Como um farol

[dropcap]H[/dropcap]abituamo-nos a saber que certos faróis dominam as encostas da terra. Lá em cima uma luz que aclara o tempo. Que tem tanto de meteorologia como de calendário. E avisa quem vem lá. Senão o farol, o sino de uma torre, um quebra-luz. Um tambor. Uma bandeira.

Henrique de Senna Fernandes representava o domínio de toda uma comunidade sempre com relutância em distinguir de onde vinha. Senna Fernandes era, por inteiro, a peça que unia o labirinto. Que o endireitava e lhe aprumava as pétalas, elevando as suas rosas. A sua presença abraçava toda a ideia de um passado. De uma regra de partilha que culminava na união entre os povos. E o mundo fez-se assim. Mais completo. Como quem olha para o Céu e diz: “Só mais um bocadinho”. E esse bocadinho durou 87 anos menos dez dias.

Henrique de Senna Fernandes nasceu em Macau, no dia 15 de Outubro de 1923. Na mesma volta da Terra nascia em Cuba o escritor italiano Italo Calvino. O filósofo francês Michel Foucault viria ao mundo exactamente três anos depois. Isto para quem quer acreditar na precisão dos astros, que ditam a personalidade do ser humano e lhe definem o rumo. O que é certo é que todos elegeram a escrita como o seu dever no mundo.

Dentro de Senna Fernandes, um rumorejar de realidades diversas que se escreveu nas entrelinhas da herança ancestral portuguesa, goesa e chinesa, que já se prolonga por dois séculos e por muitas gerações.

Foi essa álgebra que equacionou e definiu os passos de uma criança e o pôs a crescer num enclave tropical onde a portugalidade moldou a essência do cenário. Uma cidade calma, onde a vida simples acontecia e os governadores desembaraçavam os éditos directamente do seu palácio.

Henrique crescia na Praia Grande repleta de juncos e vapores alimentados nos despojos das caravelas. O mar a bater em território intocado ainda sem aterros, sem a abrupta mão do homem. Do outro lado, o interior, a viagem para a China, a pequena distância, na pega de uma tancaneira, com passagem fugidia pela Rua da Felicidade, onde outros sentidos se consumiam.

O ardor pela escrita começou cedo, aos 11 ou 12 anos, que anunciavam o despertar da puberdade e o remate da inocência. Do pai recebeu a amizade das letras, com o sabor dos livros que lhe despertavam a imaginação e o levavam para bem longe da sua península, nessa altura sem pontes e sem extensões. Aí disciplinou a sua ânsia e alongou o seu mundo.

Antes do liceu, a atenção de um professor exaltou-lhe as ideias, incitando-o a aprender mais, a ler com entusiasmo e a procurar enredos e esclarecimentos para a vida que badalava como sinos. Depois, a escrita mais a sério, desenfreada, a rabiscar cadernos com histórias que o encantavam. Normalmente com raparigas, que desde pequeno enfeitiçaram o seu traço, definindo toda a trama da sua literatura ainda por nascer.

No pano de fundo uma guerra. O Japão a assolar Hong Kong. A família a perder a prosperidade e a escrita a tornar-se o esconderijo de uma brincadeira muito mais séria. O seu olhar atirado para os outros a indagar os seus actores. À procura de falas e de amores proibidos, que lhe acercavam a alma. A misturar vivências, juntando os discordes da sociedade. Entretendo-se com eles, atirando-os ao ar, deixando-os a fermentar dentro de um baú, que se foi enchendo com os seus contos que revelavam muito mais do que uma juventude, formando, daí para a frente, uma personalidade que foi aprendendo a caminhar à sombra das suas personagens. Marinheiros, dançarinas, homens das leis. Outros fora delas.

Depois chegou a vez de Portugal, com o seu inusitado deslumbramento. Anos complicados em Coimbra, a debater-se com as intransigências de um mal amado curso de Direito, mas imprescindível para o seu futuro. Colega de Agostinho Neto, Carlos Wallenstein e do seu conterrâneo Carlos d’Assumpção, que com ele partilhava a ilustre ascendência bem-nascida em Macau. Desse período ficou o espanto e o júbilo das raízes portuguesas. Mais tarde conseguiu formular sentimentos aglutinando as suas duas origens, dizendo: “Se Portugal é a minha pátria, Macau é a minha mátria”, sempre com ironia por uma coisa que só se pode rever nas nuvens do céu. Senna Fernandes, apesar de tudo, sabia de onde vinha e conhecia o lugar para onde ia, porque aí tinha nascido.

De regresso ao território macaense o Direito deu-lhe a subsistência. Com escritório aberto na Almeida Ribeiro pôde delinear o seu rumo com pleno à vontade. A advocacia dava-lhe a liberdade financeira para construir os seus castelos e as suas princesas. Amante da boa vida, partiu para uma carreira dada a experiências e ensinamentos, formando no seu cargo de professor na Escola Comercial Pedro Nolasco – onde seria também director – os andamentos de centenas de macaenses e estudantes da sua língua-mãe. Lugar onde não faltaram os preceitos que nenhum compêndio sabia descrever. Conhecimentos de uma vida de muitos degraus que complementaram com dedicação a educação dos seus filhos.

À parte, ao sabor das ventoinhas no tecto, a sua escrita ganhou toda a consistência. Nos livros plantou os seus amores, a memória de desejos fugazes e proclamou a paixão assolapada pelo ente feminino que o ajudou a definir como nenhum outro a ambivalência do ser macaense com os seus intricados enredos apaixonados que envolviam orgulho, saudade e esperança. Do seu engenho saltaram “Nam Van” e “Mong-Há”, ambos livros de contos, e os seus mais brilhantes “Amor e Dedinhos de Pé” e “A Trança Feiticeira”, que ganharam o galardão de ingresso na grande tela do cinema.

Figura interventiva na sociedade de Macau, o escritor macaense – distinção que se deveria escrever sempre com maiúscula – nunca deixou de apontar o dedo à ineficácia de Portugal na elaboração de um plano de futuro para o território, que deixava passar os seus governadores como quem mudava de casaco, nunca se importando certeiramente com os alicerces da casa que foi construindo.

A família Senna Fernandes, apesar de alguns receios, acreditou sempre em Macau e aqui continuou a viver depois da passagem de testemunho para a China, país que nunca deixou de abraçar a figura da comunidade macaense como vínculo cravado na história e modelo de uma cultura única no mundo, de tolerância pacífica e interligação memorável. Da qual Henrique Senna Fernandes, para além das palavras que o tornaram eterno, foi o verdadeiro paradigma. No Homem, na compreensão e na herança que deixa.

Senna Fernandes foi dignificado quatro vezes pela administração portuguesa, recebendo a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1986), a Medalha de Mérito Cultural (1989) e a Medalha de Valor (1995), concedidas pelo governo de Macau, e o título de Grão-Oficial da Ordem de Sant’Iago de Espada, recebido das mãos do presidente Jorge Sampaio, em 1998. Seria ainda agraciado, já pela administração chinesa, com a Medalha de Mérito Cultural (2001) e com diversos títulos Honoris Causa, que confirmaram todo o carinho e importância concedidos pelas gentes da sua terra.

O advogado e escritor deixou viúva, sete filhos, nove netos e dois bisnetos. Senna Fernandes deixa também obra inacabada e uma imensa saudade em todo o fulgor expressivo de Macau, que do lado de lá da sua encosta nunca deixará de iluminar. Como um farol, o sino de uma torre ou um tambor.

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