar enfadado e impaciente dos clientes enfileirados. Com o seu cabelo negro segurado dentro dum boné, ela executava a tarefa maquinalmente, sem pestanejar, sem abrandar ritmo. Apenas falava quando lhe perguntavam algo ou quando tinha de usar o intercomunicador. Quem a conheceu não mais a reconheceria, se não fossem os seus olhos grandes e despertos que continuavam a irradiar algo excitante, apesar da nova vida radicalmente oposta à que levara. As faces apresentavam agora um rosado sobre as maçãs. Sem qualquer pintura, os olhos eram mais meigos, que espelhavam vulnerabilidade, mas sempre determinantes. Os seus lábios ganharam mais escarlate e destacavam-se nesse seu novo semblante, mesmo sem batom. De ganga e sapatilhas era esse o seu visual diário com que um novo universo de gente a identificava. E “Ah Pek”, o seu nome de guerra. No seu íntimo, resignara-se de que a tal hora sua não chegará jamais, pois afinal nunca teria sido sua. Malgrado, de modo algum aceitaria sair de Macau de maca. Aqui passou a ser a sua terra. “Pek Si!”, o chamamento quebrou-lhe o fio do pensamento. Não era de homem que a conhecia, ademais, ninguém se lhe referiria nesse nome. Quis ignorar, mas traiu-a a sua cabeça quando lentamente girou para reconhecer a origem. E ficou tensa. A fila do seu balcão não parava de crescer e a pessoa não parava de a olhar. Não teve outra solução que chamar a sua colega para a substituir por um momento, para poder atendê-la. O silêncio manteve-se durante alguns segundos. “Custou-me a encontrar-te, mas há meses que soube onde trabalhavas. Não vim antes, quis observar mais.” Pek Si manteve-se muda, atenta ao que se lhe seguiria. Já se tinha habituado a isso, esse tempo todo. “Terrence não sabe que estou aqui. Aliás, há muito que não falamos. Peço apenas que me escutes até o fim. Prometo que não me verás nunca mais”. Concordou. Mabel não quis olhá-la quando principiou. “A minha vida nem sempre foi de sol. Conheci bem o cheiro da rua, pois vim de lá. Isso, também o Terrence não sabe.” Pek Si de olhos fixos, não esperava isso dela. “Sei o que é fome e das manhas que temos de engendrar para sacar mais. Sei da memória que temos de conservar boa para mantermos a peta para o dia de amanhã e outros mais que lhe seguirão” sorriu. “Gastamos o tempo a escolher a nossa roupa, para nos despirmos num ápice, porque ele está com pressa. Fazemos o beicinho no momento certo e fingimos tão bem o prazer que eles nos dão. Bem sabendo que na cama ninguém nos vence, temos de saber ser frágeis e estar à mercê. No entanto, ninguém tem culpa da nossa condição, a escolha foi nossa. Tive sorte porque consegui uma passagem para a ribalta. Não sei se amei o pai do Terrence, nem sei se devia ter-lhe agradecido por aquilo que me deu, mas eu fiz o meu trabalho e ele compensou-me. Fui uma mulher à altura dele ou pelo menos como ele esperava de mim. Deixei intacta a dignidade da sua família, mesmo depois da sua morte. Fi-lo sentir-se marido honrado, apesar das fragilidades que também teve. Podia sentir-me realizada. Todavia, o que me perturba, é que não devia viver disso, da mentira. Embora me seja tão difícil largar mão daquilo que me custou a vida a conseguir, o meu começo estava errado. Com Terrence, pude novamente escolher. E assim, dei-lhe o que de melhor soube dar. Decência e razoabilidade. Não iria alimentar mais um estafermo, pois estafermos fazem nascer mulheres como nós, que criamos outros estafermos. É um ciclo vicioso, sabes? Quis fazer dele um homem. E um homem não deve querer mulheres como nós. Todavia, o amor não tem razão. Ele venda-nos os olhos e nos atira para o abismo abaixo. Como ele te adora. A sua apatia perante tudo não me deixa dúvidas. Quando eu te vi, julgava saber com quem estava a lidar. Achei-te artista que não me iludirias. É que somos da mesma gente, menina, exalamos rua. Não queria que ele sofresse com a mentira dos outros. Estava tão certa de que irias destruí-lo. É coisa de mãe, Pek Si. E os filhos são a nossa fraqueza. Mas, o tempo tem destas coisas, contraria as nossas certezas. Ele deu-me a conhecer que o meu filho terá de sofrer por si, pela escolha que fizer. Ele quis amar-te. E o tempo também me disse que estava errada a teu respeito. Escolheste sem troco romper com o passado e renasceste. Isto é garra que muita mulher não tem. A minha foi-se-me, depois de tantas decisões desacertadas que achei correctas. Um dia serás mãe e verás …” “Um dia serei como você, minha senhora”. Pek Si interrompera sem a desafiar, embora não tinha nada mais a perder em se sentir à altura de Mabel. “Lutarei para poder escolher. E os meus filhos conhecerão o preço da dignidade. Porém, sem as minhas garras. Eles terão que escolher por si. Enterrei Betsy, mas não me envergonho dela. Faz parte de mim, foi a minha vida e aprendi a viver com ela.” Mabel assentiu. “Obrigado. Morrerei infeliz se não pudesse dizer isso tudo. Não te vou maçar nunca mais.” Olhou fixamente nos olhos de menina de Pek Si e afagou-lhe o ombro. “Que linda que estás. Como o Terrence gostaria de voltar a ver-te. Eu também.” Não respondeu logo. Mas os mesmos olhos comprimiram ao esboçar um sorriso, como há muito não fazia. De facto, o seu semblante desnudado de qualquer maquilhagem, faziam-na mais bela. Mais ela. “Vou pensar”. “Acho uma bela escolha.” Sorriu também Mabel antes de entrar no automóvel que estava à sua espera. (1) Cabaia chinesa. (2) Operação do Governo de Macau, em Março de 1990. destinada inicialmente a resolver o problema de pais indocumentados de cerca de 4000 crianças e que resultou em verdadeira amnistia a todos que se apresentassem a registo. (3) 腐乳 tofu fermentado e depois embebido numa solução de sal, vinho de arroz, vinagre, com uma mistura de malagueta picada. Servido em cubos, é um condimento muito apreciado em pratos fortes de inverno, como carneiro cozido. (4) Ye Lai Xiang (夜來香), o jasmim da noite. Título de uma canção chinesa muito em voga dos anos quarenta do século passado, metáfora que exprime a saudade por um amor perdido.