Via do MeioUma dupla leitura do cromatismo de “branco e vermelho” de Camilo Pessanha Hoje Macau - 3 Out 2025 Por Herder Garmes e Duarte Braga – Universidade de São Paulo R. Maria Antônia, 294, São Paulo – SP, Brasil (55) 11 3259-8342 | helder@usp.br ; duartedbraga@gmail.com Resumo: O presente texto propõe o que se poderia designar como uma dupla leitura do poema “Branco e Vermelho” de Camilo Pessanha, na medida em que: elabora uma reflexão a partir dos diálogos filosóficos do poema com autores portugueses coevos como Guerra Junqueiro ou Raul Brandão e, em seguida, explora o regime simbólico muito forte que se estabelece por meio de uma oposição cromática, a partir de eventuais diálogos com os pensamentos chinês e budista. Palavras-chave: Camilo Pessanha, Guerra Junqueiro, Raul Brandão, Pensamento Chinês, Budismo Abstract: This paper intends to interpret the poem “White and Red”, by Camilo Pessanha, in what could be called a double way. First, it reflects upon the philosophical dialogues with contemporary Portuguese writers such as Guerra Junqueiro or Raul Brandão; furthermore, it explores the poem’s symbolic dimension, established by a chromatic opposition that can be inspired by possible dialogues with Chinese and Buddhist philosophies. Keywords: Camilo Pessanha, Guerra Junqueiro, Raul Brandão, Chinese Thought, Buddhism 1 Texto oriundo do Pós-Doutoramento Fapesp (Proc. 2014/00829-8) e do Projeto Temático Pensando Goa, financiado pela FAPESP (Proc. 2014/15657-8). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”. Introdução Embora essa seja a condição de todo o texto literário, a possibilidade de coexistência de leituras apresenta-se, em “Branco e Vermelho”, do poeta Camilo Pessanha, de modo muito evidente. Salienta-o o curioso artigo de Ana Haterly (1979), cuja intenção é provar que são possíveis pelo menos dez leituras paralelas desse poema, segundo diferentes métodos críticos. Deste modo, fica claro que este ensaio é apenas mais uma leitura de um texto muito complexo e profícuo de interpretações. A novidade desta que ora apresentamos é o seu carácter culturalmente duplo, por assim dizer, motivado ao mesmo tempo pelo pensamento europeu e pelo chinês. Em linhas gerais, lembremos que o texto poético explora uma determinada visão do ser humano, ambientada num deserto caracterizado por luminosidade, sombras e brancura, em que ao final surge a cor vermelha: ferido pelo que chama uma “dor imprevista”, que lhe altera decisivamente a percepção e a consciência, o eu lírico assiste a uma caravana de escravos condenados que, no fundo do horizonte, percorrem seu caminho de martírio coletivo. Acaba por identificar-se com eles e por saudar a morte que chega para eles e também para si, associada à explosão cromática da cor vermelha. O pouco que se sabe acerca da história deste poema é que terá sido um dos últimos a ser escrito pelo autor, conforme assinalado por Paulo Franchetti (2001, p. 132), embora evoque expressões da correspondência durante a primeira travessia de 1894 para Leste da Europa,2 que remetem para cenários do Oriente Médio. É, então, natural que seja um momento de “resolução e superação das tensões” da poética de Pessanha, como o mesmo autor (2001, p. 132) observa. Por essa razão, é legítimo entendê-lo como um texto que pode dar conta da circulação entre o pensamento filosófico europeu e o pensamento tradicional chinês, de cuja tradição o autor era um empenhado estudioso. Com efeito, as possíveis alusões do poema a elementos do Médio Oriente (o deserto, a caravana) localizam o texto entre a metrópole colonial e Macau, entre Ásia e Europa, entre Oriente e Ocidente. O poema permite, assim, ser pensado como um lugar entre, de alguma forma sintetizando a experiência do exílio que marca profundamente o poeta. 