Entrevista MancheteAlfredo Gomes Dias, historiador, sobre Rocha Vieira: “Uma figura histórica, quer quisesse ou não” Andreia Sofia Silva - 20 Dez 2025 Lançado na quinta-feira no Porto, com a chancela da Guerra e Paz, “Macau: A Última Transição – Vasco Rocha Vieira (1991–1999)” é o resultado de um trabalho de 20 anos do historiador Alfredo Gomes Dias. A obra contém testemunhos pessoais de Rocha Vieira e detalhes documentados da última Administração portuguesa de Macau Acaba de lançar mais um livro sobre Rocha Vieira e a última Administração portuguesa de Macau. Fale-me do início deste projecto. Este projecto tem mais ou menos 20 anos, e começou quando conheci Rocha Vieira, em 2005, para fazer um texto para o livro “Governadores de Macau” [editado pela Livros do Oriente em 2013]. No meio disso, descobri que havia um fundo documental pessoal do general Rocha Vieira, enquanto governador. Como historiador, fiquei entusiasmado com a ideia. Ofereci-me para fazer, juntamente com ele, um projecto, a que chamámos “relatório”. Todos os documentos estavam em casa dele, em Lagoa, de onde era natural. Depois foram depositados num espaço cedido pela Câmara Municipal de Mafra e entre 2007 e 2013 trabalhei nessa documentação. Foi um trabalho solitário e prolongado, porque tive de organizar 1.700 caixas de documentação e conciliar com o meu trabalho de docente. Rocha Vieira foi adiando o projecto, dizendo que não, mas em 2016 disse-me para avançarmos com o “relatório”, o livro. Terminei a primeira versão em 2021. É um livro comprometido, no sentido em que pretende dar a visão do general Rocha Vieira do que foi o seu Governo. Não se trata de um trabalho académico. Teve acesso completo ao arquivo pessoal. Deu-me luz verde para consultar a documentação toda, não tive qualquer restrição. Rocha Vieira foi-me contando uma ou outra história com pormenor, deu-me linhas de orientação e revelou-me as preocupações dele durante a governação. Disse-me algumas posições que teve e depois os caminhos diferentes que se tomaram, e todo o livro é construído em torno das muitas conversas que tive com o general, em que recorro também à documentação. Temos a visão de tudo o que aconteceu entre 1991 e 1999 e as acções do governador nas diferentes dimensões da Administração, a nível económico, social e político, nas relações com a China e Lisboa, com Hong Kong, e depois tudo o que foi o trabalho relacionado com a transformação do território, como o nascimento do Cotai e as grandes obras que se foram fazendo. Fala-se também da fase da transição e os grandes temas, como a entrada das tropas chinesas em Macau, a cerimónia e como esta se organizou. Hoje vivemos num mundo imediato, e à velocidade de hoje é sempre estranho dizer que este livro demorou 20 anos a fazer-se. Podemos dizer que é a primeira vez que temos um testemunho tão completo da visão de Rocha Vieira sobre o seu Governo? A biografia editada [Vasco Rocha Vieira – Todos os Portos a que Cheguei] já dá muitas ideias das suas preocupações. O que acabei por fazer foi não me focar tanto na vida toda do general, mas apenas nos anos do Governo e desenvolver ao máximo muitos dos assuntos que Pedro Vieira colocou nessa biografia. Que assuntos estão então mais desenvolvidos nesta nova obra? Descrevo muito bem todos os processos ligados à transição de Macau, como a questão das leis e da localização, a necessidade de as traduzir para chinês. Esse foi um trabalho gigantesco. Depois abordo a construção de grandes obras, o nascimento do Cotai. Tudo isso com base nas plantas e planos originais pensados para o Cotai, onde se conhece o início da ideia para essa zona. Qualquer historiador que, no futuro, queira estudar o processo de transição, tem, necessariamente de passar por este livro. Não quero dizer que o que lá está é definitivo, porque nunca é. Mas é importante ter esta base e testemunho, que é enriquecido e fundamentado na documentação. Imagino que as polémicas do Governo de Rocha Vieira também estejam no livro. A quezília com Jorge Sampaio, a criação da Fundação Oriente em Portugal. Qual o testemunho de Rocha Vieira sobre estes dois momentos? Ele sempre manteve o mesmo discurso face ao que já tinha dito publicamente. Há um capítulo específico sobre a Fundação Oriente, onde se tenta, com o apoio da documentação, explicar o processo e porque é que Rocha Vieira, quando chega a Macau, tem a necessidade de resolver um problema que se arrastava e que era importante ultrapassar. Descreve-se a forma como ele o conseguiu resolver, pois era uma questão que estava a dificultar o diálogo com as autoridades chinesas. Está explicada a forma como Rocha Vieira se foi relacionando com os diferentes Governos da República [Portuguesa] e os diferentes Presidentes, as posições que foi tomando a fim de garantir o que era da sua responsabilidade. Enquanto esteve à frente do Governo, Rocha Vieira tentou sempre fazer vingar as suas visões, e uma das coisas interessantes é que tive acesso a cópias de actas de reuniões do Conselho de Estado, nas quais Rocha Vieira apresentava a sua visão sobre a situação de Macau. É um contributo interessante. Mas ele explica que a forma como dialogava com o Presidente Mário Soares era completamente diferente da forma como dialogava com Jorge Sampaio. A relação institucional alterou-se, a forma de estar numa reunião também era diferente. Isso é explicado, mas sem entrar pelo lado pessoal da quezília. Rocha Vieira saiu de Macau com a sensação de dever cumprido? Acho que ele saiu de Macau muito convicto, e toda a cerimónia da transferência acaba por nos dar um pouco essa imagem de que Portugal saiu da melhor maneira possível. Temos também de pensar que falamos de dois