Anabela Santiago, académica: “Vão aparecer alternativas à política zero casos”

Anabela Santiago, doutoranda pela Universidade de Aveiro e investigadora na área dos assuntos chineses, aponta que não é possível a China desconfinar da mesma forma que o Ocidente está a fazer, mas defende que poderão surgir “em breve” alternativas à política de zero casos covid-19. A académica aponta ainda que, com Xi Jinping, a propaganda chinesa passou a ter um maior foco na legitimidade do Partido

 

Como tem evoluído a propaganda na China nos últimos anos? Encontramos grandes diferenças entre líderes, sobretudo desde que Xi Jinping subiu ao poder?

A propaganda na China tem evoluído, tal como no resto do mundo, na forma como ela é veiculada e nos seus meios de suporte essencialmente. Refiro-me em concreto às plataformas digitais, às redes sociais mais populares da China como o Weibo ou o WeChat, por exemplo. Os meios de suporte dos mass media é que sofreram uma alteração devido à entrada na chamada era digital e aos milhões de utilizadores da Internet na RPC. A essência da propaganda, essa, também se foi moldando (embora mais lentamente) às mudanças ocorridas na sociedade chinesa, nomeadamente à melhoria da qualidade de vida da população em geral, o que acarretou um aumento exponencial da classe média chinesa e uma maior procura por fontes de informação. No que diz respeito aos sucessivos líderes e ao actual – Xi Jinping – a propaganda sempre serviu como um modo de difusão dos vários “motes” políticos adoptados ao longo das lideranças: o desenvolvimento com base na inovação científica, a criação de uma sociedade harmoniosa e mais recentemente o “sonho chinês”. Com Xi Jinping uma das principais diferenças é o retorno a um maior enfoque na legitimidade do PCC como via única para o progresso com um forte apelo ao nacionalismo e aos valores confuccionistas mais tradicionais.

Até que ponto tem sido feita uma adaptação às redes sociais e à comunicação social por parte do aparelho de propaganda? Há uma maior capacidade de atracção das gerações mais jovens ao Partido?

Tem havido uma adaptação à era digital no sentido de atrair mais população jovem. O Partido está consciente das mudanças ocorridas na sociedade e o facto de a população estar mais instruída e pedir mais informação levou a essa preocupação nos meios de comunicação social.  Também a preocupação com a imagem internacional levou a propaganda a assumir um papel cada vez mais de instrumento de “nation branding”, quer a nível interno, com um forte apelo ao nacionalismo e ao “grande rejuvenescimento da nação chinesa”; quer a nível externo, com um esforço nítido de se afirmar como actor relevante e responsável na nova ordem internacional.

Afirmou que a propaganda é uma ferramenta de soft power, sobretudo aplicada ao projecto da Rota da Seda da Saúde. Com o conflito na Ucrânia, acredita que a China terá de redefinir a sua estratégia de propaganda no que diz respeito à diplomacia, fomentando ainda mais a imagem de um actor mundial que não procura conflitos bélicos?

Creio que a China irá manter esta ambiguidade de posicionamento em que tem estado até agora desde o início da invasão russa à Ucrânia. Isto porque apesar das diversas transformações geopolíticas ocorridas no mundo globalizado nas últimas décadas, a China mantém-se fiel em termos de política internacional aos princípios que resultaram da Conferência de Bandung, em particular, os da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados-nação, o respeito pelas soberanias nacionais e integridade territorial. Portanto, apesar da “amizade” que tem com a Rússia e da rejeição no que diz respeito à acção da NATO, a RPC não apoia a invasão da Ucrânia. Pode até perceber os motivos, mas não aprova os meios bélicos para atingir os objectivos que a Rússia pretende atingir. Julgo que a China, nesta matéria, não irá mudar a sua posição nem a mensagem que tem vindo a passar nos meios de comunicação relativamente a este assunto.

A manutenção da política de casos zero de covid-19 no país e os impactos que esta está a ter na economia vai obrigar a um redesenhar da estratégia de propaganda a nível interno?

Dada a dimensão da população chinesa e a densidade populacional, sobretudo nas cidades, não é possível aliviar as medidas na China do mesmo modo que tem sido feito no Ocidente. Os confinamentos em massa continuam a ser a solução a mais curto prazo para conter surtos. No entanto, e muito devido aos impactos económicos e sociais causados por estes confinamentos e quarentenas prolongadas, o Governo chinês já manifestou a sua preocupação na busca por um modelo de combate que seja mais “científico e específico”. A retórica da “saúde das pessoas em primeiro lugar” vai ser mantida nos próximos tempos, mas a divulgação de novas alternativas à política de zero casos covid-19 irá começar a aparecer em breve com base em evidência científica, dando, quiçá, origem a uma “política anti-covid com características chinesas”.

Em relação ao conceito de Nation Branding, a China fá-lo de forma diferente face a outros países?

A China tem sentido uma necessidade acrescida de desenvolver campanhas no sentido de promover a sua imagem externa, visto que a sua rápida ascensão económica e o seu peso crescente na esfera política internacional a colocam no centro de muitos debates, ora numa posição de poder em ascensão pacífico, ora como uma ameaça ao status quo e ao equilíbrio mundial. Em 2003, encetou uma grande campanha de marketing externo se assim se pode chamar com o mote da ascensão pacífica (“PRC’s peaceful rise”). Outra grande manifestação de ‘Nation Branding’ ocorreu em 2008, com a realização dos Jogos Olímpicos em Pequim, que amplamente contribuiu para difundir a imagem de uma nação próspera, mas também coordenada, harmoniosa, integradora e acolhedora. As estratégias de ‘Nation Branding’ são amplamente estudadas ao pormenor, mas não diferem assim tanto das estratégias usadas noutros países.

O esforço de legitimação do Partido Comunista Chinês (PCC) poderá ser feito de outras formas, além da propaganda?

O esforço de legitimação do PCC é um trabalho implícito em toda a acção económica, política e social do Partido. Os resultados falam por si, mas começam a haver cada vez mais gerações na China que não conheceram outra realidade a não ser esta da China moderna e próspera. Portanto, a necessidade de lhes transmitir que isso só foi possível graças a uma economia de mercado socialista com características chinesas em que o PCC foi sempre o eixo central das políticas levadas a cabo é essencial do ponto de vista dos altos dirigentes do PCC e, acima de tudo, do actual líder Xi Jinping. A propaganda estatal nisso tem um papel fundamental e continuará a tê-lo.

 

Propaganda no CCCM

Anabela Santiago foi uma das oradoras do ciclo de conferências de Primavera promovido pelo Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM). No passado dia 31 a doutoranda da Universidade de Aveiro deu a palestra intitulada “A dimensão externa das políticas públicas da China contemporânea: O papel da propaganda”, que deu origem a esta entrevista. O ciclo de conferências no CCCM acontece novamente entre os dias 18 e 23 deste mês, com um painel de conversas sobre a Ásia.

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