2 Trata-se de uma carta enviada a Alberto Osório de Castro em Março de 1894: «[…] Anteontem na entrada do canal ainda me foi possível ver o Deserto, inundado de sol, e com ilusões sem fim, de lagos, e acampamentos brancos de caravanas, que onde estariam? […]» (Pessanha, 1984, p. 43). A organizadora do volume de cartas aproxima o contraste entre o deserto branco e o Mar Vermelho ao título do poema (Pessanha, 1984, p. 103). O crítico e pensador português António Quadros considerou “Branco e Vermelho” “[…] o mais misterioso, mais profundo e porventura mais belo dos poemas de Camilo Pessanha […]” (Quadros, 1989, p.118). O presente texto começa por elaborar uma reflexão sobre essa profundidade a partir dos diálogos filosóficos do poema com autores portugueses coevos como Guerra Junqueiro ou Raul Brandão e, em seguida, explorará o regime simbólico muito forte que se estabelece por meio de uma oposição cromática, responsável pelo que seria o seu “mistério”. Segundo entendemos, o texto parte da ideia da existência humana como sofrimento, de viés cristão, filtrada pela filosofia pessimista de Schopenhauer, empregando também referências culturais orientais associadas aos dois planos da oposição cromática que o título apresenta. Sustenta-se que o simbolismo cromático do poema permite o cruzamento de elementos de duas esferas: por um lado, temos o postulado cristão de que a vida é sofrimento e a morte redenção; por outro, a simbologia do branco e do vermelho remete às tradicionais filosofias da China – como o budismo, o taoísmo e o confucionismo – de que Pessanha foi estudioso. Será mais fértil, e porventura mais seguro, entender “Branco e Vermelho” desse modo dúplice do que buscar ali uma visão exclusivamente europeia de mundo ou somente o esforço de pura auteridade do escritor, que efectivamente viveu na colônia portuguesa de Macau, na China, de 1894 até ao seu falecimento, em 1926. Ao usarmos uma chave de leitura “oriental”, essa se assume como comparativa, uma vez que não existem alusões diretas à China no texto do poema. Esse comparatismo de alguma forma responde ao do próprio Pessanha, cujo diálogo poético com a cultura chinesa se daria mais por via do “reconhecimento (…) de similaridades”3, de que fala Franchetti (2008) noutro ensaio, do que por uma aberta ideia de adesão ou de influência. A vida como sofrimento e os diálogos filosóficos do poema A valoração do sofrimento como redenção é um tema de inegável matriz cristã. Na crise de valores que se dá da literatura portuguesa do período finissecular, esse 3 Tratar-se-ia de um “reconhecimento”, na expressão de Franchetti (2008, p. 75), de algumas semelhanças processuais com a poesia chinesa: “A crítica já aproximou a maneira específica de Camilo Pessanha da forma de construção do texto na poesia chinesa tradicional. Mas a verdade é que muito antes de sequer cogitar em mudar-se para o Oriente, já em 1880, a maneira de Pessanha estava definida num dos seus textos mais impressionantes, o soneto que começa «Ó Madalena, ó cabelos de rastos». De modo que o mais adequado, no caso das relações entre a poesia de Pessanha e a poesia chinesa, de que ele foi inclusive tradutor, não é pensar em influência, mas em reconhecimento, em descoberta de similaridades” (Franchetti, 2008, p. 75). tópico, retemperado pelo pensamento nihilista de Schopenhauer4, surge sobretudo na formulação que é usada por Pessanha: a Dor, em outros autores maiusculada como se fosse uma entidade. É importante reter que é esse o termo empregue no poema: “Da enorme dor humana,/ Da insigne dor humana… / A inútil dor humana!” (Pessanha, 2009, p. 108). Essa dor reiteradamente repetida emerge não apenas em autores com uma forte interpelação do pensamento cristão, que identificam a existência humana ao sofrimento, num viés neo-franciscano e tolstoiano, como Guerra Junqueiro e Raul Brandão, mas também em outros mais associados ao pensamento schopenhaueriano, como Pessanha, com sua insistência no não-ser como fuga à vontade de viver. É, assim, um tema literário que é já filosófico a priori, uma vez que são extremamente rentáveis as implicações reflexivas em torno da questão do mal que acarreta. Autores como Raul Brandão ou Guerra Junqueiro levaram às últimas