países completamente diferentes, e que um deles é gigante. E que, apesar dessa diferença, foi possível manter um diálogo quase de igual para igual entre dois Estados para resolver, da melhor maneira, uma questão específica que era Macau. O que mais me surpreendeu na visão de Rocha Vieira foi ele ter alterado a centralidade da visão para Macau. Em que sentido? De uma maneira geral os portugueses e as autoridades falavam de Macau pensando em garantir o processo de transição sem pôr em causa os interesses de Portugal. E o general Rocha Vieira inverte os termos da questão, ou seja, para se garantir os interesses de Macau, com a ideia de que garantir os interesses de Macau seria o mesmo de garantir os interesses de Portugal. Parece a mesma coisa, mas não é. Essa visão, para mim, é que foi surpreendente. Porquê? Porque ia contra o que era o discurso mais comum entre as autoridades e as pessoas responsáveis pela administração portuguesa [de Macau]. Esta ideia central acaba por mudar a forma como ele organiza o seu Governo, como age e o tipo de acções que desencadeia. Todas tinham a ver com esta convicção profunda, de que, nos anos que restavam, fosse garantido um grande desenvolvimento de Macau, a afirmação da cultura portuguesa, apoiando instituições, ou até com a Escola Portuguesa de Macau (EPM), cuja solução acabou por não ser a que ele propunha. Acabou por ser uma opção minimalista. Qual era, concretamente, a posição de Rocha Vieira? Era garantir que o antigo Liceu de Macau era a EPM, o que daria uma dimensão completamente diferente à escola face [à localização actual]. Não tem nada a ver. Ele não queria só uma escola portuguesa, mas também um espaço onde fosse possível desenvolver actividades culturais, criar um pólo cultural em Macau ligado a Portugal, e com uma opção muito mais digna do que aquela que foi, depois, a opção do Ministério da Educação, na figura de Marçal Grilo, que optou [pela localização] da antiga Escola Comercial. Portanto, o foco sempre foi garantir e desenvolver os interesses de Macau, a sua autonomia, e a questão do aeroporto era fundamental para garantir a autonomia de Macau. Pretendia-se também que Macau aderisse aos acordos internacionais relativamente ao respeito pelos direitos humanos. A ideia era que, conseguindo garantir os interesses de Macau, pensando o território como fazendo parte do segundo sistema da China, e que se investíssemos muito em Macau, estávamos, naturalmente, a defender os interesses portugueses e a deixar um grande legado. Qual foi o dossier mais complexo para Rocha Vieira? Acho que ele tinha uma grande mágoa relativamente à opção do Ministério da Educação para a escola portuguesa. Das conversas que fui tendo com ele [foi o que me pareceu]. Havia depois as questões de segurança, com as seitas, que acabaram por se resolver. Nos anos de 1997 e 1998 foram momentos muito críticos em Macau, mas como ele sempre foi tendo boas relações com as autoridades chinesas, isso levou a que a China tenha percebido a situação, passando a colaborar mais com as autoridades portuguesas em Macau, no sentido de controlar o problema. Sobre o Cotai, como surge a ideia? Surge no contexto das obras para o aeroporto, quando se percebe que seria relativamente fácil mobilizar as terras que estavam associadas às obras do aeroporto, aproveitando-se esse momento para fazer uma ligação e criar, no fundo, uma segunda centralidade urbana em Macau. Os planos iniciais do Cotai tinham a ver com o espaço urbano, espaços verdes, industriais. Todo o plano estava concebido para agregar diversas áreas, espaços sociais, como escolas ou a saúde, como se o Cotai fosse uma mini-cidade, digamos assim, no território. Mas quem teve, concretamente, a ideia? Foi uma ideia do Executivo de Rocha Vieira desenvolvida com secretários. A ideia partiu dele, quando se viu perante a questão das obras, e depois foi sendo desenvolvida com a equipa. Ele tinha sempre a preocupação de desenvolver as coisas com a equipa, garantindo também uma continuidade com o que se tinha feito antes. Quando conversava comigo, tinha o cuidado de dizer: “isto não começou comigo”, ou que para determinado trabalho tinha sido fundamental este ou aquele secretário. Nunca quis ficar com os louros que não eram dele, e isso também é um grande reconhecimento dos governadores anteriores. Portanto, o Cotai não era para ter tanta área destinada ao jogo. Pelo que analisei nos documentos, não havia a ideia de ceder um espaço tão grande para o entretenimento, com casinos. Penso que a visão inicial para o Cotai era um pouco mais equilibrada, com habitação, escolas, centros de saúde, espaços verdes. Era para ser um novo espaço urbano que ia nascer com todos os serviços necessários para funcionar, não era para ser só jogo. Ficaram para a história os momentos em que Rocha Vieira agarra a bandeira ao peito, comovido. Ele recordou consigo esses momentos? Sim, mas apesar da dimensão histórica do papel dele, Rocha Vieira não tinha propriamente noção do papel histórico que estava a desempenhar. Ele estava ali com uma missão e objectivos claros, sem pensar propriamente no protagonismo que podia ter no futuro. Uma vez, quando estávamos a almoçar, disse-lhe que podíamos relativizar o nosso trabalho, mas que ele ia tornar-se numa figura histórica para a história de Portugal, quer quisesse ou não. E o engraçado é que ele ficou a olhar para mim com uma cara de quem nunca tinha pensado nisso, com um ar muito surpreendido. De facto, é impensável tirar-lhe esse estatuto de último governador português em Macau em centenas de anos de história. Ainda por cima, ele esteve um período longo [9 anos], quando a maioria dos governadores esteve lá três ou quatro anos.