Perspectivas VozesO terrorismo Huti Jorge Rodrigues Simão - 23 Mai 2024 “We have repeatedly stated without hesitation that supporting Palestine and resistance groups is on the agenda of the Islamic Republic’s policies” Iranian President Ebrahim Raisi, in 14.01.2024 Apesar do crescente apoio de Teerão, os “Partidários de Deus” estão a prosseguir a sua agenda que é independente do Irão traduzida na rivalidade com Saná, normalização com uma Arábia Saudita cansada de guerra e uma paz em Gaza que não estabilizará o Mar Vermelho. Desde 19 de Novembro de 2023, dia do sequestro do cargueiro “Galaxy Leader”, o Mar Vermelho voltou a estar no centro da cena internacional. O ataque ao cargueiro ligado ao magnata israelita Abraham “Rami” Ungar pelo movimento iemenita político-religioso Ansar Allah, (Partidários de Deus), mais conhecido como ” Hutis”, marcou o início de uma nova e crítica fase de escalada neste ponto estratégico entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico. Nos últimos meses, os Hutis realizaram dezenas de ataques contra navios mercantes em trânsito no sul do Mar Vermelho, perto de Bab-el-Mandeb e do Golfo de Aden, lançando mais de uma centena de mísseis e ataques com drones a partir dos territórios iemenitas sob o seu controlo. A estratégia de desestabilização das rotas marítimas internacionais e os repetidos ataques contra Israel dirigidos sobretudo contra o porto meridional de Eilat estão ligados à tragédia humanitária que se vive em Gaza e à ofensiva israelita. Embora os navios mercantes não pertencentes ao Estado judaico também tenham sido alvo dos Hutis, o grupo iemenita tem, de facto, sublinhado repetidamente que o bloqueio marítimo e as acções militares no sul do Mar Vermelho dizem respeito a navios comerciais ligados a Israel ou destinados a portos israelitas, condicionando a cessação das hostilidades ao “levantamento do cerco de Gaza”. Num comunicado oficial de 6 de Janeiro de 2024, o movimento foi mais longe, declarando que as suas “operações” estão em conformidade com o direito internacional, especificamente o artigo 1.º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948). A imprensa e a articulada máquina mediática pró-Huti elevam as acções do movimento a uma “batalha de apoio” à libertação dos territórios palestinianos ocupados. O líder Abdul-Malik al-Houthi, num discurso proferido no final de Dezembro de 2023, apelou aos “países vizinhos” para que abrissem as suas fronteiras a fim de permitir aos seus “Mujahidin” (combatentes da jihad) “entrar na Palestina”. Para além da retórica, são os interesses regionais especiais e os cálculos internos que orientam a estratégia político-militar de Ansar Allah relativamente à guerra de Gaza, bem como a escalada no Mar Vermelho. A nível regional, os Hutis viram no conflito da Faixa de Gaza uma oportunidade para reforçar os laços com o “eixo de resistência” liderado pelo Irão, que inclui Hezbollah, o governo sírio de Bashar al-Asad, as milícias xiitas iraquianas e o grupo palestiniano Hamas. Mas também uma oportunidade importante para reforçar a sua posição negocial nas conversações de paz em curso com a Arábia Saudita, a fim de obter o reconhecimento internacional e legitimar o seu poder. Ao mesmo tempo, pretendem aproveitar a onda de indignação e tornar-se o porta-voz do sentimento “pró-palestiniano” no mundo árabe-islâmico, a fim de aumentar o consenso interno. Os Hutis, agindo como Estado, organizaram desde 7 de Outubro de 2023 mais de um milhar de manifestações a favor da Palestina nos territórios que controlam e recrutaram pelo menos 25 mil novos combatentes nas Brigadas Al-Qassam, provavelmente para serem utilizados contra o governo iemenita reconhecido internacionalmente. Algumas semanas antes do início da guerra entre Israel e o Hamas, os Hutis organizaram uma grande parada militar na capital Saná, exibindo o seu arsenal de drones e mísseis de longo alcance para demonstrar as suas capacidades militares adquiridas. Assim, não é de excluir que o movimento aproveite os recentes acontecimentos no Mar Vermelho, bem como a tragédia em Gaza, para lançar ataques contra o governo do Iémen (o Conselho Presidencial) em zonas estrategicamente importantes como al-Dali, al-Hudayda, Marib, Sabwa e Taizz. Os Hutis, confrontados com fortes protestos populares devidos principalmente à desastrosa situação humanitária e económica no Iémen, querem tirar partido da guerra em Gaza e da crescente mobilização no Mar Vermelho para aumentar o consenso interno. O ataque conjunto dos Estados Unidos e do Reino Unido em 12 de Janeiro de 2024 contra alvos militares jogou a favor dessa estratégia e centenas de milhares de iemenitas saíram às ruas, inclusive na capital Saná, para condenar os ataques, agitando bandeiras do Iémen e da Palestina e gritando “Deus é grande, morte à América e a Israel, amaldiçoando os judeus e vitória ao Islão”, era o slogan oficial do movimento. No entanto, mais do que um acto de fé para com os Hutis, estas manifestações de “apoio” popular são muitas vezes uma expressão de hostilidade partilhada em relação a Israel e a qualquer intervenção militar estrangeira em território iemenita. O Irão pode estar mais do que satisfeito com a actual escalada no Mar Vermelho. As ações militares perpetradas pelo Hutis enquadram-se perfeitamente na estratégia do