consequências algumas das implicações morais, éticas e espirituais da noção de Dor. O sofrimento, francamente positivado, é tido como uma espécie de farmácia espiritual, que cura todas as moléstias do ser; por outro, existe um potencial criativo no sofrimento, que deixa o indivíduo conhecer ou até criar certas realidades transcendentes. No encalço daqueles autores, Pessanha atribui à Dor a capacidade de redenção, desse modo sublinhando a conformação cristã do tópico. Onde esta se encontra mais presente é sobretudo na impressiva descrição do martírio dos condenados, que leva o sujeito poético a apostrofar os “Doces jardins amenos,/ Onde se sofre menos,/ Onde dormem as almas!” (Pessanha, 2009: 109). Nessa passagem do poema estamos no âmbito de uma valorização ético-espiritual das figuras que experienciam a dor: os “escravos condenados”. Tratar-se-ia de um exemplo do fenômeno que Vítor Viçoso designou como “positividade ético-religiosa do miserabilismo” do fim-de-século. Afirma o crítico que este: […] assenta […] numa tradição judaico-cristã de que Nietzsche havia sido, no último quartel do século XIX, o crítico mais feroz […] Ao cepticismo radical, ao niilismo heróico da vontade de poder, à desejável ascensão e supremacia dos fortes, com implícitas remissões ao darwinismo social, opõe-se este neo-franciscanismo militante que não hesita em descer à abjecção e ao informal. (Viçoso, 1999, p. 12) Isto que podemos chamar um dolorismo positivo distingue-se por outro lado do dolorismo negativo de Schopenhauer que, segundo o mesmo autor, “apenas no 4 Cf. Mesquita (2000). esteticismo contemplativo ou no não-ser acha os espaços protegidos da insciente e cega ‘vontade de viver’ ” (Viçoso, 1999, p. 12), talvez mais próximo da dor letal de Pesssanha. De qualquer modo, a dor não é um fim em si, como lembra Junqueiro, mas uma porta para chegar a algo, a passagem que no poema pessaniano ocorre entre a cor branca como a cor da dor e o vermelho final, cor da morte, do sonho e da redenção. Numa carta-prefácio a Os Pobres (1906) de Raul Brandão, Junqueiro afirma: Viver é sofrer, e tudo vive, tudo sofre. Vida infinita igual à dor eterna, eis a equação matemática da natureza. […] A dor, que se lhe afigurou a essência íntima da vida e a sua única expressão, não era, ao cabo, o substracto último da natureza, o fundo irredutível do universo. […] A alma, vencendo-a, converteu-a em amor. Não há beleza esplendente que não fosse dor caliginosa. A flor é a dor da raiz, a luz a dor das estrelas. (Junqueiro, 1984, 41) Guerra Junqueiro identifica a Dor ao próprio princípio vital. A dor é o motor da existência, mas não é a própria vida em si, como diz Brandão em Os Pobres (1906): “A dor dá a vida e não é a própria vida” (Brandão, 1976, p. 78). Este negativismo radical é heterodoxo no âmbito do pensamento cristão, no que toca ao problema do mal, ao insistir na equivalência entre dor e princípio vital, um negativismo que o aproxima ao pensamento gnóstico, uma vez que pensa o mal como realidade essencial no mundo. Mas o que interessa sublinhar é que aqui estamos perante toda uma filosofia do sofrimento: aqui a dor se transforma em amor, é uma potencialidade que não é apenas humana, mas cósmica. Temos, ainda, a singular identificação entre dor e luz (“a luz a dor das estrelas”) que, no caso de Pessanha, é contraste dinâmico entre luz e obscuridade. Ela, a Dor, é um caminho que possibilita uma visão renovada e iluminada. Segundo o poeta, a dor “Foi um deslumbramento, / Que me endoidou a vista”, desenvolvendo-se num regime extático: “Pairo na luz, suspenso… / Que delícia sem fim! / Na inundação da luz/ Banhando os céus a flux,/ No êxtase da luz” (Pessanha, 2009, p. 107). A dor como luminosidade, no sentido de conhecimento, mas também de consciência, além de estar presente no poema de Pessanha, também o estava no trecho de Junqueiro. A diferença fundamental face aos textos que insistem unicamente no valor ético-religioso da dor é que a perspectiva de Pessanha deriva para o valor