Radical USA ou No Future 2016?

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s teorias de supremacia racial – que como se sabe também se baseiam em dados estéticos e antropométricos – que têm aparecido associadas a Donald Trump são de um bizarrismo absoluto se nos decidirmos a julgar a beleza dos focinhos e o fulgor de inteligência que salta pelos olhos do próprio Trump, de Steve Bannon – o seu escolhido para White House Chief Strategist e conhecido extremista de direita, das três autarcas que chamaram “macaca” a Michelle Obama após cuidadoso exame à sua aparência e agora de Richard Spencer – líder do movimento neonazi americano – que apesar de um corte de cabelo de estética alemã dos anos 30 não esconde o sebo físico e mental.

Quanto aos primeiros peço desculpa por dizer isto mas por favor comprem um espelho antes de abrir a boca. Quanto a Spencer tudo isto é grave. Muitíssimo grave. As recentes imagens da conferência onde utilizou o termo “Hail Victory” e onde várias pessoas na audiência se exultaram com saudações nazis são, no mínimo, preocupantes. No radicalismo do seu discurso questiona-se se os opositores de Trump são pessoas – “Indeed, one wonders if those people are people at all”, exige que se viva no mundo que imagina – “We are the dreamers of the day, those who do not want our vision or even our fantasies to be escapes from reality. We want them to be the reality… We demand to live in the world we imagine”, faz a retórica do branco vitimizado (eu sei apetece dizer WTF) – “a white who takes pride in his ancestors’ accomplishments is evil, but a white who refuses to accept guilt for his ancestors’ sins is also evil”, prossegue em exprimir ódio por judeus ricos – “a wealthy Jewish celebrity bragging about the end of white men”, ataca a cor racial e considera que os esquerdistas são comunistas até confirmar o pior – “America was until this past generation, a white country, designed for ourselves and our posterity. It is our creation, it is our inheritance, and it belongs to us… They need us, and not the other way around… We are, uniquely, at the center of history… No one mourns the great crimes commited against us. For us, it is conquer and die… We were not meant to beg for moral validation from some of the most despicable creatures to pollutte the soil of this planet. We were meant to overcome, overcome all of it”, e acaba com – “Hail Trump. Hail our people. Hail Victory.”

O aparecimento desta eloquência de teor nazi, em discurso público, nos Estados Unidos junto com o crescimento da extrema direita numa Europa complexa apenas confirma que o mundo onde a intransigência é questionada, em que muitos de nós acreditamos e considerarmos como certo, está em perigo iminente. O New York Times publicou, à uns meses e antes do Brexit, um gráfico sobre o crescimento da extrema direita na Europa onde era possível de ver que os únicos dois países da Europa sem extrema direita reflectida em votos são Portugal e Espanha e que o país que se segue com o número mínimo é a Alemanha. Nesse mesmo gráfico pode-se também ver como Hungria a Áustria lideram uma tendência inquietante. Se Le Pen vencer as eleições francesas no inicio do próximo ano será mais uma afirmação dessa tendência e passaremos a olhar para o quinteto do conselho de segurança das nações unidas como a afirmação da manipulação de massas através de uma oratória de prepotência e conservadorismo do poder. Se Le Pen ganhar junta-se a Trump, Putin, Xi Jinping e Theresa May e neste momento torna-se essencial que, aquilo que muitos pensamos nunca vir a defender aconteça que é a continuação de Angela Merkel à frente da política alemã.

Para que o mundo possa manter alguma sanidade tem que haver tolerância, independentemente de opiniões políticas diferentes, religião, raça e género. Um mundo regido por déspotas é um mundo perigoso. Uma América onde alguém como Spencer aparece é uma América muito perigosa. Temos todos que fazer uma breve revisão da história e de alguns crimes contra a humanidade: A colonização de todo o restante mundo pelos europeus, durante séculos consecutivos, e sem números concretos de mortos (200 milhões?) ; Toda a escravatura no mundo inteiro sem números concretos de mortos (200 milhões?); A colonização da América pelos europeus com mais de 100 milhões de mortos; O “Grande Salto em Frente” de Mao Zedong com 45 milhões de mortos em quatro anos e mais uns calculados 33 milhões de mortos durante o resto da sua permanência à frente da China; O Holocausto com 17 milhões de mortos mais todos os outros horrores do nazismo de Hitler e calculados 65 milhões de mortos pela segunda guerra mundial; O genocídio de Holodomor com 7,5 milhões de mortos mais os restantes calculados 50 milhões de mortos do regime de Estaline; Gengis Khan com as suas conquistas pela força e calculados 40 milhões de mortos (10% da população mundial no seu tempo); A acção britânica na índia com calculados 27 milhões de mortos; A queda da dinastia Ming com 25 milhões de mortos; A rebelião Taiping na China com 20 milhões de mortos; O Império Romano e a sua queda com pelo menos 7 milhões de mortos; As invasões de Napoleão com calculados 4 milhões de mortos; A guerra do Vietnam com mais de 4 milhões de mortos; A guerra civil da Nigéria com pelo menos 3 milhões de mortos; O genocídio do Camboja com pelo menos 2,5 milhões de mortos; As bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki; Aleppo…

O infindável número de atrocidades onde a mesma retórica de Spencer da conquista, do nacionalismo, da imposição política ou da superioridade racial resultou em crimes horrendos contra a humanidade – os quais não nos podemos esquecer – foi aplicada, não é um bom prenúncio. Um ser humano é um ser humano com os mesmos direitos que todos os outros seres humanos. Não há melhor nem pior. A Europa não é a origem do mundo. Não há raças superiores. Não há religiões superiores. Os homens não são superiores às mulheres. As pessoas com escolhas sexuais diferentes não são pessoas doentes e etc… Este é o ano 2016 e não é 1949, 1933, 1928, 1206, 1769, 1635, 1850 e etc… Há-que entender isto.

24 Nov 2016

Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xiste uma diferença substancial entre culpa e vergonha. Existe uma diferença substancial entre sentirmo-nos culpados de algo e sentirmo-nos com vergonha de algo. Para nos sentirmos culpados não precisamos necessariamente de sentir vergonha e para termos vergonha não precisamos necessariamente de ser culpados. É exactamente aquilo que parece se passar com o caso da demissão de Marco Muller da direcção do Festival internacional de Cinema. O culpado não tem vergonha de como se porta, e nós, pessoas da cultura de Macau, sentimos vergonha. Sentimos vergonha que Macau protagonize continuadamente o desrespeito por qualquer ideia de dignidade para com quem trabalha e dá o melhor de si pela evolução da cultura em Macau. O pior de tudo é que olhamos para o que aconteceu sem surpresa, ora porque somos – também nós programadores e artistas locais repetidamente tratados de forma semelhante, ora porque o vimos acontecer vezes sem conta em relação a tudo.

A oligarquia muito específica de Macau e à qual eu me referia no texto da semana passada antes de passar à situação dos Estados Unidos está, em Macau, sempre descaradamente em prática e quem tiver o assombro de a desafiar sofre com isso. E sofre porque quem beneficia desse estado oligárquico tudo faz para destruir ou apagar quem tem o arrojo de questionar o establishment da cidade.

Repugnância existe mais ou menos em oposição a atracção. Isto para dizer que se o Festival Internacional de Cinema era atraente por ter uma figura de tanta importância na sua direcção torna-se agora repugnante pelo modo como se trata essa pessoa. E este sentimento de repulsa associa-se ao da vergonha quando se pensa no modo como uma determinada associação (MFTPA – Macau Film and Television Production Association) se acha no direito de interferir, manipular, abusar, e ultrapassar as decisões de quem foi contratado para dirigir o festival. Vergonha pelo modo como Macau mais uma vez falha e se maltrata pelo modo como trata uma pessoa com tanta qualidade e que tantos benefícios poderia trazer à cultura de Macau. Vergonha pelo desrespeito para com a pessoa e por não se mostrar ter um pingo de carácter no processo avançando para tribunal em vez de tecer um agradecimento pelo trabalho feito agindo de forma adulta independentemente da diferença de opiniões.

As pessoas que, num processo como este, avançam para tribunal não merecem ser chamadas profissionais. São pessoas que mostram não ter maturidade nem classe para fazer aquilo que estão a fazer. As pessoas que fazem este tipo de coisas são exemplos do vírus continuado do amadorismo existente debaixo da capa do talento local onde apenas se enriquecem a si e que em nada beneficiam a sociedade. Estas pessoas não têm lugar em organizações de eventos culturais. Estas pessoas não respeitam o outro. A estas pessoas não pode ser conferido poder numa área tão importante como a cultura.

Agora voltamos aquilo que conhecemos. Voltamos àquele estado umbilical onde somos olhados de fora com desconfiança e até desprezo por aquilo que representamos. E é esta a santa sina de quem faz cultura em Macau. Para poder ambicionar a ser-se minimamente reconhecido fora de Macau tem-se que: ou dizer que não se é de Macau, para não levar logo com a etiqueta do jogo, do mau ou muito mau, e para evitar aqueles sorrisos condescendentes de quem se controla para não rir directamente na cara; ou tem-se que, através de um trabalho de excelência, conseguir ultrapassar o estigma local do benefício de uns em detrimento da qualidade – prática que durante décadas tem prejudicado a sociedade. Poucos conseguem ser reconhecidos fora de portas e os que conseguem quando voltam à terrinha voltam a ser tratados da mesma forma porque são uma ameaça para quem beneficia financeiramente com todo o circo oligárquico, numa pantominice que exaspera qualquer pessoa séria. A cidade do entretenimento, onde se confundem todos os valores da ética e onde se força a verdadeira cultura e arte a definhar, é nesse sentido uma vergonha.

Macau não está 50 ou 100 anos atrasado culturalmente. Macau simplesmente não existe. E não são patos gigantes, paradas ou carrinhos de choque que a colocam no mapa. Macau não existe porque não quer existir. Porque se quisesse existir percebia que há artistas e programadores de Macau com desempenhos elevados ao nível do discurso contemporâneo, que se tornam internacionais devido ao seu talento, que são apreciados e reconhecidos em festivais, prémios prestigiantes, bienais e Museus no ocidente, na  ásia e no continente, e que em Macau são tratados da mesma forma que se tratam diletantes ou estudantes do secundário. Macau não existe porque há já muito tempo que deveria ter percebido que num mundo global os directores de Museus e festivais são pessoas com cartas dadas na área e não funcionários públicos. Macau não existe porque não respeita uma lenda do cinema mundial e ao não a respeitar não se respeita a si própria.

Para terminar há-que recordar que o mesmo grupo económico que está ligado à MFTPA está também ligado à estranha saída do coordenador do Grande Prémio de F3, que estava no lugar desde 1983, a cerca de dois meses do evento. O mesmo grupo económico que gere os fundos de 55 milhões para o Festival Internacional de Cinema dos quais 20 são das finanças públicas. Coincidência ou piadas de mau gosto que custam muito dinheiro? A cultura em Macau é um cálice que antes de ficar cheio se estilhaça pelo ar. Macau é o perfeito exemplo da Lei de Murphy: “Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal”.

