Da tragédia à farsa

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á umas semanas atrás fiz um comentário no Facebook sobre algo que considero um devaneio que não tem nada a ver com arte e a que chamei como “the pathetic unspoken tragedy of the Macau art scene”. O resultado esperado com um número razoável de “gostos” e com a perturbação de algumas pessoas. Dentro das regras de convivência do facebook e do mundo em geral vamos aceitando as opiniões divergentes da nossa, tentando perceber a frustração dos outros, dando o devido desconto a respostas mais emocionais e tentando responder com dignidade e gentileza. Por limitações de espaço e objectividade do comentário deixei a coisa correr reservando uma mais longa reflexão sobre o problema para este espaço.
Considero que numa terra que se vai abstraindo do discurso de arte contemporânea – com a inexistência de uma escola de artes plásticas, com a inexistência de um Museu ou centro que o faça, com a inexistência de galerias que o façam, com a inexistência de discurso crítico nos media e no meio artístico em si – seja natural serem os artistas a fazer esse tipo de análise, Considero também que os artistas devem por seu lado estar imbuídos de um forte sentido de auto crítica e conhecimento geral sobre aquilo que se passa realmente na área ao nível internacional antes de qualquer análise daquilo que se passa ao seu redor.
Dito isto e voltando ao foco do meu comentário no facebook gostaria de dizer que o autor da peça que originou o comentário é mencionado nos meus workshops sobre práticas artísticas contemporâneas, como caso ilustrativo de determinadas coisas, e que em nenhum momento nas minhas aulas afirmo que é bom ou mau, ou defendo esta prática ou aquela, tentando oferecer aos meus alunos a possibilidade de poderem pensar, ter o seu próprio discurso crítico, e decidir por si. Volto a insistir também que considero existir espaço na arte para a maior variedade de práticas possíveis e é exactamente isso que faz com que a arte contemporânea seja hoje um terreno tão único e prolífero em ideias e trabalhos. Mas gostaria também de alertar que temos que ter a cabeça suficientemente atenta para a possibilidade da existência de fraudes intelectuais. E de que essas fraudes acontecem muitas vezes não especialmente pelos trabalhos em si mas pela perversão de certos valores essenciais à razão de existência da arte na vida.
Para que esta argumentação se torne mais clara gostaria de voltar ao tom ambíguo, implícito no comentário, com especial foco nas palavras “pathetic unspoken tragedy”, e no que poderei estar realmente a dizer. Se começarmos com o significado de “pathetic” (patético) descobrimos que é  “algo que desperta dó especialmente através de vulnerabilidade ou tristeza. Por outro lado “unspoken” (não dito) é “algo que não é declarado ou não é expresso em discurso”. E a minha favorita das três palavras “tragedy” (tragédia), que irá sempre ser lida como “um evento que causa grande sofrimento”, mas que, e isto é importante – acredito que a maior parte das pessoas leu no sentido que eu quis inserir – “uma peça de teatro ou filme que lida com eventos trágicos que tem um fim infeliz e que é directamente relacionado com a queda do personagem principal”. O meu uso da palavra “tragedy”, na frase, implica, sarcasticamente, que poderá existir algo de profético e ironicamente maldoso no aparecimento de tal peça, de Jeff Koons, que foi comprada pelo impressionante valor de 33,6 milhões de dólares americanos, em Macau. A farsa em construção portanto.