de catalizador de uma percepção alterada, alucinada, prazerosa. Em Pessanha esse novo olhar procede de um excesso de dor, o que faz com que o sofrimento equivalha à consciência e ao êxtase. Muito na linha de Junqueiro, pela ideia de que a dor não é um fim em si mas uma passagem para algo, chegamos a um momento comparativo com uma passagem do Húmus (1917) de Raul Brandão. Essa obra do autor português possui evidente dimensão filosófica: o problema do mal, o da existência de Deus, o sentido do sofrimento – são as principais questões filosóficas que atravessam sua inclassificável genealogia, algures entre a literatura de ideias e o romance desconstruído da modernidade. Chegamos a um cenário espectral, no qual o Gabiru – alter ego brandoniano – assiste à chegada da primavera ao seu quintal. Trata-se de uma alegoria da própria existência, da luta constante entre o sonho e a sensibilidade (a primavera) e a insensibilidade da própria vida (o poço, a escuridão): Imagina o negrume d’um poço – imagina dentro o espanto, e não sei que luz viva, não sei que dor recalcada, não sei quê de humilde, que quer viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme que espezinha e esmigalha. Escuridão e oiro – silêncio e oiro – espanto e oiro. […] O sonho transborda, o luar transborda – branco e dor – branco e sonho. (Brandão, 2000, p. 73) A intensidade desse trecho faz jus ao tom do poema de Pessanha. Não só se empregam formulações muito próximas, como também oposições cromáticas afins. A brancura se associa, de igual modo, ao sofrimento: “branco e dor – branco e sonho”. A cor branca face à escuridão e, em outros momentos, a oposição entre ouro e lama, parece remeter para uma duplicidade irreconciliável: entre a vivência do sonho (o branco, o oiro) e o contraste com a materialidade e a dura realidade (o negro, a lama). Húmus é uma obra que insiste na visão dolorida e angustiada de uma sensibilidade universal. Numa passagem como esta, a sensibilidade não é, com efeito, apenas a do sujeito, o Gabiru, mas também a do próprio Universo. Novamente, a dor não é apenas humana, mas cósmica, o que se distancia do poema de Pessanha, centrado na humanidade da dor (“a insigne dor humana!”). Temos, contudo, em Brandão, de novo a singular identificação entre dor e luminosidade e a ideia de que o sofrimento não é um fim em si, mas uma passagem para outro estágio. No caso de Húmus são as próprias coisas inanimadas que, tocadas pelo sofrimento humano, dissolvem a sua materialidade em sonho (“O sonho transborda, o luar transborda”); no caso de “Branco e Vermelho”, é a chegada da morte que transforma o sofrimento numa espécie de volúpia, numa mutação cromática entre a cor branca, cor da dor, e o vermelho final, cor do desejo e do sonho da morte: “Ó morte, vem depressa,/ Acorda, vem depressa,/ Acode-me depressa,/ Vem-me enxugar o suor,/ Que o estertor começa./ É cumprir a promessa./ Já o sonho começa… /Tudo vermelho em flor…” (Pessanha, 2009, p. 109). O cromatismo e a simbologia chinesa Os diálogos que acabamos de trabalhar ajudam a explicar certas noções e imagens do texto de Pessanha, colocando-os no contexto do pensamento filosófico e das poéticas suas contemporâneas. Terá ficado claro que o poema é também uma narrativa que pensa, que possui propostas ético-espirituais e fenomenológicas próprias, embora não o faça de forma expositiva e declarativa, antes alusiva e simbólica. Além disso, é também importante ler o texto de Pessanha como sendo uma narrativa estruturada de um percurso interior. Com efeito, seria difícil refutar que “Branco e Vermelho” dá conta de um agudo estado alucinatório da percepção. Nessa percepção alterada dá-se uma visão que ocorre dentro do sujeito, literalmente no fundo da sua pupila, num revelador parêntesis do poema: “(Seus pobres corpos nus/ Que a distância reduz,/ Amesquinha e reduz/ No fundo da pupila)” (Pessanha, 2009: 107). Isto é reconhecido pela crítica, que tem falado do poema como “exasperado” ou “alucinado”, pela forma como o seu