17 Nov 2016

A recompensa da ignorância

[dropcap style≠’circkle’]N[/dropcap]ão! Nada disto faz sentido! Não faz sentido que continuemos à espera que as coisas se resolvam com medidas políticas ou que exista justiça quando existe tanta gente tão fácil de manipular. Não faz sentido acreditar que alguma vez as coisas vão mudar e que não vão ser sempre os mesmos a ser privilegiados. Não faz sentido acreditar num qualquer qualquer estado de graça onde teremos todos os mesmos direitos e onde ninguém irá sair prejudicado. Não, isso não existe. Não faz sentido pensar que o real valor de cada um será alguma vez reconhecido em vez de serem reconhecidos os amigos ou os oriundos de famílias influentes ou de grupos de poder dominantes. Nada disto faz sentido porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! O estado de graça não existe. O que existe é um continuado exercício do mal no qual se prejudicam muito rapidamente as minorias. O que existe é apenas um tenebroso recolhimento onde permanecemos sem respirar e onde nos fechamos em concha. Onde deixamos de dizer, pensar, ser. O que existe é sermos constantemente empurrados para não falar, não exprimir opinião, não ter vida porque qualquer uma dessa coisas nos prejudica e mesmo assim iremos sempre acabar a mendigar para comer. O que existe é que vão sempre ser os mesmos a ocupar os lugares mais favorecidos, não porque tenham mais qualificações ou mais qualidade para o fazer mas sim porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! É vergar e obedecer. Não questionar a autoridade. A ignorância é recompensada. O venerar falsos ídolos é recompensado. E qualquer luz disfarçada que possamos querer acreditar, neste ou naquele comentário político, não é mais que uma luz falsa, não é mais que uma ilusão. Toda e qualquer luz em que queiramos acreditar será imediatamente usurpada do seu brilho, da sua esperança, pelas elites, pelos demagogos, pelos oportunistas. Toda e qualquer luz será retirada de um e dada a outro que por mérito próprio nenhum a absorverá apenas porque se chama assim ou assado ou tem este ou aquele amigo ou obedece e se porta bem. Não faz sentido acreditar em mérito ou mesmo lutar, trabalhar, fazer melhor, porque tudo isso de nada vale e a tudo isso se renuncia em favor de pessoas menos qualificadas mas com maior poder de intrujar.

Não! Nada disto faz sentido! Não faz sentido acreditar nos direitos humanos, na igualdade das mulheres, no respeito racial. Não! É mesmo uma ilusão! Não faz sentido dedicar toda uma vida a um lugar que nunca reconhece o real valor do trabalho que se faz. Não faz sentido ficar nesse lugar quando fora dele se é reconhecido e acariciado. Não faz sentido que se tenha que renunciar a uma melhor qualidade de vida apenas por amor a esse lugar. Não! Nada disto faz sentido e não vale a pena chorar porque é assim que o mundo é.

Não! Não! Não! Se esse lugar é tão burro que continua a dar tudo a uns e nada a outros o melhor é tomar coragem e tomar a decisão correcta e, como numa separação amorosa, pedir o divórcio. Se esse lugar não reconhece, não dá o devido valor, então é tempo de partir. Se esse lugar não merece quem mais trabalha para a sua evolução, ou para o desenvolvimento de uma área da sua sociedade, então é tempo de o abandonar. Se esse lugar não está interessado em evolução e não está interessado em ser melhor, e se está apenas interessado em proteger os mesmos que sempre protegeu, então não há nada mais para fazer que abdicar da esperança, partir, manter a sanidade mental, porque nesse lugar não importa nada. Nesse lugar o que importa é como é que cada um se chama, assim ou assado, ou se tem este ou aquele amigo, ou se pertence a este ou aquele grupo de poder e é assim que o mundo é. E isto é verdade tanto aqui, deste lado, como aí, do vosso lado, amigos americanos.

Sim! Não faz sentido! Mas era esperado ou pelo menos eu esperava. Assim o previ há 18 meses atrás. Simplesmente óbvio para mim que Baudrillard e a híper realidade se reviam do fenómeno Trump e na teoria do reality TV, e que o asno iria ganhar sobre qualquer outro e é por isso que ainda faz menos sentido. Um predador sexual, mentiroso, aldrabão, racista, misógino, apoiado pelo KKK derruba com qualquer ideia da América como ideia de infinito sucesso individual e de liberdades colectivas. Um homem que nem a universidade terminou, que passou a vida toda a viver à conta do dinheiro do pai, que apresentou bancarrota inúmeras vezes, que tem inúmeros crimes fiscais, empréstimos dúbios, negociatas ilegais, que tem uma acusação de violação a uma menor e mais um número enorme de outras alegações de crimes sexuais e de racismo, chega a presidente e destrói com qualquer possível ideia de equilíbrio e de um futuro melhor e com qualquer ideia de esperança de balanço político e justiça social. É assim. Não faz sentido mas é assim que o mundo é.

Não faz sentido mas a América, que cai vulgarmente no mais grosso nacionalismo, expressou-se em massa de modo naïf pelo candidato que lhe vai retirar direitos. E não irá chocar se a economia voltar a um estado de recessão. É absolutamente fantástico como as pessoas são tão facilmente atraiçoadas por uma questão de empatia. O homem que vai destruir com tudo o que foi conseguido durante as últimas três décadas em direitos sociais e nos últimos oito anos em direitos de saúde e melhorias financeiras ganha, porque na burrice dos americanos, gera mais empatia com a sua malcriadez e porque se resolveu considerar que a sua oponente era a candidata do establishment.

Não faz sentido ser-se tão burro. Trump quer dizer establishment seus burros. Ou o que é que acham que um gajo com hotéis e casinos é? Os vossos direitos estão agora em perigo seus tontos, e isto é tanto verdade que basta apenas saber ler as suas declarações. A América que cai sempre na usurpação do nome do continente como se não houvessem outros países, que confunde continuadamente Estados Unidos com América. Sim essa mesma América que se considera a líder do free world e o país mais importante  do mundo e etc. e tal entregou o seu destino a um wannabe déspota que apresentou como política a fabricação de caminhos ínvios que apenas o beneficiam a ele próprio e aos que continuadamente praticam a mesma arte da intrujice onde tudo vai ser “great, you’ll see, so great, the best.” De repente até parece que estamos numa qualquer continuação do “They Live” do John Carpenter e onde apenas alguns têm o poder de ver os extraterrestres que estão no poder a dominar-nos.

Sim, não faz sentido que o candidato que acha que a China esteve bem no modo como limpou Tiananmen da revolta estudantil, que idolatra Saddam Hussein, Putin, Kim Jong Un e que acha que os países europeus têm que pagar para serem defendidos militarmente tenha ganho – embora que também isto seja uma mentira porque ele vai é aumentar a posição militar no mundo ou não fosse ele republicano. Sim não faz sentido que tenha sido a mesma pessoa que vai destruir com todos os acordos comerciais e que ao fazê-lo irá entregar o mundo de mão beijada à China. Boa sorte na vossa falência minha querida América. Tenho pena que tenhas escolhido o suicídio. A China, neste momento, estará secretamente a celebrar o facto de se ir tornar no país mais rico do mundo muito mais cedo do que o esperado. A Rússia por seu lado celebra ter eleito o seu primeiro presidente dos Estados Unidos. Muitos parabéns a todos.

E muito obrigado América, acabas de fazer com que todos as outras pessoas do mundo se sintam imensamente espertas. Quanto a mim estou oficialmente do lado da resistência e estou ao dispor se alguma cidadã americana se quiser corresponder comigo com vista a casamento. Tenho passaporte europeu, residência permanente de Macau, visto de longa duração na China e sou carinhoso, bom companheiro, não sou um bad hombre e até acho interessante se a senhora for um pouquinho nasty.

10 Nov 2016

Que mundo é este?

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue mundo é este? Que mundo é este que morde e nos aprisiona por entre raivas e tentáculos de febre? Para que serve um mundo assim? Um mundo onde Aleppo existe. Um mundo onde ditadores se juntam a ditadores para continuar guerras onde são os civis que mais sofrem. Que mundo é este que se desvia do prometido? Que se escurece entre negras emboscadas de princípios? Onde não há refúgio. Onde o refúgio é noutro país e nunca garantido, e não é equivalente de liberdade ou aceitação. Não falo do meu espanto. Não falo do que disfarço. Não falo das minhas asas quietas. Falo das mentiras. Do jogo de poderes. Falo do medo. Um medo que é de todos. Falo da insegurança do ser. De ser. Que mundo é este onde ser é equivalente a retraimento? Que mundo é este onde a tortura se tornou normal? Onde o tempo é indeciso e evita igualdades? Onde todos nos tornámos culpados de alguma coisa simplesmente pela cor da nossa pele? Que mundo é este que me alveja o peito com dor? Uma dor profunda, um gládio certeiro na existência. Que se escapa por entre dedos. Que mundo é este que nos puxa e onde nos puxamos uns aos outros por entre areias movediças?

Mas que realidade é esta? Como podemos aceitar que neste mundo é possível mudar governos sem que o povo tenha uma qualquer voz nesse processo? Que mundo? Que sintomas clínicos? Que passos seguros? Para onde vamos? Onde existe o pulsar do sangue? Onde está a bondade? As rugas do conhecimento? De que esperança nos acreditamos portadores? E que esperança existe num mundo onde se elegem pessoas que defendem separações de raça, género, opção amorosa de género? Um mundo que parece voltar atrás a cada dia. Que se amálgama em sangue. Que se amálgama em malefícios de julgamento. Que se aniquila por poder. Que se autodestrói levando consigo tudo. Que nos separa em vez de nos unir. Que não nos dá força para enfrentar a solidão. Que nos faz solidão. Que nos ignora. Que nos abandona num precipício. Num abismo. E de que iremos falar quando não houver água? Quando não houverem manhãs? Quando não houver planeta? Quando nas margens das nossas vozes se tiver apagado o fogo das palavras? De que iremos então falar? Que mundo é este? Que século é este que parece ter destruído todos os valores para os quais se lutou durante tanto tempo?

Que mundo? Que realidade? Onde apetece não saber mais. Não ler mais. Desligar. Fechar os olhos. Deixar acontecer. Calar a alma. Este não é o mundo com que sempre sonhei na minha adolescência. Não. Este não é o mundo da justiça e igualdade e possível felicidade. Nesse meu mundo imaginado na adolescência não existe espaço para presidentes que mandam matar antes de qualquer julgamento, antes de qualquer condenação. Nesse meu mundo imaginado existem valores humanistas. Compaixão. Nesse meu mundo imaginado existe conhecimento e não existem fanatismos. Não existem cegueiras de considerações. Nesse meu mundo existe respeito por todos. Um mundo onde não existe espaço para ditadores e guerras e regimes onde se perseguem as pessoas pelas suas opiniões, pelas suas opções de vida. Mas o mundo não é o meu mundo imaginado na adolescência. Nunca foi. Foi sempre injusto. Foi sempre palco de cobardes sem valores morais que usam a violência para dominar aqueles que não têm hipóteses de se defender. Afinal o mundo parece não ser mais que um jogo de conquistas globais, qual batalha naval, qual risco.