Tragédia é decepção. Qualquer exemplo de Sófocles a Shakespeare ou às tragédias modernas assenta nessa premissa. Os personagens centrais são atravessados por um estado de falhanço moral, em situações nas quais prejudicam outros, tendo isso uma consequência prejudicial para eles próprios. Por exemplo Édipo, que acidentalmente concretiza uma profecia da qual foi avisado de que acabaria por matar o seu pai e casar com a mãe com consequências dramáticas para si, para a sua cidade e família. Édipo representa dois dos temas recorrentes no mito e drama gregos: a natureza falhada da humanidade e o protagonismo individual no destino de uma realidade desastrosa. Outro caso, o de Hamlet, onde o “ser ou não ser” estabelece o espaço para uma vingança preordenada pelo fantasma de seu pai, e entre ser aquele que os outros querem e aquele que ele nunca se julga capaz de ser, Hamlet provoca o suicídio da sua namorada Ofélia, quando por erro de julgamento mata a pessoa errada, o pai de Ofélia. Um destino Hegeliano o de Hamlet, destinado a ser um criminoso pela sua própria alienação de si e do mundo. Um exemplo na tragédia contemporânea é o de Walter White na brilhante série americana Breaking Bad. Apanhado pelo cancro dedica-se à produção de meta-anfetamina com a desculpa de que o faz pela família resultando nas consequências mais desastrosas possíveis. Momento da verdade no último episódio quando afirma finalmente “I did it for me. I liked it”. O que aprendemos com o género da tragédia é que somos nós que estamos destinados a cumprir os nossos próprios dramas e que, de algum modo, já sabíamos que eles iam acontecer. Macau, ou a arte em Macau, é nesse sentido a personagem central da sua própria tragédia.
Voltando a Koons, para que se limpem certos mitos, gostaria de notar que:
1) Jeff Koons não trabalhou nas “Tulips” por mais de vinte anos como ouvi dizer por mais do que uma pessoa. Não que seja realmente importante para além de que factos são factos e que com uma visita ao seu website facilmente se comprova que o trabalho está datado como sendo de 1995/2004.
2) A peça não pode ser considerada uma peça única. Também no seu website pode-se ver que existem 5 variantes do mesmo.
3) O trabalho foi feito por molde o que significa que não foi feito pela mão. Ou seja se Koons assim o quiser pode continuar a produzir mais “Tulips”. Atenção que não acho que ser feito à mão ou não seja o factor essencial para uma boa peça de arte. O importante, neste caso, é perceber-se que esta pessoa trabalha com um número muito alargado de assistentes e usa técnicas industriais para produzir os seus designs.
4) Jeff Koons funciona como uma máquina muito bem oleada de fazer dinheiro e mesmo que tivesse demorado vinte anos até esta variação, o que não aconteceu, isso não quer dizer que esteve parado, com as mãos na cabeça, dúvidas existenciais e problemas financeiros só a trabalhar nesta peça. Esse romantização do artista na contemporaneidade é um mito. Uma visita ao seu website confirma que nos últimos vinte anos terminou 31 projectos da série “Celebration”, da qual as “Tulips” fazem parte e os mais famosos são os “Ballon Dogs”, e que cada projecto teve sempre mais de três variantes, mais provas de autor, com um total de mais de 100 peças. A este número juntam-se mais de 200 trabalhos noutras séries que são vulgarmente vendidos por figuras de mais de 6 a 7 zeros em dólares americanos.
5) Jeff Koons é conhecido no mundo da arte por ser um manipulador de audiências como é exemplo o seu casamento com a actriz porno húngaro-italiana Ilona Staller, largamente conhecida como Cicciolina, com a qual realizou trabalho de cariz erótico-agitador que foi exibido na Bienal de Veneza.
E o que é que se pode fazer à frente de uma decoração de aço inoxidável espelhado e polido com cores? Tirar um selfie. A verdade é que aparentemente os trabalhos de Koons já não servem para mais nada do que isso mas também não me parece que ele esteja muito preocupado com isso.
Tudo isto não é só tragédia ou farsa. Tudo isto é também freudiano e merece uma reflexão profunda em cada um de nós. 33,6 milhões de dólares americanos para quê? Para uns selfies? Para se revender daqui a uns anos por 45 ou 50 milhões e continuar a dizer-se cinicamente que somos “art lovers”? Qual é realmente o valor das coisas e o que é que realmente é mais importante para este mundo? Entre os neuróticos, que somos a maior parte de nós, existem os perversos. O mundo precisa de mais pensamento e debate crítico e de menos decorações de salão. A arte já não é isto. Já não é só um ornamento nas casas dos abastados. A perversão é só de alguns.

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