ritmo obsessivo se associa à produção de visões, e estas, por sua vez, se plasmam num regime cromático duplo, branco e rubro. Podemos procurar, em outros momentos de Clepsydra, alucinações que envolvem a percepção de cores. Há inclusive um momento em que idêntico contraste cromático ocorre, como no sangue entornado nas areias do deserto de um poema incompleto5, aliás com cenário idêntico ao deste. A semelhança não é dispicienda, uma vez que se trata de um sacrifício sanguinolento do sujeito num ambiente seco e dessorado. Mas queremos atentar em particular na estrofe de outro poema: Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas, – Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise, Represados clarões, cromáticas vesânias –, No limbo onde esperais a luz que vos batize (Pessanha, 2009, p. 110) Atente-se para a percepção visual do eu lírico, supondo uma perturbação da íris que vê cores, semelhante à que acontece no poema que temos vindo a trabalhar, ainda que não se conheça a data de composição de nenhum deles: ”Foi um 5 “Recortes vivos das areias, / Tomai meu corpo e abride-lhe as veias… / O meu sangue entornai-o,/ Difundi-o, sob o rútilo sol,/ Na areia branca como em um lençol,/ Ao sol triunfante sob o qual desmaio” (Pessanha, 2009, p. 118). deslumbramento,/ Que me endoidou a vista” (Pessanha, 2009, p. 107). Esta efusão de cores remete para uma errância e uma polissemia simbólica dos elementos cromáticos, como que a priori legitimando as interpretações diversas que deles podem ser retirados. Retomemos a análise simbólica de tais elementos segundo certos aspectos do pensamento chinês. Pioneira é, a este respeito, a leitura de Manuela Delgado Leão Ramos (2001), trabalhando com o Taoismo e a alquimia chinesa. Sustenta a autora uma leitura do poema baseada na simbólica da alquimia chinesa: Foi […] documentado que a progressão das cores observada pelos alquimistas chineses no curso das suas operações é a mesma que a da preparação da “pedra filosofal” pelos alquimistas ocidentais e que ela passa do branco ao vermelho […] é indiscutível que segundo esta grelha de leitura, o texto exprime um estado alterado de consciência e também se sabe quanto as experiências dos paraísos artificiais podem induzir esses estados transitoriamente. (Ramos, 2001, s.p.) Contudo, a articulação entre o sofrimento e a cor branca e, de outro, entre o êxtase da morte e a cor vermelha pode, de uma forma mais clara do que a leitura de Ramos, explicar tal oscilação de cores, dando-lhe um sentido mais direto. A alternância branco/vermelho poderá, assim, remeter para a vivência do luto adentro do Confucionismo ou para os valores simbólicos de felicidade e boa fortuna associáveis à cor vermelha no pensamento chinês. Na cultura chinesa, em contexto de morte, como explica Wolf (1970, p. 193-194), o branco é a cor a ser usada por ser neutral, enquanto que o vermelho possui uma função profilática e protetora da influência perniciosa do falecimento, sendo usado por alguns familiares mais distantes do falecido ou nos presentes entregues a familiares. Por outro lado, o vermelho é a cor da sorte por ser também, no budismo chinês, a da transformação interior, associando-se à manifestação do Buda Amithaba, da linha Terra Pura do Budismo Chan. É Chevalier quem lembra o que os chineses designam como “ouro vermelho”, enquanto símbolo do renascimento espiritual: O simbolismo tântrico-taoista da Flor de Ouro é também o da obtenção de um estado espiritual: a floração é o resultado de uma alquimia interior, da união da essência (jing) e do sopro (qi). A flor é o regresso ao centro, à unidade, ao estado primordial (Chevalier, 1982, p. 124, trad. nossa) Esta passagem é citada por Ramos, que aproxima a flor rubra à visão da morte em meio do vermelho: “Tudo vermelho em flor…” (Pessanha, 2009, p. 109). No entanto, a leitura de “Branco e Vermelho” pelo viés do budismo já havia sido proposta por Maria Helena Martins Ribeiro da Cunha, interpretação percuciente que devemos recuperar: