In Memoriam do Chef António Coelho

“I love Portuguese food. I love the traditional and authentic cuisine. It’s the one I learned in Portugal. For me, that’s very important because I prefer the traditional things.”

Chef António Neves Coelho

O guardião da culinária luso-macaense e querido amigo, Chef António das Neves Coelho, deixou-nos no dia 12 de Outubro de 2025, no Hospital Conde de São Januário. Figura maior da gastronomia portuguesa em Macau, mentor de gerações, defensor da autenticidade culinária e símbolo de resiliência institucional. A sua partida representa uma perda irreparável para a cultura gastronómica da RAEM e para a memória afectiva de todos os que com ele partilharam mesa, cozinha e sonhos. O Chef António cresceu entre aromas de azeite, alho e vinho tinto. Desde cedo, revelou uma vocação rara para a cozinha, não apenas como técnica, mas como narrativa cultural.

A sua formação passou por casas emblemáticas da gastronomia portuguesa, onde aprendeu a respeitar os ingredientes, os tempos e os afectos que compõem a tradição culinária. A sua carreira internacional levou-o a três continentes e, finalmente, a Macau território onde cumpriu o serviço militar e encontrou o seu verdadeiro palco. A partir de 1997, consolidou-se como Executive Chef e gestor de operações em espaços de referência, tornando-se um dos principais embaixadores da cozinha portuguesa e macaense. Macau não foi apenas o seu destino profissional mas o seu lar espiritual. António compreendeu que a culinária macaense não é apenas uma fusão de sabores, mas também de histórias. Com sensibilidade e rigor, tornou-se defensor da preservação das receitas tradicionais, da valorização dos ingredientes locais e da formação de equipas multiculturais com espírito de missão.

Fundou uma marca própria, onde actuou como director culinário e gestor geral por mais de uma década no António Restaurante recebendo 12 recomendações Michelin, entre outras. A sua liderança era marcada por uma combinação rara de exigência técnica, empatia humana e visão estratégica. A sua cozinha era feita de azeite e afecto, de técnica e ternura, de rigor e poesia. O seu contributo foi reconhecido por duas distinções de elevado prestígio como a Medalha de Mérito Turístico, atribuída pelo Governo da RAEM, em reconhecimento pelo seu papel no desenvolvimento do sector da hospitalidade e da cultura gastronómica local e a Medalha de Mérito das Comunidades Portuguesas, atribuída pelo Governo de Portugal, pela sua acção como ponte cultural entre continentes e pela promoção da identidade portuguesa no exterior.

Estas honrarias não foram apenas troféus mas testemunhos da sua dedicação à causa pública, à cultura e à excelência. Em 2024, o Chef António assumiu a liderança de um novo projecto gastronómico no Angela Café & Lounge do Lisboeta Macau. Ali, criou um menu que celebrava a essência portuguesa e macaense, com pratos como bacalhau à lagareiro, arroz de marisco e sobremesas com toque conventual. O espaço tornou-se um ponto de encontro entre tradição e modernidade, entre turistas e locais, entre memória e futuro. A sua equipa, formada e inspirada por ele, continua a representar os pilares da sua visão com dedicação, criatividade e compromisso com a excelência. O falecimento do Chef António representa uma perda humana e institucional de grande significado. Mas o seu legado permanece vivo na memória dos clientes que saborearam os seus pratos; na formação dos profissionais que com ele aprenderam; na identidade institucional dos espaços que ajudou a construir e na cultura gastronómica de Macau e da diáspora portuguesa

A sua obra não termina com a sua partida mas continua em cada receita preservada, em cada gesto técnico transmitido e em cada valor ético defendido. Mais do que um Chef, António foi guardião da alma gastronómica luso-macaense. A sua vida foi uma ponte entre continentes, sabores e gerações. A sua cozinha era feita de memória e inovação, de técnica e ternura, de rigor e poesia. Que a sua memória continue viva em cada prato servido, em cada história contada e em cada jovem profissional que ousa sonhar com uma cozinha que respeita o passado e transforma o presente.

Antes da sua partida, o Chef António deixou à sua legatária um conjunto precioso de receitas que não são meros registos técnicos, mas autênticos troféus da culinária portuguesa, lapidados ao longo de décadas de prática, reflexão e paixão. Este legado não é apenas um acervo gastronómico mas uma herança cultural, uma carta de intenções e uma missão a cumprir. Cada receita representa um capítulo da sua vida, uma memória partilhada, uma homenagem silenciosa às raízes que o formaram. São pratos que carregam o sabor da infância, o rigor da formação clássica, a ousadia da reinvenção e a ternura da maturidade. São fórmulas que não se limitam a ingredientes e quantidades pois contêm gestos, silêncios, tempos de espera, e sobretudo, intenção.

A legatária, escolhida com discernimento e confiança, não recebeu apenas um caderno de receitas. Recebeu um testamento culinário, um mapa de valores e uma responsabilidade institucional. Caber-lhe-á agora executar, preservar e reinterpretar essas criações com fidelidade e coragem, mantendo viva a chama da autenticidade sem cair na rigidez da repetição. Na tradição portuguesa, a transmissão de receitas é um acto de intimidade e respeito. Não se trata apenas de ensinar mas de confiar. O Chef António compreendia isso profundamente. Por isso, as receitas que deixou não foram divulgadas em massa, nem transformadas em produto comercial. Foram entregues a quem soube compreender o seu espírito, a quem partilhou com ele o quotidiano da cozinha e a quem demonstrou capacidade técnica e sensibilidade humana.

Essas receitas incluem pratos clássicos e sobremesas conventuais reinterpretadas com ingredientes locais. Mas incluem também criações inéditas, pensadas para ocasiões especiais, menus temáticos e homenagens culturais. São pratos que nunca chegaram ao público, mas que agora poderão ser revelados com o cuidado que merecem. Executar estas receitas não é apenas reproduzir sabores mas encarnar uma filosofia. A legatária terá de manter o equilíbrio entre fidelidade e evolução, técnica e emoção, tradição e contemporaneidade. Terá de respeitar os tempos, os gestos, os silêncios que o Chef António ensinou. Terá de compreender que cada prato é também uma mensagem, uma memória e uma afirmação de identidade. Mais do que cozinhar, terá de curar no sentido museológico e afectivo. Curar o legado, protegê-lo da banalização e apresentá-lo com dignidade. Terá de formar outros, transmitir os valores que recebeu, garantir que o legado não se extingue com o tempo, mas se multiplica com sentido.

Este trabalho não é apenas gastronómico mas curatorial, educativo e diplomático. É uma forma de afirmar que a cozinha é também cultura, que o prato é também documento e que o sabor é também memória. As receitas deixadas pelo Chef António são sementes. Cabe agora à legatária e à instituição envolvida cultivá-las com respeito, regá-las com conhecimento e fazê-las florescer com criatividade. Cada vez que uma dessas receitas for servida, será como se o Chef António estivesse presente não como sombra, mas como luz. Este legado é um presente raro. E como todo o presente precioso, exige cuidado, tempo e amor. Que seja honrado com a mesma generosidade com que foi concebido. Que seja partilhado com a mesma elegância com que foi vivido. Que seja perpetuado com a mesma paixão com que foi criado. Porque na cozinha, como na vida, o que permanece não é o que se repete é o que se respeita.

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