Mas que mundo é este afinal onde se apresentam mísseis nucleares capazes de fazer desaparecer países inteiros ao qual se dá o nome de Satan 2? E há pessoas que acham bem. Um mundo onde se fazem ameaças constantes. Ameaças nucleares. Ameaças de invasão. Ameaças de destruição. Que mundo é este onde o candidato à presidência do país com maior armamento do mundo considera que regimes autoritários são de louvar? Que considera que o estado chinês agiu bem na reacção que teve para com a revolta estudantil em Tiananmen? Que elogia déspotas como Kim Jong Un, Putin, Saddam Hussein. Que acha que as mulheres são julgadas numa escala de 1 a 10. E que defende que as mulheres devem ser penalizadas severamente por terem tido a infelicidade de ter que fazer um aborto. Que se acha acima de tudo e que pode fazer tudo. Que defende divisões de raças e géneros e tudo o mais que é tão horrível de pensar quanto mais dizer.

Mas o que é isto? Mas que mundo é este e o que é que é preciso para que todos estes políticos e pessoas do poder percebam que vivemos todos no mesmo planeta? Que as fronteiras são ridículas? Que somos todos humanos e que temos todos os mesmos direitos independentemente das nossas origens, extractos sociais, raça, género ou opção amorosa? Que temos todos o direito de existir e de ser respeitados e protegidos independentemente de possíveis maiorias e de possíveis escolhas de elites. O que é que é preciso para perceberem isto que é tão básico? Uma invasão extraterrestre?

Que tipo de angústia nos está preparada num futuro próximo?  Que mundo é este onde é possível em Macau cometer um crime tão violento como o crime de violação e tentativa de assassinato que aconteceu nesta última semana? Que mundo é este? O que é isto afinal? Existe esperança? Sou de imediato levado a pensar que não e quero de imediato refugiar-me no amor e nos sorrisos dos meus filhos e na arte e nos livros. Quero de imediato refugiar-me em algo que possa confiar porque o mundo desconfia de todos. Quero de imediato refugiar-me num fio de música. Numa noite que transforma. No rio oculto de emoções que o amor nos dá. No núcleo que arde dentro de nós e que nos altera para melhor ao qual muitas vezes chamamos alma. Nesse sonho onde se elide o sofrimento e onde a eternidade é possível. E refugiado penso que afinal existe esperança. Existe esperança no amor, nos meus filhos, na arte, nos livros, na bondade e em tantas outras coisas tão boas neste mundo. E existe esperança nas pessoas. Em pessoas como o motociclista que, de passagem ao lado de um contentor, conseguiu ver a perna da rapariga violada, esfaqueada, violentamente agredida e deixada pelo seu agressor no lixo com a presunção de que estaria morta. Existe esperança em pessoas como o motociclista que na presença de um crime hediondo não vira a cara e telefona para a polícia e que, com isso, poderá ter salvo uma vida. Mas que mundo é este? Um mundo horrível certamente, no qual não sabemos o que nos destina o dia de amanhã mas temos que acreditar que existe esperança enquanto houverem heróis desconhecidos como este motociclista.

3 Nov 2016

Um sistema que não falha

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]aro leitor,

Está em casa sozinho naquilo que parece ser mais uma noite de um bilião delas? Sem sorte no amor? Sem mulheres a ligarem-lhe? Sem sexo? Sente-se o maior macaco do mundo? Um falhado total? Não consegue que as mulheres se interessem por si? Parece que tudo o que pode correr mal lhe corre mal? Parece que elas não se interessam por nada em si? Parece que está a ser constantemente ignorado? E assim vai vivendo os seus dias e noites sozinho? E começa a estar realmente cansado de tanta frustração? E já viu todos os filmes românticos para tentar perceber as mulheres? E já leu tudo o que se encontra na Internet sobre como seduzir uma mulher? Sobre de como elas pensam? Como elas agem? O que elas querem? Se calhar é casado mas sente tudo isto da mesma forma? Se calhar estar em casa acompanhado pela sua família não é suficiente? Se calhar também não entende a sua mulher? Nem entende os filhos?
E quer acreditar? Leu o livro “The Secret” e começou diariamente a ler afirmações? Afirmações de como tem imenso sucesso por entre as mulheres? E acredita que se ler todos os dias as coisas vão melhorar? Mas não melhoram pois não? E tem calafrios na espinha? Suores frios? Chegou a pensar que é por ser do Sporting? Chegou a pensar que a culpa é do Jorge Jesus? Chegou a pensar que vivemos num mundo simulado tipo Matrix onde a escolha é entre uma pílula vermelha e uma azul? E que é por causa disso que a realidade não o satisfaz? Mas se calhar é do Porto ou do Benfica mas como as coisas correm tão mal com as mulheres que sente o mesmo? Um perdedor?
E senta-se à frente do computador todas as noites a fazer posts no facebook convulsivos? Com opiniões sobre tudo? E deixa umas piadas? Algumas maliciosas? E partilha tudo o que encontra decente a falar sobre sexo? E tenta ver quantas mulheres gostam dos seus posts? Mas nenhuma parece realmente gostar não é? E sente-se cada vez mais deprimido? E pensa, “Será que as mulheres não gostam de sexo”? E gostaria de andar nu em casa mas até já tem vergonha de si? Mas lê mais umas afirmações e sente-se electrificado, com energia renovada e acha que ganhou o poder de seduzir qualquer mulher a esforço zero? E sente-se excitado com a ideia? Mas não acontece não é? Continua sem saber como activar os botões emocionais das mulheres? Na realidade elas até fogem de si quando o veem? Chega mesmo a ter a impressão que o acham esquisito?
E gostaria de saber exactamente o que dizer a qualquer mulher em qualquer situação? Mas continua sem as perceber? E não percebe que algumas até o acham machista? E continua a tentar-se iludir que é o mundo que está errado e não você? E não importa o que faça? E continua sem saber o que fazer para atrair a mulher que quer? Ou para atrair a sua mulher que já lhe olha de lado? Quantas vezes já foi a bares e iniciou uma conversa com uma mulher que o atraiu, e vai pensando que tudo está bem… e de repente ela pede desculpa para ir à casa de banho e nunca mais volta? E pensa “o que raio aconteceu?” E quantas vezes tentou dar um beijo e elas viraram a cara? E nunca é o momento certo? E pensou que se ela olhou para os seus lábios isso queria dizer que ela queria que a beijasse? Mas entretanto quando o tentou já era demasiado tarde porque estava preocupado a pensar o que deveria fazer? E nunca se apercebeu que ela não estava a olhar para os seus lábios mas para um horrível bocado de comida entre os dentes?
E a rejeição prossegue? E pensa que a vida não é fácil? Que não é fácil perceber os sinais que as mulheres enviam aos homens no jogo da sedução? E pensa que não é algo que nos ensinem na escola ou que seja natural nos homens? E desculpa-se que na verdade as mulheres são bem melhores a ler sinais que os homens? Que as mulheres conseguem ver rapidamente se está a ser natural ou se está nervosamente a forçar-se, fazendo-se mais interessante do que realmente é? Que conseguem imediatamente perceber o quão real é a sua confiança? E tenta convencer-se que é biológico. E pensa que as mulheres esperam e deixam o homem espatifar-se e ridicularizar-se?
E se eu lhe disser que toda esta sua forma de pensar está errada e que existe uma solução? Se eu lhe disser que as mulheres querem o mesmo que os homens? Que querem ser felizes? Se eu lhe disser que a solução é bastante fácil por sinal. E se eu lhe disser que ao comprar arte todas as suas atitudes erradas, conceitos errados, esperanças irreais e laivos de machismo, ou desaparecem, ou se tornam menos perceptíveis, e que as mulheres passam a olhar para si de modo diferente? Pois é. Essa é que é a verdade. Um homem que compra arte é um homem atraente para as mulheres. Em pouco tempo passará a ter conversas inteligentes e o seu nível intelectual irá também melhorar. E com tudo isso passará também a sentir que as mulheres têm por si uma intensa atracção sexual. Porque as mulheres veem num homem que compra arte um homem feliz e as mulheres querem ser felizes. Quanto mais arte comprar mais magnético se tornará para as mulheres. Um verdadeiro íman de felicidade. Eu tenho um sistema desenhado, onde, passo a passo, lhe dou uma vantagem injusta para com os outros homens pelo facto de se tornar numa pessoa tão mais interessante. A sua mulher vai olhar para si com extrema admiração e enorme orgulho, e se for solteiro muito provavelmente deixará de o ser porque irá atrair a mulher com que sempre sonhou. Mas, como tudo na vida, irá dar trabalho, e não se consegue de graça. Compre arte hoje e amanhã. Ao contactar-me e ao comprar-me arte dou-lhe, especialmente porque gosto de si e compreendo a sua desilusão para com a vida, vários outros segredos realmente eficazes no jogo da sedução, como por exemplo não comprar arte que foi feita para aliviar o stress. Compre arte e seduza a mulher que quer hoje. Pode ser completamente feliz com a mulher com que sempre sonhou. Este sistema não falha.

Atenciosamente,
Um artista ao seu dispor

P.S.: Não lhe posso garantir que o Sporting irá ter um desempenho melhor mas posso lhe garantir que passa a ter muito menor importância na sua vida.