Esta analogia do caminho a percorrer com sofrimento […] tem inegável referência aos preceitos búdicos […] no poema Branco e Vermelho, já possivelmente fruto de incursões mais profundas na religião oriental [o Budismo]. É impossível negar o vínculo dos seus versos com o estado espiritual que possibilita a percepção da universalidade da dor, e radica, por isso, na doutrina budista. E é essa percepção que concede ao poeta as imagens do sofrimento dos homens. (Cunha, 1977, p. 16) Trata-se de uma leitura fértil, embora problemática. Com efeito, nem o sofrimento nem a morte são vistos como um bem no pensamento chinês tradicional e no budismo, muito menos o constante elogio da morte que atravessa os versos de Pessanha. Pelo contrário, o sofrimento universal, embora radique no centro da experiência humana, deve ser – para os budistas – enfrentado e superado por via da compaixão ativa. A entrega apaixonada à morte como escape do sofrimento mais facilmente nos remeteria de novo para o pensamento cristão filtrado por Schopenhauer. Com efeito, o elogio à Dor de Schopenhauer pretende assentar na contemplação do não-ser, aí encontrando dimensões que escapam à vontade de viver. Nesse aspecto, esta leitura seria mais segura do que a budista, para a qual o Nirvana não constitui propriamente o nada ou a anulação do eu e da personalidade, antes a do desejo egocêntrico que dá origem à própria existência, bem como a extinção da concepção monolítica e antropocêntrica do eu, o que, aliás, sugere a autora: As sétima e oitava estrofes representam a salvação, a dor vencida […] Camilo Pessanha reserva às duas últimas estrofes a reafirmação de que se aproxima, ele próprio, da revelação do nirvana […] A ideia de aurora que o deslumbra tudo vermelho em flor não contraria […] o pensamento búdico: o nirvana não representa para o Budismo o nada, o não ser na medida em que destrói o falso real. Longe de significar o renascer do desejo de existir, o ultimo verso figura a afirmação do “não- eu”. (Cunha, 1977, p. 16) Contudo, a forma como o poema coloca a questão da dor parece-nos mais schopenhaueriana do que propriamente budista e, nesse sentido, entendemos ser um tanto ousado procurar a correspondência direta que a autora propõe entre a progressão lógico-argumentativa do poema e as quatro nobres verdades budistas acerca da natureza do sofrimento e de sua cessação6. Se assim fosse, o poema seria como que uma exposição doutrinal do budismo, o que aniquilaria a possibilidade de uma leitura que o conecte com a tradição cristã, o que potencialmente não nos parece razoável. Porém, é possível encontrar outras dimensões da relação do poema com o budismo, sobretudo na atenção que o poema confere à superação do corrente lugar epistemológico e ontológico do sujeito, que parece ocorrer na seguinte estrofe: “Como um deserto imenso,/ Branco deserto imenso,/ Resplandecente e imenso,/ Fez-se em redor de mim./ Todo o meu ser suspenso…/ Não sinto já, não penso” (Pessanha, 2009: 107). Com efeito, a tratar-se de súbita e gratuita suspensão do eu, esta pode ser lida como concomitante abertura da mente como espaço livre de sujeito e de objeto, como é expresso pelo conceito de Shunyata7, a vacuidade da própria mente enquanto espaço impessoal8. Tratar-se-ia da luminosa visão da natureza da mente que o Budismo do Grande Veículo – a que pertencem as tradições chinesa, tibetana e japonesa – concebe: como um lugar que é, na verdade, livre de qualquer diferenciação e limitação. Na tradição budista, é salientado como em certos momentos privilegiados, como o da morte, se permite observar a própria consciência sob a forma de uma claridade cegante e insuportável, na qual se dissolve a percepção de ser um eu autônomo. Tal é sugerido pela imagem do deserto, comum à linguagem da experiência religiosa cristã, mas também a um famoso poema sem título de Álvaro de Campos, de 1930, sobre a vastidão desértica da alma: “Como um deserto imenso,/ Branco deserto imenso,/ Resplandecente e imenso” (Pessanha, 2009, p. 107). Esse branco luminoso continua, ao longo do poema, como um pano de fundo sobre o qual se desenham as alucinações Referências: 6 A autora identifica, de forma linear, o poema ao sofrimento tal como ele é visto pelo budismo, afirmando que: “A relação com as quatro nobres verdades […] é o eixo que lhe norteia o desenvolvimento, apoiado inclusivamente na estrutura poemática” (Cunha, 1977, p. 16). Segundo ela: “O poeta logrou, portanto, destruir o engano da individualidade (1ª e 2ª estrofes) e compreender a universalidade da dor (3º)” (Cunha, 1977, p. 16). 