Irão de exercer pressão sobre os Estados Unidos e Israel no quadro da guerra em Gaza, evitando o risco de um confronto directo. Em visita a Teerão em Dezembro de 2023, o porta-voz oficial de Ansar Allah, Muhammad Abdul Salam conversou com altos funcionários iranianos, incluindo o secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional, Ali Akbar Ahmadian, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Hussein Amir-Abdollahian, recebendo “apreço e agradecimentos” pelo seu apoio “forte e autoritário” ao povo palestiniano. Para o Irão, que desde a eclosão do conflito reafirmou o seu compromisso de fornecer apenas apoio político e não militar, os Hutis representam um trunfo importante no apoio ao “eixo da resistência”. Isto reafirma, em parte, o desejo do Irão de evitar uma guerra regional em grande escala. Esta escolha foi também partilhada por Sayyid Hassan Nasrallah, político libanês, Secretário-Geral do partido e organização armada xiita Hezbollah, que agradeceu publicamente aos Hutis e à resistência islâmica no Iraque pelo seu empenho. Ansar Allah está a revelar-se um importante trunfo estratégico para o Irão, quase ao mesmo nível do Hezbollah. A localização do Iémen adquire um valor militar importante, pois o país é uma plataforma ideal para lançar ataques contra navios em trânsito e desestabilizar o comércio internacional ao longo de Bab-el-Mandeb e do Mar Vermelho. A distância que separa Saná de Israel impede que os Hutis o ameacem, mas permite operações militares destinadas a aumentar a pressão sobre o Estado judaico. No entanto, interpretar as opções estratégico-militares dos Hutis como uma simples implementação da vontade do Irão cujo envolvimento no Mar Vermelho continua a ser muito matizado é enganador, pois não permite compreender os seus interesses e necessidades particulares a nível local. A imagem dos Hutis como agentes do Irão é um produto do conflicto no Iémen e da sua leitura como terreno de confronto irano-saudita. Esta imagem foi principalmente alimentada por Riade para justificar a sua intervenção militar em 2015. Deve, portanto, ser inscrita na mudança do equilíbrio de poder no mundo árabe, que encontrou um importante ponto de ruptura nas “Primaveras Árabes” (2010-2011). A consolidação da profundidade estratégica do Irão na zona do Médio Oriente que culminou em 2015 com a assinatura do acordo “Jcpoa (Joint Comprehensive Plan of Action)” com os Estados Unidos e a percepção do afastamento americano da região iniciado com Obama, continuado com Trump e Biden consolidaram a imagem do Iémen como teatro da guerra por procuração entre o Irão e a Arábia Saudita. A política externa dos Hutis, que se dizem os verdadeiros representantes do Estado iemenita, é assim posta de lado, se não mesmo obliterada. A cooperação entre Ansar Allah e o Irão baseia-se numa insatisfação comum com o status quo regional, numa ideologia islamista partilhada e numa perspetiva anti-americana, anti-sionista e terceiro-mundista. A fé não tem nada a ver com tudo isto, uma vez que o grupo iemenita não pertence à denominação xiita duodecimano, mas é uma expressão do movimento revivalista zaidita. O projeto reformista iniciado por Hussein Badr al-Din al-Houthi, o fundador do movimento, deve provavelmente ser interpretado como uma reacção às terríveis condições políticas e económicas, aos abusos e à corrupção sistémica que caracterizaram o Iémen de Ali Abdullah Saleh entre os anos de 1990 e o início dos anos 2000. No seu seio, assiste-se ao confluir de diferentes ideologias, incluindo o khomeinismo, o islamismo da Irmandade Muçulmana e o jihadismo salafita. A onda de protestos que abalou o mundo árabe em 2010-2011 representou a primeira grande oportunidade para o Irão consolidar a sua aliança com os Hutis e transformar o Iémen numa plataforma de projecção regional. Embora, de acordo com um relatório da ONU, o Ansar Allah tenha começado a receber pequenas quantidades de armas de Teerão pelo menos desde 2009 quando estava empenhado em combater o governo central na “Batalha de Sadá ”, é a partir de 2011 que Teerão e o Hezbollah têm vindo a aumentar o seu apoio ao movimento com “financiamento, envio de armas e treino militar”. Este apoio é reforçado com a conquista da capital Saná pelos Hutis (2014) e após a operação militar liderada pela Arábia Saudita em apoio ao governo central deAbdrabbuh Mansur Hadi (2015). Para além de fornecer ao grupo quantidades crescentes de armas ligeiras, o Irão começou a fornecer armas mais avançadas e letais (mísseis anti-navio e mísseis balísticos) e concordou com Hezbollah no reforço das suas capacidades de produção e montagem de armas (como drones) em solo iemenita, utilizando componentes iranianos. Neste casamento de conveniência, os Hutis conheceram uma integração progressiva no chamado “eixo da resistência” graças a instituições como o Conselho Islâmico da Jihad, sem, no entanto, perderem a sua autonomia decisória e operacional. Além disso, embora o apoio militar iraniano tenha certamente desempenhado um papel importante na transformação dos Hutis de uma guerrilha local numa força armada mais sofisticada, uma parte significativa do arsenal do movimento deriva da absorção (negociada ou coerciva) de unidades do exército iemenita, de aquisições no mercado negro e de alianças com milícias tribais. (Continua)