O Despertar Estratégico da Alemanha (II)

“The claim that a state’s security interest necessarily coincides with that of its citizens appears downright absurd.”

Ole Nymoen

Se os ditames draconianos do Plano Morgenthau proposta dos Estados Unidos em 1944 para desmilitarizar e desindustrializar a Alemanha após a II Guerra Mundial, transformando-a num país agrário e incapaz de iniciar novos conflitos ficaram letra morta, foi apenas porque, nesses mesmos meses, começava a amadurecer nos Estados Unidos a consciência de um conflito de fundo na Europa com a União Soviética. Com o passar das semanas, a prioridade deixou de ser a neutralização da Alemanha e passou a ser impedir que Moscovo a absorvesse na sua esfera de influência. Na interpretação de vários responsáveis americanos da época, antes de alcançar o Atlântico, o Exército Vermelho teria de se apoderar das capacidades industriais da Renânia e da região do Ruhr coração histórico da indústria alemã, com destaque para os sectores do carvão, aço, química, energia e logística.

Daí a necessidade de reerguer um Estado alemão ocidental e de orientar o seu potencial económico, humano e tecnológico contra o expansionismo soviético. Resumido num documento da CIA de 1949, o objectivo dos Estados Unidos passou a ser “o controlo permanente do poder alemão”. Oitenta anos depois, mudaram os contornos, não a substância. Hoje, para Washington, o desafio do século chama-se China, e os custos da defesa do Velho Continente devem recair sobre os europeus. A margem de manobra financeira da França e do Reino Unido é limitada, também devido aos seus dispendiosos arsenais nucleares. E, do ponto de vista dos polacos, bálticos e escandinavos, a Rússia é uma ameaça existencial, a conter e desgastar por todos os meios. Tudo aponta numa única direcção que é do rearmamento alemão. Segundo esta lógica, caberá à Alemanha assegurar a massa crítica de recursos económicos e forças convencionais que os restantes parceiros ocidentais não podem ou não querem mobilizar.

Naturalmente, pressuposto essencial desta aposta é que Berlim não aja por conta própria, construindo uma esfera de influência ou perseguindo interesses estritamente nacionais. Só assim se compreende que a República Federal, cujo ordenamento jurídico teoricamente proíbe até o envio de armas para zonas de conflito armado, esteja actualmente a debater se deve colocar tropas no terreno na Ucrânia. Nos últimos anos, os alemães quebraram vários tabus alguns de longa data, como o travão ao endividamento mas este seria, por razões evidentes, o mais clamoroso. Assim, em Agosto, no final da cimeira de Washington, Merz sublinhou que a Alemanha tem um “interesse fundamental” em cooperar para oferecer garantias a Kiev, com a imagem do chanceler nos papéis de um sinistro Tio Sam, acompanhada da legenda de que “Merz quer mandar-te para a Ucrânia? Nós não!” Até hoje, trata-se de uma perspectiva não só impopular segundo uma sondagem recente, pois 51 por cento dos alemães são contra e apenas 36 por cento a favor mas também tecnicamente impraticável.

Apesar do aumento significativo das despesas militares, o efectivo das Forças Armadas Alemãs continua a diminuir e a envelhecer. Parece fora de alcance até o objectivo de 203 mil unidades até 2031, meta que a comunidade estratégica de Berlin-Mitte, o distrito mais central e histórico de Berlim, considerado o coração político, cultural e turístico da capital alemã considera totalmente insuficiente para satisfazer as actuais necessidades de segurança alemãs. Nos últimos três anos, os cerca de 180 mil efectivos diminuíram ligeiramente. É difícil imaginar que a reforma do serviço militar recentemente aprovada pelo governo federal possa representar a solução, pois o recrutamento, por agora, continuará a ser voluntário. Não estamos, portanto, perante um processo linear. Mas convém recordar que, por mais que diariamente legiões de especialistas se esforcem por apresentar o rearmamento alemão como a panaceia para todos os males do Ocidente, continua a ser uma aposta de alto risco.

Sobretudo porque o contexto estratégico europeu é radicalmente diferente daquele que, no pós-guerra, levou Washington a deixar-se convencer por Londres e Paris a não abandonar a Europa. Na altura, foram os líderes franceses em particular figuras como Robert Schuman e Jean Monnet que defenderam com firmeza que qualquer retirada das tropas americanas teria “consequências desastrosas” para a segurança nacional dos vencedores. E nos Estados Unidos havia plena consciência de que a reaproximação entre França e a Alemanha era condição fundamental para dar solidez ao bloco ocidental. Como estabeleceu o secretário de Estado Dean Acheson que desempenhou um papel central na formulação da política externa americana durante os primeiros anos da Guerra Fria, afirmaria em 1949 de que “Só a França pode assumir a liderança decisiva na integração da Alemanha na Europa Ocidental… se quiser evitar um domínio russo ou alemão ou talvez russo-alemão na Europa.”

Tendo toda a consideração pela retórica europeísta, sem as garantias de segurança dos Estados Unidos não teria existido qualquer eixo franco-alemão, verdadeiro motor da integração europeia. A prova está à vista de todos e será coincidência que o parcial descomprometimento americano com o continente coincida hoje com uma crise nas relações entre a Alemanha e a França? Washington parece cada vez mais distante. Reemergem feridas antigas, nunca totalmente saradas. Em particular, a origem das tensões entre as duas margens do Reno reside numa percepção oposta do rearmamento alemão. Paris receia que possa se transformar a República Federal numa potência assertiva e desvinculada de qualquer controlo. Berlim, por sua vez, suspeita que os franceses pretendem utilizar os fundos alemães para promover as suas ambições dispendiosas. Trata-se de uma fractura estrutural, impossível de colmatar por completo, independentemente da boa vontade de Merz e Macron.

(Continua)

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários