Artes, Letras e IdeiasDaqui para ali Valério Romão - 19 Mar 2021 Mudei recentemente de casa. O registo relativamente inusual da pandemia e a queda a pique do turismo de curta duração fez com que um ror de casas very cozy and typical in downtown Lisbon ficassem vazias, tendo os seus donos sentido a necessidade – tudo menos altruísta – de as devolverem ao mercado de arrendamento de longa duração. Neste contexto de incerteza, e com o meu contrato a terminar em Setembro do ano passado, pensei que o meu senhorio – cuja filosofia não passa pelo alojamento local a suecos – ia ver com bons olhos uma renovação de contrato, pelo menos por um ano, até as águas clarearem e se perceber melhor a margem de extorsão passível de ser aplicada aos arrendatários à luz do olhar imparcial do mercado. Para minha surpresa, o senhor tinha planos inadiáveis para a modesta habitação que eu partilhei durante largos anos com o Rim e o Croquete, os meus dois gatos: queria fazer obras de fundo e colocá-la num segmento superior do mercado de arrendamento. E não ia ser uma pandemia a demovê-lo. A ideia de mudar de casa, em Lisboa, sempre se me afigurou como um pesadelo. Além das complicações normais decorrentes de uma mudança – o transporte, o reequacionar de mobiliário e pertences, os livros que NUNCA cabem em lugar nenhum – há a questão não despicienda da inflação galopante no mercado de arrendamento. Uma pessoa faz um contrato e passados três meses apenas já se sente afortunada por estar a pagar um valor que no momento da assinatura contratual lhe parecia abusivo. A pandemia, se alguma coisa de bom teve, foi a devolver alguma sensatez – ainda que parcelar e naturalmente transitória – a um mercado cujo fervilhar hormonal prometia enviar todos os remediados para a orla mais distante da subúrbia. Como se costuma dizer, há males que vêm para bem. Consegui encontrar uma casa – que uma amiga minha arrendava até no final do ano passado comprar uma casa bem longe de Lisboa, visto que não lhe apetecia continuar a pagar para estar num parque de diversões de usufruto alheio – muito perto daquela onde estava, a preços razoavelmente humanos e, para meu grande contentamento inesperado, com um pequeno mas glorioso terraço por onde o sol vagueia à tarde e de onde se vê Lisboa a namorar com o tejo. Uma casa em Lisboa a preços comportáveis é um achado; uma casa com terraço e vista devia ser passível de entrar no registo testamentário de bens legáveis a família ou amigos em registo de direito preferencial de opção. Claro que nem tudo é maravilhoso. A casa é último andar, os tectos são baixos e há zonas esconsas onde já deixei algum escalpe. Termicamente, é muito mais agreste do que o meu primeiro andar antigo generosamente ensanduichado entre dois pisos. O problema maior, no entanto, é o facto de as divisórias entre andares serem tão finas que consigo ouvir tudo quanto a minha vizinha de baixo faz em casa. É uma espécie de janela indiscreta sobre a vida alheia na modalidade auditiva. A minha vizinha é uma senhora idosa e bastante surda. Há decerto muito tempo que o controlo do volume de voz encravou nos nove. Não deve – como muitos idosos – ter dinheiro para comprar um aparelho auditivo (que são estupidamente caros), pelo que fala alto, atende o telefone como se tivesse a anunciar um incêndio e quando liga a televisão é como se vivesse comigo. Há muito tempo que optei por não ter antena ou serviço de subscrição televisão. A maior parte das coisas que estes oferecem não me interessam; as poucas que me interessam vejo-as alhures. Infelizmente, neste momento estou exposto das dez da manhã às dez da noite à procissão de conteúdos inenarráveis que os nossos três canais generalistas oferecem à população idosa. Qualquer dia ainda mando vir uma caixa de calcitrim. A verdade é que o aspecto mais dramático desta situação é pensar que dezenas de milhares de velhotes cuja idade acaba por incapacitar para as actividades que os afastavam do ecrã em tempos acabam por ter como única companhia a televisão e o seu chorrilho de disparates. São pessoas que cresceram em condições difíceis, sem acesso à educação e sem hábitos de leitura. A minha vizinha, acaso tivesse adquirido o gosto pelos livros, em vez de partilhar acriticamente uma realidade absolutamente desinteressante com todos aqueles que assistem aos mesmos programas ao mesmo tempo, podia escapulir-se através da janela sempre receptiva das páginas de um livro e alimentar paisagens interiores capazes de se bastarem a si mesmas e de frutificarem nas conversas com os outros. E isso tudo, muito convenientemente para mim, em silêncio.