7 Como afirma Paulo Borges: “Ao arrepio da afirmação e da negação absoluta de um ser em si (svabhava), a vacuidade (shunyata) expressa a ‘coprodução condicionada’ (pratityasamutpada) de todos os fenómenos, que não são entidades simples, permanentes e independentes, ‘seres’ ou ‘coisas’, mas antes produtos de múltiplas causas e condições […] e assim ‘acontecimentos’, ‘sinergias’ ou ‘coproduções (no sentido fílmico da palavra)’. Sendo a vacuidade inseparável das formas, sendo os fenómenos vazios mas aparentes e aparentes mas vazios, a vacuidade não é um vazio puro nem uma inexistência, tal como não é uma entidade. […]” (Borges, 2007, p. 74). 8 Afirma o mesmo autor: “Na tradição tibetana […] budista da Grande Perfeição (rDzogs tchen), do Buda primordial como a própria natureza da mente, descrita como uma ‘vasta expansão’ (long tchen), uma ‘ausência total de referências’ e um ‘fundo de tudo’ (kun gzhi) afinal livre de o ser ou um ‘espaço fundamental’ (dbying) que não é senão vacuidade, do qual tudo emerge ‘como a energia dinâmica da sua manifestação’ […]” (Borges, 2007, p. 81). da mente, qual a visão da caravana da dor humana. Tais visões de sofrimento podem ser associadas aos delírios e visões infernais que segundo a tradição do Grande Veículo, sobretudo na tibetana, podem acometer a mente durante o momento da própria morte, num momento que se segue ao da sua abertura luminosa. Assim, o espaço desértico poderia ser, neste sentido, uma imagem da própria vastidão da mente onde se desenrolam as alucinações da percepção. Aí os seres humanos surgem como escravos, talvez de seus próprios impulsos egocêntricos. Esperamos ter demonstrado, portanto, que o poema “Branco e Vermelho” suporta uma leitura de dupla face: tanto a partir de uma concepção de vida fundada na tradição cristã européia, mediada pelo pensamento schopenhueriano, quanto a partir de uma concepção alicerçada na tradição budista, de matriz asiática. A possibilidade de convivência dessas duas leituras faz com que o poema não apenas ganhe em polissêmica, mas apresente sua face diplomática, isto é, sua capacidade de funcionar como mediador cultural entre uma e outra parte do mundo, já que pode ser lido a partir desses distintos repertórios. Faz lembrar aquelas teses seiscentistas e setecentistas defendidas nos colégios de Macau e Goa, que buscavam a conciliação entre o catolicismo e as doutrinas asiáticas e que logo foram consideradas hereges pela igreja de Roma. Séculos depois, a heresia se fez arte nos versos de Pessanha, explorando o sentidos culturais das cores e fazendo de um “brando deserto imenso”, “tudo vermelho em flor”. Bibliografia BORGES, Paulo, “A Vida do honrado infante Josaphate ou de como a cristianização do Buda semeia a vacuidade na cultura ocidental e portuguesa”. In BORGES, Paulo e BRAGA, Duarte Drumond (orgs.). Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007, n.º 11 [O Budismo, uma proximidade do Oriente | Ecos, sintonias e permeabilidades no pensamento português]. BRANDÃO, Raul, Húmus. Edição crítica de Maria João Reynaud. Porto: Campo das Letras, 2000. CAMPOS, Álvaro de. Livro de CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont, 1982. CUNHA, Maria H.R. “A flauta chinesa de Camilo Pessanha”. In O Estado de São Paulo, n.46, ano I, 28 de Agosto de 1977, p. 15-16. FRANCHETTI, Paulo, Nostalgia, Exílio e Melancolia: Leituras de Camilo Pessanha. 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