13 Out 2016

A solução para os seus problemas

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ara leitora

Está desesperada? Deprimida? Ansiosa? Sente uma angústia tremenda? Um desânimo contínuo? Um desencanto com tudo? Com a filha que passa a vida a tirar “selfies”? Com o filho que passa a vida a jogar computador? Com o marido que continua a chegar tarde a casa? Com o marido que já não lhe compra flores? Com o marido em geral? A cara dele é suficiente para a pôr naquele estado de não saber o que fazer para se ajudar a si própria? E se não tem marido nem filhos sente-se ainda pior? Não pode confiar no namorado?
Sente-se gorda? Cada vez mais gorda? Parou de comer açúcares? E parou de comer glúten? E parou de comer carne vermelha? E quase parou de comer? E o corpo não lhe obedece?
Pensou que precisava de ajuda? Inscreveu-se no ioga? Dois anos no ioga que não a motivaram? Que não lhe fizeram nada? Todos aqueles benefícios que seria suposto encontrar, todos aqueles estímulos e boas energias parecem desaparecer no momento em que sai das sessões? Sente que andou a gastar dinheiro e tempo à procura de calma e paz que nunca sentiu.
Quis acreditar? Acreditou muito? Acreditou que iria encontrar aquele equilíbrio espiritual e físico que à tanto tempo procura? Acreditou mas não aconteceu? E por isso também gastou dinheiro no “reiki”? E para quê? Para nada? Sente que está tudo na mesma? Que as suas energias são sempre negativas ou inexistentes?
Porque nada parece resultar resolveu gastar um dinheirão em meditação transcendental? E, de novo, nada? Nada para além de ter gasto tempo e dinheiro? A única coisa verdadeiramente transcendental é a forma como tem gasto dinheiro nestas charadas?
Inscreveu-se nas aulas do Pole Dancing? Comprou todas as roupas apropriadas? Tinha um novo sorriso na cara quanto começou? E depois? Passados quatro meses? Tudo voltou ao normal? Ainda se sente gorda? E agora até se sente desconjuntada? Por vezes acha que os braços e as pernas estão fora de si? Gastou dinheiro e tudo o que conseguiu foi fazer figuras tristes enquanto achava que ia voltar a ganhar aquelas linhas de corpo que tinha aos vinte anos?
Também experimentou o ginásio? No ginásio não tinha que suportar com as conversas daquelas miúdas novas no pole? Aquelas miúdas com imensa elasticidade? Foi por isso? Se calhar é uma dessas miúdas e sente o mesmo? Às quartas ainda continua a ir ao ginásio mas desde que o Paulus, aquele rapaz italiano que a ajudava com os exercícios de barras, se foi embora tudo aquilo também parece já não ter mais interesse?
Pensa que talvez tenha antes que fazer dança? Aeróbica? Ou talvez danças de salão? Tango? Cha Cha Cha? Qualquer coisa que a faça sentir melhor? Mambo? Zumba? Ou até talvez uma coisa tipo Bollywood? Uma dança do ventre? Acha por momentos que isso poderia ser realmente sexy? Mas depois como é que vai fazer com o umbigo? Faz um piercing? Isso se calhar já não é para a sua idade e depois como é que vai explicar aos filhos e ao marido que tem um piercing no umbigo? O que é que eles irão achar? E pensa: “Ah se eu fosse mais nova”? E se calhar até é mais nova mas sofre do mesmo problema de não viver a vida como gostaria de ser capaz?
Nada parece ser a solução perfeita? Sente-se feia? As rugas aparecem com uma frequência cada vez maior? Vê os anos a passar e tudo se torna cada vez mais horrível? Gastou um dinheirão em tratamentos de pele? E em cremes? Em fórmulas anti-envelhecimento? Em colágenos e sérums? E não importa se tem vinte ou quarenta anos e compra todos aqueles comprimidos com compostos de vitaminas? E continua a envelhecer? Sente que o envelhecimento não é uma situação passageira? Não consegue perceber aquelas pessoas que parecem estar bem em ficarem mais velhas?
E tem uma coleção de sapatos e malas? Com todas as novas lojas de marca pode dedicar-se a este devaneio com regularidade? Mas mais de 100 pares de sapatos não a fizeram mais feliz? E todas aquelas malas da LV, Hermes, Dior e de todos os outros também não a fizeram mais feliz? E joias? Joias que não pode usar quando vai sair com o marido porque não quer que ele saiba que anda a gastar tanto dinheiro? Tudo isso para quê?
De vez em quanto consegue escapar-se com amigas para Phuket? Okinawa? Outros destinos? Mas acaba por não fazer nada de interessante? Mais de metade do tempo passa-o no resort? Na piscina? Nos restaurantes que passado um tempo são todos iguais? E as amigas estão cada vez mais futéis? Mais desinteressantes? Por vezes questiona-se como é possível dar-se com elas? E começa também a sentir-se fútil e desinteressante?
Tudo não passa de uma escuridão? Começou a deixar de acreditar em si e no mundo? Perdeu o interesse por o que quer que seja? Sente-se desencorajada com o futuro? Sente-se até mesmo culpada por ter deixado isto acontecer-lhe? Sempre acreditou que o seu futuro ia ser brilhante?
Tenha calma. Eu percebo-a. A solução para os seus problemas existe. Tenho mais de trinta anos a trabalhar nesta área. Não gaste mais dinheiro em todas essas coisas que não lhe trazem felicidade real. A solução é bem mais fácil e simples do que pensa. Acredite em mim. Compre arte e garanto-lhe por experiência própria que a sua vida muda de um dia para o outro. A ajuda que tanto tem procurado está em cada objecto artístico.
Compre arte. Contacte-me ainda hoje que eu irei ouvi-la com a maior atenção e dar-lhe-ei a arte que necessita para iluminar os seus dias. E se for necessário um tratamento mais prolongado compre arte todos os meses. Irá perceber que todas as soluções para o seu estado de tédio encontram-se no amor de obras artísticas.
Irá recuperar o ânimo e o gosto pela vida que tanto quer. Quando se sentir cansada pode demorar-se em deleite a olhar para peças de real valor artístico e não meros sapatos ou meras malas que saem de moda. Colecionar arte não sai de moda.
A calma e a felicidade de ter obras artísticas a alegrar a sua casa irão dar-lhe um sabor muito especial na vida. Sentirá que a vida tem finalmente um sentido. Socialmente será vista como pertencendo ao topo do topo das elites. Contacte-me ainda hoje que eu tenho as respostas que necessita.

Atenciosamente,
Um artista ao seu dispor

6 Out 2016

Você está no lugar certo e no momento certo

Caro leitor,

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uitas vezes ficamos com arrepios na espinha quando uma coincidência se apresenta perante nós. Quando me apercebi de todo o seu imenso potencial percebi que tinha que falar consigo. Um potencial ainda por se revelar mas que pode finalmente encontrar o seu rumo. Percebi que você é uma das pessoas que pode usar o incrível poder de comprar Arte. Arte e não simples artesanato feito com materiais baratos e que pode ser adquirido nas feiras regionais. Arte com aquele sentido angélico, carregada de símbolos misteriosos, incrível poder relaxante e elevação do ser. Arte que abre portais e transcendências para o conhecimento.
Meu caro amigo, esta é uma oportunidade verdadeiramente rara e magnífica de se tornar um coleccionador de Arte. De conquistar, para a sua vida, algo absolutamente mágico. Já se imaginou protegido por objectos artísticos que lhe podem trazer milagres, orientação e amor? Peças que irão mudar a sua vida. Obras que lhe permitirão viver os seus sonhos. É por isso que, por exemplo, desde os tempos antigos, a Arte é coleccionada por todo o mundo por uma certa elite mais informada. Esta é uma oportunidade que muitas pessoas não têm por isso por favor leia com atenção.
O seu objecto artístico irá criar um “Portal” (uma ligação exclusivamente sua) com o artista e através do objecto artístico terá o milagre de desfrutar uma vida mais feliz e mais completa. Irá poder ver que Arte não é uma peça de artesanato comum. Os materiais e a dedicação que existem na sua produção são condizentes dessa magnitude. Na verdade, a Arte tem sido coleccionada ao longo da história por uma elite que não queria revelar o segredo da sua fortuna espiritual. Essa fortuna espiritual está agora ao seu alcance. A incrível beleza, que existe na elaboração de objectos artísticos torna-os sagrados e todo esse sentido de felicidade, protecção e iluminação está agora ao seu alcance.
Ao longo dos tempos os coleccionadores de Arte sabem que coleccionar objectos artísticos aumenta o seu próprio poder pessoal, a sua coragem, a sua confiança e força de vontade. Arte também atrai riqueza. Já ouviu a expressão “dinheiro atrai dinheiro”? Ora se a sua peça for comprada por um preço justo para o artista não tenha dúvidas que o artista se valorizará ao longo do tempo e que mais obras de arte irá atrair para si e mais património financeiro terá ao seu dispor. Esta é outra das razões pela qual a Arte tem sido tão procurada e acumulada por pessoas mais poderosas.
Os objectos artísticos são os bens mais poderosamente misteriosos e espiritualmente absorventes na Terra. Têm a habilidade de nos surpreender, proteger, curar e evitar infecções da alma. Mas isto é apenas a ponta do iceberg, porque a Arte também aumenta e fortalece habilidades psíquicas e de intuição. A sua energia amplia todos os seus poderes enquanto pessoa. Coleccione Arte e verá o quão verdadeiramente maravilhosa e linda a vida pode ser.
Mas há mais! Muito mais, porque a Arte tem uma existência requintada e trará para a sua vida uma elegância que quem não colecciona nunca conseguirá. Por favor mantenha isto em segredo mas se coleccionar hoje muito possivelmente o seu investimento será imediatamente expresso na sua cara. As pessoas à sua volta irão notar que algo está diferente em si. Uma felicidade que irão invejar. A Arte protege-o de forças negativas e atrai boa sorte, riqueza e amor. Os padrões que envolvem a dedicação que cada artista põe na criação de objectos artísticos são padrões com mais de mil anos. Padrões com energias positivas poderosas que convocam entidades espirituais, companheirismo, orientação e milagres. É por isso que quero que mantenha o seu objecto artístico à vista de todas as suas visitas em casa. Estas linhas de força podem também ser encontradas no Neolítico e foram utilizadas para guiar o homem antigo pelos caminhos invisíveis de energia que ligam os humanos aos seres mágicos e espirituais. Se alguma vez se sentir ameaçado ou inseguro, ou se achar que está a faltar motivação ou direcção, ou se está num lugar onde realmente precisa de um milagre para resolver um problema ou superar um obstáculo que está entre si e os seus sonhos, basta deixar-se envolver e apreciar a obra artística por alguns minutos por dia e toda a vitalidade, sorte e coragem serão suas.
A Arte é o seu perfeito talismã. Encontre o segredo e a segurança espiritual dos antigos e das elites. Com cada objecto artístico terá o seu próprio certificado de autenticidade. Esta é uma rara oportunidade de transformar completamente a sua vida e a dos que estão ao seu redor. A sua satisfação será garantida. Não perca mais tempo. Você está no lugar certo e no momento certo. Coleccione Arte.

