Vozes8 de Maio de 2045 João Luz - 11 Mai 2020 [dropcap]M[/dropcap]eu amor, escrevo-te palavras que sei que nunca irás ler. Pouco tempo me sobra, dificilmente terei outro dia pela frente, estas linhas apenas tornam concretos os pensamentos que te dirijo. Perdemos a guerra, algo que, por certo, saberás melhor que eu. A frente que seguro com um pequeno e intrépido reduto luta para adiar o inevitável. Pagamos a nossa morte a crédito, em penosas prestações. O mundo perde connosco e nós perdemo-nos um ao outro. O futuro pertence à obediência cega, à irracional superioridade trazida de berço, à morte e degradação dos que pensam além do regime que aí vem, que se avizinhava há décadas e que ignorámos, outra vez, como um capricho passageiro. Passageira é a liberdade, o pensamento livre, o exercício puro do amor, a vida. Vimos a besta no horizonte e nada fizemos, deixámos que tomasse conta do discurso público, das instituições e até dos corações dos que culpam os outros dos seus próprios insucessos. Deixámos mal os que lutaram antes de nós para os nossos pais terem o luxo de nos dar livres ao mundo. Fomos perdendo, enquanto nos julgávamos invencíveis, enquanto defendíamos ingenuamente a liberdade de expressão dos que nunca esconderam todos quererem calar. Entregámos o povo à brutalidade da vingança mascarada de política social, demos de mão beijada as minorias à violência do preconceito torpe. Este quartel, que mal aguenta as ofensivas do inimigo, é o último reduto do longo somatório de derrotas que acumulamos, tantas que não tenho vida suficiente para elencar. Primeiro roubaram o povo de um sentido de verdade, depois escapou-se a história. A campanha contra o jornalismo começou sorrateiramente, em discussões pseudo-deontológicas entre objectivismo e subjectivismo que evoluíram para um diálogo de surdos entre dois grandes grupos económicos que transformaram a verdade numa questão de perspectiva. A partir daí a confiança no jornalismo independente morreu, como morreram os jornalistas autónomos, calados por falta de recursos e campanhas de difamação orquestradas pelas duas cabeças comunicativas do monstro bicéfalo que comeu a verdade. Factos passaram a ser uma questão sujeita a interpretação pessoal, cada um escolheu a verdade mais apropriada ao seu palato político, sem noção de que neste duelo nunca ganha a razão, nem o conhecimento, muito menos a ponderação e a elegância. Quando o palco da luta ideológica é a pocilga, o porco joga em casa e ganha sempre. Foi o que aconteceu. Depois da verdade, da factualidade, o passado foi editado para acomodar o regresso do fascismo ao poder. Segundo a versão revista, estes regimes nunca existiram, passaram a ser uma névoa indecifrável que virou a culpa para longe dos saudosistas em direcção a um abismo de desculpabilização absoluta. Se não consegues dizer o que foi o regime, se é impossível de concretizar, provavelmente não existiu. Se não existiu, como sabes que vai ser mau? A derrocada das instituições que constituem a república estava ao virar da esquina. A verdade, o passado e também a separação de poderes que equilibra as forças decisórias, tornaram-se três inimigos que conspiram na penumbra contra o lobo vestido de vontade popular. Só o líder paternal e autoritário pode salvar a população desta tão rocambolesca tramoia, que ninguém nunca conseguiu vislumbrar o objectivo concreto. Ainda assim, ficámos em choque a assistir atónitos à queda da justiça independente, à rendição do poder legislativo e à subida do executivo aos céus do absolutismo. Com o país controlado, era uma questão de tempo até à internacionalização incontrolável da besta pelo continente afora. A doença espalhou-se com a velocidade de contágio do vírus da propaganda e uniu-se com a solidariedade que só os cartéis conseguem congregar. Os dois blocos continentais ficaram cada vez mais definidos. De um lado, a nova ordem, assente em desumanas e antigas ideias, e a ordem estabelecida, sem força para aguentar direitos, liberdades e garantias, depois de décadas de sucessivas capitulações políticas. Antes da asfixia dos debilitados poderes que seguravam a democracia, já se previa a campanha de execuções em praça pública de dissidentes e contestatários do Rei Sol que esperava o amanhecer mais negro deste século. Quando reagimos já era tarde demais, quando pegámos nas armas já estávamos com a cabeça a prémio, entre a parede e o pelotão de fuzilamento. Como gostaria de te prometer que vais voltar a ter liberdade para escolheres o teu destino, autodeterminação para viajares, ires onde quiseres, falares com e sobre o que te apetecer, degustar os prazeres da arte sem limites. Mas sabes que não te posso garantir nada disso. Só espero que sejas poupada ao sofrimento e que voltes um dia a sorrir. Deus sabe como o mundo fica pobre sem o teu sorriso. Para sempre teu…