Atenciosamente,
Um artista ao seu dispor

29 Set 2016

Da tragédia à farsa

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á umas semanas atrás fiz um comentário no Facebook sobre algo que considero um devaneio que não tem nada a ver com arte e a que chamei como “the pathetic unspoken tragedy of the Macau art scene”. O resultado esperado com um número razoável de “gostos” e com a perturbação de algumas pessoas. Dentro das regras de convivência do facebook e do mundo em geral vamos aceitando as opiniões divergentes da nossa, tentando perceber a frustração dos outros, dando o devido desconto a respostas mais emocionais e tentando responder com dignidade e gentileza. Por limitações de espaço e objectividade do comentário deixei a coisa correr reservando uma mais longa reflexão sobre o problema para este espaço.
Considero que numa terra que se vai abstraindo do discurso de arte contemporânea – com a inexistência de uma escola de artes plásticas, com a inexistência de um Museu ou centro que o faça, com a inexistência de galerias que o façam, com a inexistência de discurso crítico nos media e no meio artístico em si – seja natural serem os artistas a fazer esse tipo de análise, Considero também que os artistas devem por seu lado estar imbuídos de um forte sentido de auto crítica e conhecimento geral sobre aquilo que se passa realmente na área ao nível internacional antes de qualquer análise daquilo que se passa ao seu redor.
Dito isto e voltando ao foco do meu comentário no facebook gostaria de dizer que o autor da peça que originou o comentário é mencionado nos meus workshops sobre práticas artísticas contemporâneas, como caso ilustrativo de determinadas coisas, e que em nenhum momento nas minhas aulas afirmo que é bom ou mau, ou defendo esta prática ou aquela, tentando oferecer aos meus alunos a possibilidade de poderem pensar, ter o seu próprio discurso crítico, e decidir por si. Volto a insistir também que considero existir espaço na arte para a maior variedade de práticas possíveis e é exactamente isso que faz com que a arte contemporânea seja hoje um terreno tão único e prolífero em ideias e trabalhos. Mas gostaria também de alertar que temos que ter a cabeça suficientemente atenta para a possibilidade da existência de fraudes intelectuais. E de que essas fraudes acontecem muitas vezes não especialmente pelos trabalhos em si mas pela perversão de certos valores essenciais à razão de existência da arte na vida.
Para que esta argumentação se torne mais clara gostaria de voltar ao tom ambíguo, implícito no comentário, com especial foco nas palavras “pathetic unspoken tragedy”, e no que poderei estar realmente a dizer. Se começarmos com o significado de “pathetic” (patético) descobrimos que é  “algo que desperta dó especialmente através de vulnerabilidade ou tristeza. Por outro lado “unspoken” (não dito) é “algo que não é declarado ou não é expresso em discurso”. E a minha favorita das três palavras “tragedy” (tragédia), que irá sempre ser lida como “um evento que causa grande sofrimento”, mas que, e isto é importante – acredito que a maior parte das pessoas leu no sentido que eu quis inserir – “uma peça de teatro ou filme que lida com eventos trágicos que tem um fim infeliz e que é directamente relacionado com a queda do personagem principal”. O meu uso da palavra “tragedy”, na frase, implica, sarcasticamente, que poderá existir algo de profético e ironicamente maldoso no aparecimento de tal peça, de Jeff Koons, que foi comprada pelo impressionante valor de 33,6 milhões de dólares americanos, em Macau. A farsa em construção portanto.
Tragédia é decepção. Qualquer exemplo de Sófocles a Shakespeare ou às tragédias modernas assenta nessa premissa. Os personagens centrais são atravessados por um estado de falhanço moral, em situações nas quais prejudicam outros, tendo isso uma consequência prejudicial para eles próprios. Por exemplo Édipo, que acidentalmente concretiza uma profecia da qual foi avisado de que acabaria por matar o seu pai e casar com a mãe com consequências dramáticas para si, para a sua cidade e família. Édipo representa dois dos temas recorrentes no mito e drama gregos: a natureza falhada da humanidade e o protagonismo individual no destino de uma realidade desastrosa. Outro caso, o de Hamlet, onde o “ser ou não ser” estabelece o espaço para uma vingança preordenada pelo fantasma de seu pai, e entre ser aquele que os outros querem e aquele que ele nunca se julga capaz de ser, Hamlet provoca o suicídio da sua namorada Ofélia, quando por erro de julgamento mata a pessoa errada, o pai de Ofélia. Um destino Hegeliano o de Hamlet, destinado a ser um criminoso pela sua própria alienação de si e do mundo. Um exemplo na tragédia contemporânea é o de Walter White na brilhante série americana Breaking Bad. Apanhado pelo cancro dedica-se à produção de meta-anfetamina com a desculpa de que o faz pela família resultando nas consequências mais desastrosas possíveis. Momento da verdade no último episódio quando afirma finalmente “I did it for me. I liked it”. O que aprendemos com o género da tragédia é que somos nós que estamos destinados a cumprir os nossos próprios dramas e que, de algum modo, já sabíamos que eles iam acontecer. Macau, ou a arte em Macau, é nesse sentido a personagem central da sua própria tragédia.
Voltando a Koons, para que se limpem certos mitos, gostaria de notar que:
1) Jeff Koons não trabalhou nas “Tulips” por mais de vinte anos como ouvi dizer por mais do que uma pessoa. Não que seja realmente importante para além de que factos são factos e que com uma visita ao seu website facilmente se comprova que o trabalho está datado como sendo de 1995/2004.
2) A peça não pode ser considerada uma peça única. Também no seu website pode-se ver que existem 5 variantes do mesmo.
3) O trabalho foi feito por molde o que significa que não foi feito pela mão. Ou seja se Koons assim o quiser pode continuar a produzir mais “Tulips”. Atenção que não acho que ser feito à mão ou não seja o factor essencial para uma boa peça de arte. O importante, neste caso, é perceber-se que esta pessoa trabalha com um número muito alargado de assistentes e usa técnicas industriais para produzir os seus designs.
4) Jeff Koons funciona como uma máquina muito bem oleada de fazer dinheiro e mesmo que tivesse demorado vinte anos até esta variação, o que não aconteceu, isso não quer dizer que esteve parado, com as mãos na cabeça, dúvidas existenciais e problemas financeiros só a trabalhar nesta peça. Esse romantização do artista na contemporaneidade é um mito. Uma visita ao seu website confirma que nos últimos vinte anos terminou 31 projectos da série “Celebration”, da qual as “Tulips” fazem parte e os mais famosos são os “Ballon Dogs”, e que cada projecto teve sempre mais de três variantes, mais provas de autor, com um total de mais de 100 peças. A este número juntam-se mais de 200 trabalhos noutras séries que são vulgarmente vendidos por figuras de mais de 6 a 7 zeros em dólares americanos.
5) Jeff Koons é conhecido no mundo da arte por ser um manipulador de audiências como é exemplo o seu casamento com a actriz porno húngaro-italiana Ilona Staller, largamente conhecida como Cicciolina, com a qual realizou trabalho de cariz erótico-agitador que foi exibido na Bienal de Veneza.
E o que é que se pode fazer à frente de uma decoração de aço inoxidável espelhado e polido com cores? Tirar um selfie. A verdade é que aparentemente os trabalhos de Koons já não servem para mais nada do que isso mas também não me parece que ele esteja muito preocupado com isso.
Tudo isto não é só tragédia ou farsa. Tudo isto é também freudiano e merece uma reflexão profunda em cada um de nós. 33,6 milhões de dólares americanos para quê? Para uns selfies? Para se revender daqui a uns anos por 45 ou 50 milhões e continuar a dizer-se cinicamente que somos “art lovers”? Qual é realmente o valor das coisas e o que é que realmente é mais importante para este mundo? Entre os neuróticos, que somos a maior parte de nós, existem os perversos. O mundo precisa de mais pensamento e debate crítico e de menos decorações de salão. A arte já não é isto. Já não é só um ornamento nas casas dos abastados. A perversão é só de alguns.

22 Set 2016

Querida, embora dar umas beijocas debaixo da torre?

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]aris é habitualmente considerada a cidade das luzes e a cidade do amor. No número de clichés que contribuem para essa definição incluem-se, entre outros, a viagem de barco no Sena ou simplesmente um passeio à beira rio,  os campos Elísios, a atmosfera de Montmartre e de Montparnasse, a Notre Dame, uma ida a um espectáculo no Moulin Rouge, um jantar no Tour D’Argent, os inúmeros Museus, os cristais dos candeeiros de rua, o escrever os nomes dos enamorados num cadeado para colocar na Pont Des Arts e mandar a chave para o rio e, claro, uma beijoca debaixo da Torre Eiffel. Depois existe a língua francesa, na qual tudo o que for dito num determinado tom parece incitar à beleza e a tudo o resto que gostamos de associar com o amor. Mas o amor já não é como era. Os enamorados têm que escolher outras pontes, noutras cidades, pois a tradição, iniciada em 2008, fez com que um milhão de cadeados, com três toneladas de peso, fizesse ruir uma parte da Pont Des Arts em 2014 e, em virtude disso, as autoridades francesas removeram todos os cadeados dessa e de outras pontes. Como se não bastasse, no ano passado, Paris tornou-se também numa das cidades vítimas de atentados terroristas. Hoje em dia uma visita à Torre Eiffel implica ter que passar por medidas extremas de segurança e a tal beijoca poderá ter que ser dada a uma distância considerável.
Das mais de 30 réplicas da Torre Eiffel que já existiam por esse mundo fora podiam-se contar na China com: a de Harbin, uma imitação não assumida de 336 metros que serve de torre de comunicações e que portanto não nos interessa para este devaneio; a de Hangzhou, no famoso empreendimento de luxo falhado e hoje cidade fantasma, nos subúrbios da cidade, com 108 metros; a de Shenzhen, também com 108 metros, no parque temático “Window of the Worlds que em dias de céu limpo pode ver-se a partir dos Novos Territórios de Hong Kong; e a de Pequim, no parque temático “World Park”, que serviu de cenário para o filme “The World” de Jia Zhangke, e que foi construído em 1993 (depois do de Shenzhen). Ora a Torre Eiffel de Pequim existe no tamanho real do da torre original e esse facto faz realmente diferença pois praticamente tudo o resto no parque é uma réplica em miniatura. Jia Zhangke aproveita inclusivamente isso para o plano inicial do filme e para uma nota no discurso de um dos personagens.
A nossa torre não é tão ambiciosa como a de Pequim na altura mas tem metade do tamanho da de Paris que tem 320 metros, ficando assim à frente, em tamanho, da de Shenzhen e da de Hangzhou. Boa. Fixe. Infelizmente não tem um chapéu de cowboy, como a da cidade Paris no Texas, mas não interessa porque “Paris não é Paris sem a Torre Eiffel”, como disse o Cônsul Geral de França para Hong Kong e Macau a determinado momento.
Mas quantas mais Torres Eiffel é que o mundo precisa? E quantas mais réplicas precisa Macau? Já não chega o Coliseu de Roma, a Grande (pequeníssima) Muralha da China, umas ruas holandesas, uma praça portuguesa, uns canais de água venezianos interiores, uma pretensa Gotham, e nem sei mais o quê que fico tão entediado que quase adormeço quando começo a pensar nisso? E qual é a próxima réplica? O Taj Mahal? O Big Ben? Uns Guerreiros de Terracota? Uns túmulos da Dinastia Han? Ou umas Ruínas de São Paulo com o dobro do tamanho, que mudam de cor quando a caravana passa? E quantos espaços todos iguais deresorts, com carpetes semelhantes, mármores semelhantes, e nem sei mais o quê que já adormeci, precisa Macau? Quantas lojas mais da Dior, da LV… Ok. Ok. Ok!!! Estou a desconversar.
Diz-me o Facebook que o que as pessoas gostam mesmo é destas pirosadas portanto embora lá viver alegremente nesta cidade por entre dois mundos no qual se vai adensando um abismo imenso entre eles. Vamos fechar os olhos e partilhar o mundo da ilusão fatela, todo “nice” e brilhante, e fazer “gosto”. Sim, embora fazer isso, pois sendo uma cidade tão pequena tudo passou já a ser parte do parque temático e os residentes, quer queiram quer não, são  também uma atracção. O outro mundo onde realmente se vive, que tem pessoas ricas a insultar aqueles que acham serem inferiores a eles, não interessa. O mundo do tráfico humano não interessa. O da violência doméstica também não. O das injustiças e dos desequilíbrios, não interessa. 
Voltando ao que se esmiuçava no início. Paris e o Amor. Ah, o Amor. Essa palavra tão forte que faz até o mais duro dos corações palpitar. Pois é “Parisian loves locals”. É assim que se tenta seduzir os residentes oferecendo “Instant Rewards” e “Special Offers”. Quanto à inequívoca exploração do tema do amor dedicarei os meus pensamentos para outro texto. Quero mesmo ficar-me pela análise da frase na sua versão em chinês, na qual deparamos com uma manipulação publicitária mais eficaz que o “love locals”. Ora na versão em chinês, 巴黎人愛我, lê-se literalmente “Paris pessoa 巴黎人 ama 愛 eu 我”, portanto “Parisian loves me”. É esta inversão de quem fala e de quem pensa que se opera como sedução psicológica. Em vez de assumir a oferta como se fosse o sujeito, dizendo 巴黎人愛你 “Parisian loves you” (Parisian ama-te), o alterar do sujeito de tu 你 para eu 我 imprime no cérebro a segurança desejada, como se estivéssemos a falar para nós próprios, como se nos assegurássemos a nós próprios que é bom, que vale a pena. É exactamente esse o truque psicológico. A definição para os locais também não é deixada ao acaso e acontece com o caracter amor 愛, em chinês tradicional e não no simplificado 爱, que seria a oferta mais óbvia para os turistas da China Continental .
Agora o que falta dizer é que é feio tentar comprar o amor e que ninguém nos pode obrigar a amar de volta. Mas isso não interessa e não importa se a Torre Eiffel é um dos monumentos com mais réplicas no mundo. O mais importante é que agora podemos passar uma noite completamente romântica a dar umas beijocas debaixo da nossa própria Torre Eiffel.

15 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]aphne é tudo culpa minha. Tudo isto. Eu mereço isto. Abandonei a Xiaolian sem sequer olhar para trás. Sem fazer ideia nenhuma que o sofrimento não se apaga. Que o tempo não cura o amor. Daphne as tuas pinturas. Nas tuas pinturas tu foste feliz. Foste feliz? Daphne é tudo culpa minha. O ciúme que tive pelo teu envolvimento com o Chaoxiong. O ciúme cega. E fiz aquilo. Daphne já te podes ir embora. Liberto-te agora desta tua presença. Depois de ter calado as consonantes dos teus olhos enormes que harmonizavam os sons das tuas pinturas voltaste. Sei agora porque voltaste. Não foi uma escolha tua. Não és um fantasma. Voltaste porque eu vivi todo este tempo desde que deixei a Xiaolian sem face. Um homem sem face. Sem honra. Sem vontade própria. Um exemplo miserável da espécie. Um medíocre em todos os aspectos. Voltaste porque eu tinha que chegar a este ponto de te falar na Xiaolian. E de te falar no remorso. Na culpa. No arrependimento. Naquilo que deveria ter feito e não fiz. Naquilo que deveria ter dito e não disse. Naquilo que não deveria ter feito e fiz. Naquilo que não deveria ter dito e disse. É tudo culpa minha. Se eu tivesse sido mais homem. Mais pessoa. Mas não. Fui igual a todos os outros. Um falhado em tudo o que realmente tem importância na vida. Que não é a carreira. Que não é o dinheiro. Que não são as férias em lugares exóticos. Que não são os apertos de mão a pessoas consideradas importantes. Que não são as casas, os carros, as joias, os relógios, as roupas, e todo esse inferno de possessões que não significa nada. Porque quando nos vamos. Quando desaparecemos. Quando desaparecemos de que é que valem essas coisas. De que é que vale esse pavonear de riqueza? Essa falsa riqueza. De que é que vale. A felicidade que se pode comprar com o dinheiro não é real. É momentânea. E de nada vale se dentro de ti não tiveres espaço para perseguir uma vida com real significado. E todas estas vaidades não têm significado. Não escolhemos onde nascemos. Não escolhemos as pessoas que se cruzam connosco. Tu deverias ter sido feliz. Eu deveria ter-te deixado ir com o Chaoxiong. Estive quase para o fazer quando interceptei uma das tuas cartas. As cartas que lhe enviavas quase diariamente do Japão.

As pessoas morrem quando não têm mais energia para viver. Quando perdem a esperança. Algo morre. Uma luz que se apaga. Daphne voltei a ter esperança. Passado tanto tempo. A dor não significa nada. A dor só nos retrai. Vi a Viúva torturar lentamente a Empregada do Bar que serviu de penso rápido para toda a minha estupidez. Vi a Viúva cozinhar o cérebro desta pobre pessoa que não tem culpa nenhuma de se ter cruzado comigo. Daphne eu sei, percebo agora, que realmente a culpa é toda minha. E que mereço isto. Mereço este último desafio. E que só eu posso travar tudo o resto de terrífico que possa acontecer às pessoas que eventualmente se cruzaram comigo. Sem amor. Como pode uma pessoa passar praticamente toda a sua vida sem amor? Mais vale a morte? Será o silêncio uma morte? As memórias do amor são agora vívidas. Será que vivi sem viver?

Olho para trás. Aquilo que mais amei na minha vida, mais o destrui. “Each man kills the thing he loves”1. Daphne. Pode ser que este seja o único momento de lucidez na minha vida. Um homem sem face. Sem rosto. Redescubro-me. Existi apenas naquele caso de amor com a Xiaolian. E todas as minhas tentativas para encontrar um amor como o dela foram falhadas. Daphne. Tu também. Daphne. Derramei a minha vida sem significado e arrastei os outros. Envergonhado de mim próprio desapareci. A Viúva queria que eu acabasse com o Estripador. Seria essa a minha redenção quanto a ela. Matar-lhe o filho. Matar o teu Chaoxiong que enlouqueceu e que te procura em cada mulher que esfaqueia. À procura do bebé que trazias contigo quando os meus dedos foram os de um pianista no teu pescoço. Tenho apenas mais uma coisa para te dizer. Não o farei. Sei que não é esse o meu destino. Espera. A Viúva está mais nervosa que nunca. Aumentou o volume do som da televisão. “O misterioso criminoso apelidado como o Estripador foi encontrado morto esta tarde pela polícia. Os motivos que levaram este homem a fazer o que fez são completamente desconhecidos. A testemunha que encontrou o corpo do Estripador diz julgar ter visto o vulto de uma mulher a desaparecer.” Daphne não sei o que dizer. Mas o sofrimento dele seria horrível. Talvez agora a sua alma se encontre com a tua. É isso que desejo do fundo do meu coração. A Viúva está desolada. Completamente desolada. Todos os seus planos falham agora. O remorso. A culpa. O arrependimento. Daphne obrigado por tudo. Podes ir agora. Eu sei finalmente o que fazer. A campainha da porta. Quem será agora? Xiaolian?

Oscar Wilde, “The Ballad of Reading Gaol”

Fim da primeira parte

8 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 25 – O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Estou tão confusa. Não sei se a minha última carta chegou até ti. Sinto-me como um deserto ressequido. Olha para mim com este homem e vajo que nunca houve amor. Hoje voltou a deixar-me aqui presa no quarto. Enquanto procurava algo com que pudesse abrir a porta encontrei uma foto dele quando era jovem com esta outra mulher. É impressionante o quanto ela se parece comigo. Nas costas da foto estas palavras: “Para sempre tua baobei, Xiaolian”. E uma data: 1 de Setembro de 2016. Porque continua ele a guardar esta foto passado tanto tempo? Ele sempre me disse que nunca tinha tido ninguém na vida dele. Nenhuma relação séria. “Para sempre tua” parece-me suficientemente sério não achas? Será possível que este homem tenha alguma vez sido bom? Tenha tido bondade dentro dele? Ele não existe aqui, comigo. Não existe. É uma carne que não existe . é uma alma que não existe mas esta foto que encontrei hoje mostra-o feliz. Com um sorriso e uma aura que nunca vi nele. Será que ele alguma vez foi feliz? Que terá acontecido? Não seria tão bom que ele tivesse sido feliz com ela? Esta tal Xiaolian. Nao sei. Talvez os nossos destinos se tivessem cruzado mais cedo. Talvez. Ou talvez não. Talvez seja este o nosso destino. Tu aí, meu querido Chaoxiong, e eu aqui presa num quarto no meio do Japão. Sinto que começo a dar de mim. A não entender os meus processos mentais. Mas não te preocupes. Esta minha descoberta e eu estar a falar-te sobre ela não tem nada a ver com ciúmes. Não tenho ciúmes por ele. Odeio-o. Sinto que depois de passar uma certa idade a vida torna-se num processo de perda contínua. As coisas realmente importantes começam a desaparecer. Escapam-se. E as coisas que ocupam o seu lugar são imitações inúteis. Estou sem força física. A esperança. O que é a esperança? O que é a fé? O que são os sonhos? Os ideais? As convicções? O que significam quando já ase perdeu tudo? De que vale o amor? De que vale o amor se não pode ser cumprido? As pessoas que amamos a desaparecer uma após outra. Uns de forma anunciada e outras sem aviso. Simplesmente a desaparecer. E uma vez que as pessoas desaparecem nunca mais voltam. E tentamos encontrar substitutos. Será que é isso que eu sou para ele? Uma substitua da Xiaolian?

Imagina. Apenas flocos de neve solitários a marcar o começo de um inverno que não acaba. Ao fundo existe um templo. Oiço o badalar dos sinos. Oiço os monges. Todas as manhãs oiço os monges e as suas orações. Oiço os seus passos quando caminham à volta nos seus trajectos de meditação. Sinto estes sons em crescendo. A cada manhã tornam-se mais fortes. Mais profundos. E sinto as reverberações remanescentes. Sinto o fluxo do tempo. E após os sinos do templo do norte aparecem os sinos do templo do sul. Tantos templos e ninguém sabe que eu estou aqui presa. E os quimonos que comprei especialmente para tu mos despires. Será que alguma vez os vais ver? Desculpa-me se estou emocionada. Se me sinto perdida. Gostava de estar contigo. De não me estar a atormentar com esta dor de não saber o que vai realmente acontecer. De não me atormentar por esta tristeza. Por este arrependimento de não ter ido ter contigo e fugir em vez de me ter deixado levar por um sentimento qualquer de que tinha que lhe dizer que estava tudo acabado. Olha agora como eu estou. De que me valeu ter tentado fazer a coisa certa? Os sinos ecoam no meu coração. Mas por quanto tempo?

Odeio este mundo. Odeio esta angústia. Esta inquietação de hoje e tu sempre tão longe de mim. Gostava de ouvir a tua voz. Os teus sussurros quando me dizes que me amas. Por que será que me dói tanto ter descoberto que existiu outra mulher que ele nunca me disse. Que se calhar ainda existe. Ou que pelo menos existe dentro do coração dele. Porque razão guardaria ele a foto se ela não estivesse ainda presente no seu coração? Nunca deveria ter confiado nele. Deveria ter acabado com tudo mais cedo. E mais cedo valorizar o meu tempo contigo meu amor. E este vácuo dentro de mim que não é indolor. Porque existe maldade? Infortúnio? Sofrimento? Destino? Será este o nosso destino? Será este o meu destino? E este vazio. Este nada. Este nada de nada. Esta manhã esteve uma névoa espessa. Muito acima da neblina, nuvens brancas banhadas em uma luz brilhante que parecia irradiar-se da terra. A luz do sol, com raios oblíquos, conseguiu fazer descobrir a montanha em frente. Uma montanha coberta de pinheiros. Mais perto da janela uma moita de bambu com folhas amareladas. O nascer do sol foi roxo. Incomum. Uma suavidade no roxo cheio de graduações subtis. E a neblina ficou rosa por momentos. Isto poderia ser o lugar perfeito para nós. Eu poderia pintar. E até poderia pintar em papel de arroz. E arrastar os pinceis por entre carmins e por entre curvas na distância de nós. Porque estão as pessoas todas trocadas umas com as outras?

1 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] teu silêncio será de ouro e poderá salvar-te. Silêncio absoluto. Nem respires.” Foi com estas palavras que a “Viúva” acabou a sua história, que compreendo agora ser sobre o seu encontro com o pai do seu filho. E que o seu filho era o teu amante. Qual é mesmo o nome dele? Chaoxiong? A seguir enfiou-me neste quarto, amordaçado, deixando-me a porta aberta com perfeita colocação para ver tudo o que entretanto está a fazer a uma outra das suas vítimas. E, se existia esta angústia de não saber o que vai ela fazer comigo e que jogo começou, entretanto tudo é agora mais estranho. Ela conseguiu encontrar um acidente de trajecto na minha vida. Uma empregada de um bar com quem eu num momento de desespero cometi um erro. Um erro que nunca mais consegui remediar. A partir daí decidi deixar tudo no passado. Desculpa Daphne se nunca te falei nela. A verdade é que agora neste momento parece que não podemos deixar nada no passado porque o passado volta sempre sem que o desejemos. Sim, é verdade, menti-te. Existiu um grande amor antes de ti. Um amor que se estragou por incompetência minha. E não restou nada. Talvez até pudéssemos ter ficado bons amigos. Mas não foi fácil para mim. Com a pressão de ser um dos que eram chamados “filhos da terra” que muitos privilégios acumulavam. Com a pressão dos meus pais, extremamente tradicionais em muitos dos valores de definição do que esta cidade era ou devia ser, para que eu fosse fazer um mestrado em economia e política nos Estados Unidos. Futuro desenhado, que cumpri sem nunca lhes ter dito que o que eu queria realmente ser era realizador de cinema. Não foi fácil para um jovem adulto com 21 anos apaixonar-se por uma rapariga da China continental, levemente mais velha, que eles consideravam não ter futuro. Foi uma relação a que sempre se opuseram. E eu deixei-me contaminar e não lutei. Como se estivesse destinado a ser para todo o sempre inapto para a vida.

Tudo começou na inauguração de um Casino qualquer. Ali estava ela a abrir as portas das salas VIP para os jogadores entrarem. Eu senti aquele olhar. Um olhar com a curiosidade de um potencial caso de amor. Não existiu nada de platónico na nossa relação. Quase de imediato estávamos a ir jantar fora e encontrarmo-nos aqui e ali. Será que a memória me atraiçoa? Na minha cabeça faço um esforço para não imaginar o que imagino. Mas, agora neste momento, acabo sempre a rever aquela relação como a mais perfeita de todas. Uma relação real. Um real cheio de sorrisos e cumplicidades. Apercebo-me agora que tu serviste como uma aproximação e que me relacionei contigo através do reino silencioso da imaginação. Desculpa…. Aos dez anos de idade lembro-me que ainda não tinha nenhuma imagem concreta do que é que significa ter sexo. Tudo o que queria das miúdas era que elas segurassem a minha mão. Queria apenas encontrar um lugar onde pudesse ficar sozinho com elas. Mas isso também não era permitido. Os adultos nunca se sentiram confortáveis com essas situações. Não sei se foi por isso que comecei a olhar para raparigas levemente mais velhas. Com elas não havia esse problema. A minha cobardia já com essa idade se revelava. Com uma rapariga mais velha eu sentia-me sempre mais protegido. Não sei. Tudo é um pouco confuso. Sei que agora tudo é diferente. Sinto as coisas de modo diferente. E não sei porquê. Gostava de poder voltar a encontrá-la para lhe dizer algo. Pelo que a “Viúva” está a dizer ela é a filha que abandonou em bebé. As peças do puzzle começam a encontrar o seu lugar correcto. Gostava de a encontrar e dizer-lhe qualquer coisa fora do normal que me fizesse esquecer a minha cobardia. Fui cobarde com ela. Fui cobarde contigo. Sou cobarde agora que te vejo, como um fantasma, aqui à volta e falo contigo como se tudo no mundo dependesse apenas do meu bem estar. Fui cobarde e egoísta. Gostava de a encontrar e ter coragem para lhe sussurrar todos os segredos. Do mesmo modo como sussurro para ti que, percebo agora, não passas de uma construção mental minha. Desculpa-me Daphne. Mas sim. Amei-a como não amei ninguém. E destrui tudo. Porque assim estava destinado. Porque sou fraco. Quando terminámos e eu sai da casa onde fui mais feliz os olhos dela foram água. Naquele momento toda a profundidade e brilho que conheci antes havia desaparecido. Muitas vezes parece-me como algo que aconteceu num sonho. Será que aconteceu mesmo? Está ainda muito presente em mim aquela sensação do toque na pele dela. Sabes por vezes parece que a felicidade não nos altera. Será que a tristeza o faz? Pensa na coisa mais triste da tua vida.

A coisa mais triste da minha vida sou eu próprio. O que aconteceria se eu parasse de confiar nos meus pais e tivesse confiado no amor? Porque continuo a lamentar as minha atitudes, ou, mais precisamente, a minha falta de acção? Abutres. Gostava de, finalmente, poder pensar nas palavras que tenho para lhe dizer. Já deveria ter falado com ela. Mas o que é que lhe deveria ter dito? Não teria sido tão difícil se a tivesse procurado quando voltei e lhe tivesse dito o que sentia. O que sinto. O que sinto agora enquanto oiço a “Viúva” a falar dela. Como o coração bate rápido. Se ao menos tivesse encontrado uma outra oportunidade. Se tivesse mais coragem. Mas isso parece impossível. E agora as oportunidade parecem perdidas para sempre e não sei o que fazer. Agora sou a parte negra de mim. Agora sou a morte. Apenas com o amor conseguimos criar a ilusão de que não estamos sós. Mas agora percebo que se calhar não tinha 21 anos. Se calhar tudo isto aconteceu no ano passado. Todas estas mulheres malditas com nomes ridículos que existiram no meio dela e de ti. Com sorrisos cativantes. Jovens. Se calhar tudo isto foi no ano passado. Parece-me agora que elas foram sempre mais novas. Que ela era muito mais nova do que eu. Não tens mais nenhum lugar para estar Daphne? Num mundo completamente são não é a loucura a verdadeira liberdade? Como é que a voz consegue alguma vez articular as emoções mais escondidas dentro de nós? Será que o silêncio tem uma presença? E o que é que significa? Ninguém sabe realmente o que está a fazer aqui. Para o que veio. O que lhe está destinado. Porque estamos todos tão absorvidos com a nossa presença? Porque vejo sempre este homem velho a acenar para mim e eu a acenar de volta? Talvez se esta cidade não estivesse sempre debaixo de um capacete. Talvez assim a felicidade fosse possível. Se existisse um pouco mais de sol durante o ano.

“Sunny / Yesterday my life was filled with rain / Sunny / you smiled at me and really eased the pain / Now the dark days are gone, and the bright days are here / My sunny one shines so sincere / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for your sunshine bouquet / Sunny / Thank you for the love you brought my way / You gave to me your all and all / And now I feel ten feet tal / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for the truth you let me see / Sunny / Thank you for the facts from A to Z / My life was torn like wind-blown sand / And a rock was formed when you held my hand (oh Sunny) / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for te smile upon your face / Sunny / Thank you, thank you for the gleam that shows its grace / You’re my spark of nature’s fire / You’re my sweet complete desire / Sunny one so true, yes I love you. 1

1. Sunny de Bobby Hebb.

25 Ago 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 23 – A viúva

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s teus músculos vão começar a contrair-se. Um processo que se prolonga por dez a vinte minutos. Não sentirás os músculos depois disso. Como se o teu corpo estivesse morto. Morto. Como se alguém tivesse desligado um interruptor. A única coisa que te parece funcionar é o cérebro. Durante esses dez ou vinte minutos irás tentar perceber o que fizeste. Irás pensar em todas aquelas vezes em que poderias ter voltado para casa. Deixar este lugar. Esta cidade maldita. Irás pensar na tua casa. Lá longe. Naquela ilha das filipinas. E como um barco que procura abrigo numa tempestade tentarás em vão combater a dormência. Porque já não tens enseadas. Nem uma enseada. Estiveste aqui a viver como uma clandestina. Mudaste de passaporte cada 5 anos. E, embora a paralisia se vá tornar completa a tua mente irá permanecer completamente acordada. Desta vez com um clareza especial. Procuras a razão de tudo isto. Porque estás aqui presa nesta cadeira. Tu que em toda a tua vida não passaste de uma empregada de bar. Que o mais ultrajante que fizeste foi aquele encontro louco com um homem que reconheceste mais tarde ter-se tornado político. Pois é exactamente por causa disso. Mas pensas. Não há nada. Nem por um momento pensaste em ir à polícia fazer queixa das agressões daquela noite. Não há nada. Nada foi provado. Tu esqueceste e acreditas que ele também esqueceu. Durante esses dez ou vinte minutos não irás conseguir entender todos os detalhes daquilo que eu vou dizer ou fazer. Mas tudo bem. O que importa é que retenhas uma coisa apenas. Estás aqui porque falhaste. Falhaste ou em tornar aquele homem feliz ou porque te intrometeste numa relação que ele poderia ter retomado se tu não tivesses acontecido. Para qualquer das coisas falhaste. Foste leviana. O que me importa é que falhaste. E que as tuas acções alteraram o curso de vida de quatro pessoas. Esta é a oferta da tua redenção. Vocês os católicos acreditam nisso não é? De acordo com os desejos da tua religião na redenção dos teus pecados eu vou cumprir esse destino. Eu sou a “viúva” e a minha missão é voltar a trazer ordem ao mundo. Por isso tenho que te retirar deste mundo. Porque ainda existe uma possibilidade de eu conseguir repor alguma ordem. Vou dar-te uma morte indolor. Pelo menos fisicamente. Mas não será instantânea. Será lenta. Uma morte lenta. 18816P16T1-B

Mesmo que a felicidade possa acabar. Tens que perceber que a felicidade não é uma coisa oferecida. E isto não é um trabalho pedido por alguém. É apenas, se quiseres, um negócio meu com o teu passado e com o meu passado. Sabes que tenho dois filhos. Um acompanhei durante quase toda a vida mas o primeiro… O primeiro foi uma menina. Tinha 16 anos e tive que a abandonar à porta de uma clínica em Cantão. Estávamos no ano de 1992. Tu deves andar pela mesma idade não? Quantos anos tens hoje? 57? 55? Quantos anos tinhas em 2016 quando foste para a cama com aquele homem que estava sempre deprimido naquele bar onde trabalhavas? 24? 22? Ou és mais nova? E perguntas tu o que tem isso tudo a ver agora em 2049? Passado tanto tempo. Apesar disso eu sei que ainda existe uma possibilidade de, passado o pânico, começares a perceber a razão de tudo isto. É que, na realidade, isto, esta punição que te imponho, é por amor. Pelo amor à filha que perdi. Na esperança que ela se possa reencontrar. Que possa reencontrar o homem da vida dela. Sim. É verdade. Aquele homem com que foste para a cama. Ela estava apaixonadíssima. E tu… Tu que fizeste? Intrometeste-te e quebraste o fio do destino. Vou-te dizer que tinhas duas hipóteses. Ou não te teres metido com ele ou teres feito com que ele desaparecesse contigo para as Filipinas. Poderias até ter mudado de cara. Ele mudou de cara muitas vezes. Eu, por exemplo, não me oponho à ideia de perder a identidade. Não estou particularmente vinculada ao nome ou ao rosto e não tenho nada mais a perder no passado. É por isso que hoje irei repor o destino. A redefinição do propósito da minha vida. Esta é a única coisa que me importa e a qual eu tenho ansiado. Estranhamente, a única coisa que realmente importa. Também eu disse muitas vezes para mim própria: “estou assustada… não quero ficar sozinha”.

Mas não. A solidão não é uma opção. É um dado adquirido. Houve uma vez que assassinei um líder de um grupo das tríades. Também tive que desaparecer. Mudar de rosto. Mudar de nome. Mudar de estilo de vestir. Mas a única coisa que quis realmente alterar foi o tamanho dos meus seios. Eram pequenos e tristes. Foi um descontentamento inabalável ter chegado a uma certa idade com aquela forma e tamanha de seios. Muitas vezes me ocorreu se a vida teria sido diferente se por acaso tivesse tido seios maiores. Se a vida teria sido mais serena. Mais normal. Por isso quando tive que mudar de rosto e de nome vi uma oportunidade para os aumentar. Esse foi o meu mais forte desejo de mudança. Uma certa necessidade de me sentir mais desejada. Uma estupidez pensarás tu. Tu que tens uns seios excelentes. Imagino que ao ver os teus seios aquele homem tenha perdido o controlo de si mesmo. Em contraste com os seios da minha filha que muito naturalmente seguiam a forma e tamanho dos meus. Mas sabes o peito de uma mulher não é um bocado de massa. Não é um ingrediente para ter melhor sexo. O exagero com que tu provavelmente deixavas ver um pouco mais foi a tua falha inicial. Sabes que o curioso em mim é que quando aumentei os meus seios tudo mudou. Não me tornaria mais numa irreflectida. E o meu trabalho, enquanto assassina profissional, refinou-se. Tornei-me numa espécie de fantasma que ninguém conhece e capaz de levar uma vida dupla. Antes tremia com tudo. Tremia quando um homem me tocava na mão. Mas a partir daquele momento foi como se tivesse destinado a mim mesma um deserto. Porque já não tinha mais nenhum desejo de mudança. E sem desejo veio o deserto. O deserto do corpo. Até se tornar um deserto ressequido. E não houve mais amor.

18 Ago 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 22 – Ele

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]remorso. A culpa. O arrependimento. Aquilo que deveria ter feito e não fiz. Aquilo que deveria ter dito e não disse. Aquilo que não deveria ter feito e fiz. Aquilo que não deveria ter dito e disse. O remorso. A culpa. O arrependimento. Afogados em álcool. Num outro bar. Porque já não pode ser o mesmo. Porque não posso encontrar o acidente da outra noite. Porque esse acidente me afunda mais neste estado sem paz. Neste bar que parece perdido no tempo. Num tempo qualquer que não o nosso. Neste bar que me recorda o bar onde senti que te tinha perdido. Que nos tínhamos perdido. E que apropriadas as palavras da música que se ouvia ao fundo. E que apropriada a voz em lamento. Um lamento lamechas. E embalava o silêncio de nós. Naquele momento no qual não tínhamos mais nada para dizer.

“Where are those happy days, they seem so hard to find / I tried to reach for you, but you have closed your mind / Whatever happened to our love? / I wish I understood / It used to be so nice, it used to be so good / So when you near me, darling can’t you hear me? / S. O. S. / The love you gave me, nothing else can save me / S. O. S. / When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?…”1

Devia haver mais que uma palavra para o amor. O amor que mata. O amor que redime. O amor que acredita na culpa e o amor que salva a respiração. O que fazemos nós pelo amor? O que podemos fazer? Que extremos podemos chegar? Morrer por amor? Como Romeu e Julieta? E como Romeu ser enganado pelas circunstâncias e forçar a tragédia sobre nós? Aqui permanecerei eu. Aqui onde a minha carne não é mais que um capa desesperada. Aqui onde o céu desapareceu. Aqui onde o amor se perdeu. Aqui onde não devemos sentir o remorso. A culpa. O arrependimento. Aqui onde nem devemos sentir. Onde podemos atingir o insano. A demência. Porque não sentir é em si uma espécie de demência. Mas olham para nós como se fossemos nós os que não são sãos. E talvez seja isso mesmo afinal. Porque o amor pertence aos que não são puros. Aos não imaculados. E não ser puro é ser autêntico. E não ser puro é ser verdadeiro. Porque o amor pertence-nos a nós que temos dúvidas. Que matamos e morremos por amor.

E a triste, triste face da minha juventude. Mas porque pareceu que era esta a única possibilidade? Porque me sentia sozinho? E se sinto solidão quando estou só quer isso dizer que sou à partida uma má companhia? E que a minha solidão te atingiu? Te consumiu. Chegou até ti como um vírus? E como sobreviver a isto? Erros antigos acabam por vezes por criar sombras enormes dentro de nós. E como viver com essas sombras? Através da mentira? E uma mentira puxa a outra. E nenhuma curiosidade acerca disso. E o que é a curiosidade sobre o outro realmente? Puxar aqui e ali pontas de segredos? Procurar os pontos fracos e fortes? As decepções? As ilusões? Ou o completo reverso? E quando a curiosidade atinge o seu fim o que resta? De novo a decepção? E não há maior decepção que a decepção do eu. Quando te disse que estava decepcionado deveria ter dito que estava decepcionado comigo. O que eu queria dizer era que estava triste. Deveria ter tido a coragem. E deixei o erro de julgamento cobrir tudo o resto. E tudo aquilo que nunca fui sensível. Que assumi como oferecido. Que não duvidei. Porque tu és a mais bonita mulher do mundo. E não importa se nunca notei quando punhas batom ou se te vestias de propósito para mim. O que importa é tudo aquilo que nós esperámos de nós. O que tu esperaste de mim. O que eu esperei de ti. O que eu nunca esperei de mim.

Porque quando o amor encontra aqueles que não são puros. Os não perfeitos. Oferece-lhes uma via. Mas depois vem o medo. O medo é que nos mata. E a pessoa de quem temos mais medo é aquela a quem depositámos toda a nossa confiança. E temos medo de nós. Daquilo que somos ou não somos capazes de fazer. E o medo cresce até se tornar uma doença. A doença de ter medo de perder o outro e deixar de sermos nós. E desse modo acabar mesmo por perder o outro. O outro e nós. E não interessa o sexo. Sexo é apenas desejo. Uma comichão que precisa de ser coçada. Um arranhão que tem que ser dado. Uma dentada solta. Não interessa. Não resolve. Mas o amor. O amor é algo incompreensível. Que não se justifica. Que não se conhece. Que surpreende. É por isso que o medo é tão forte a combater o amor. Porque no fundo estamos todos quebrados por dentro. Com a alma em cacos. Que não conseguimos mais juntar. E é aí deixamos de ver o outro. Porque não nos conseguimos mais ver a nós próprios. E nesse momento não há ninguém que tenha a culpa. E não devemos forçar a culpa sobre nós próprios. O arrependimento. O remorso.

“…You seem so far away though you are standing near / You made me feel alive, but something died I fear / I really tried to make it out / I wish I understood / What happened to our love, it used to be so good / So when you near me darling can’t you hear me? / S. O. S. / The love you gave me, nothing else can save me / S. O. S. / When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?”

E as tuas palavras que me ecoam na cabeça. Acusações. Acusações que não eram acusações mas sim gritos desesperados de socorro. De compreensão. E as tuas palavras que me chegaram como setas. E eu surdo. E dizias que eu olhava para ti e assumia coisas que não eram verdade. Que toda a gente olha para ti da mesma forma. E que eu afinal também. Que tinhas vindo para esta terra tão cheia de esperança. Tão agradecida por deixar para trás um passado tão mau. E que eu, de toda a gente, devia conseguir ver o que as pessoas nesta terra não conseguem discernir. Que não percebem o modo como nos tratam. Mas eu deveria ser diferente. Que eu via a solidão. Via o isolamento. Via o modo como olham para nó. Eles olham para nós como se fossemos monstros. Porque eu, de toda a gente, deveria saber isso tão bem como tu. Porque, apesar de aceite numa qualquer comunidade de hipotéticos escolhidos, e independentemente de ser de cá, tenho um tom de pele diferente. Porque tenho raízes estrangeiras. E que eu deveria perceber o que é não ter terra. Não ter família. Ter sido abandonada ainda bebé. E o quanto custa tentar tanto fazer parte de alguma coisa aqui. Encontrar um espaço. O quanto custa e que custa tanto que por vezes se perde a respiração. O quão difícil é apenas ser. Apenas ser. Porque nem isso parece ser possível. As tuas palavras e o remorso. A culpa. O arrependimento.

“When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?”

1. Abba – S.O.S.

Nota: Por lapso não foi referido no episódio anterior (21) que a citação pertence a “Os Hinos à Noite” de Novalis. Pelo facto o autor pede as suas desculpas aos leitores.

11 Ago 2016