Via do MeioMusas, ninfas, beldades chinesas – O erotismo suave na poesia de Yuan Mei António Graça de Abreu - 17 Set 2025 Texto e Tradução António Graça de Abreu Escrevendo sobre as ninfas e musas de Luís de Camões (ai, a Dinamene chinesa de Camões!), recordava recentemente o meu Amigo e editor Manuel S. Fonseca: “Quem são as Musas (de Os Lusíadas) : serão umas vinte Angelina Jolies ou Scarlett Johanssons a soprar doçuras ao ouvido de Camões?” Duzentos anos pós Camões, musas, ninfas, beldades chinesas, esposas e concubinas, o erotismo suave na poesia de um excepcional poeta do século XVIII, Yuan Mei (1716–1797) por mim agora traduzido. 洞房花烛夜 洞房花烛夜 春色满罗裳 卸尽金钗影 酥胸映粉光 Velas e flores no Pavilhão Nupcial No pavilhão das núpcias, a luz das velas entre as flores. Abre o roupão de seda, esvoaça a Primavera. Caem-lhe os alfinetes dourados do cabelo, reflexos de luz nos peitos macios, a pele, alva e fresca como neve. Logo em 1515, na sua Suma Oriental, o leiriense Tomé Pires falava assim das mulheres chinesas: “Lançam nos cabelos muitos pregos de ouro (…) São da nossa alvura e têm os olhos pequenos e outras grandes. E narizes como hão de ser.” 戏作 花下双双对月眠 香肌滑似水中莲 忽惊纤手遮灯去 只恐旁人见少年 Escrito a brincar Sob as flores, somos um par adormecendo ao luar, sua pele perfumada, lisa como pétalas de lótus. De repente, assustada, sua mão apaga a candeia, delicada, receia que alguém descubra o belo jovem a seu lado. 早起 晓色窗前未照衣, 云鬟松卸玉钗垂。 枕痕犹带香肌暖, 笑说梦中人是谁。 Amanhecer A luz da aurora não chegou ainda às suas vestes, dos cabelos desfeitos, como nuvens, cai um alfinete de jade. A almofada guarda o calor da sua pele perfumada, e ela questiona: “Quem era o homem do meu sonho?” 浴罢罗衣湿 浴罢罗衣湿 香肩点点凉 轻移莲步处 暗解玉环香 Humedecida, perfumada Após o banho, húmida como seda, perfumes ondulando nos seus ombros, a frescura do corpo. Ela vem com passinhos de lótus, pouco a pouco, desenlaçando o cinto de jade. 春衫慢解 笑解春衫慢 花裙堕地香 红云笼雪体 半醉倚东墙 As roupas caem como pétalas Sorri, desata as roupas da Primavera, a saia florida cai, perfumes esvoaçam no ar. Nuvens rubras pairam num corpo de neve. Ébria, encostada à muralha do leste. O bom dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu Tratado das Cousas da China, cap. XV, publicado em 1569, escreveu: “As mulheres, tirando as do longo do mar e dos montes, são muito alvas e gentis.” 舟中 两桨摇来浪拍船 罗衣湿透笑相看 纤腰一捻犹轻去 怕破芙蓉出水难 Na barca Duas fortes remadas, as ondas batendo no casco da barca, encharcado o seu vestido de seda, um sorriso de encantar. A cinturinha baloiça, cuidado para não cair, seria mais uma flor de lótus brotando das águas. 春夜 春夜灯前欲语迟 罗衫半解不胜时 忽闻邻笛吹杨柳 羞掩香腮笑问谁 Noite de primavera Noite de primavera, à luz da candeia, que posso eu dizer? Entreaberto o roupão de seda, tão leve, tão frágil. Voando sobre os salgueiros, chega o som de uma flauta, tímida, ela esconde o rosto perfumado. 赠美人 自从君去后 床上两三人 花气薰残梦 灯光照笑痕 Para uma beldade Partiste para incerto lugar, desde então, duas ou três no meu leito. O perfume das flores, ébrios meus sonhos tardios. O bruxulear do fogo na candeia acompanha o meu sorriso. Como diz o mexicano Octavio Paz (1914-1998), prémio Nobel da Literatura, numa sua raríssima recordação de um ménage à trois, “na cama, eram apenas três: ela, ele e a lua.” 夜归 夜色沉沉月半圆 归来犹带酒中欢 香肩扶上罗帏去 不记灯前笑语繁 De regresso, à noite Avança o silêncio da noite, a lua meio cheia, regresso animado pelo vinho que bebi. Apoio-me nos perfumes do seu ombro, conduzo-a até às cobertas de seda, eclipsam-se palavras, risos à luz da candeia. 午睡 午梦初回枕上春 香肩斜倚小罗裙 不知花外莺啼处 唤醒鸳鸯不许闻 Sesta da tarde A sesta da tarde, o sonho, o canto da Primavera na almofada, no leito. Seus ombros perfumados, ainda a sua saia de seda fina. Entre as flores, o chilrear de um rouxinol, em silêncio os patos mandarim. 池上 柳丝低拂小金船 水面红莲照晚天 谁道风流多惹事 鸳鸯并浴最缠绵 No lago Folhas de salgueiro acariciam o pequeno barco dourado, no lago, lótus vermelhos espelham o céu. O amor oscila ao sol do entardecer. a ternura dos patos mandarins, um banho na limpidez das águas. 花影 花影摇窗月半明 香房小坐话前情 低声怕惊帘外燕 偷将纤手入罗缨 A sombra de flores A janela escondida na sombra das flores, um leve luar ilumina a noite. Deitados no quarto perfumado, falamos de amores do passado, em voz baixa, para não assustar as andorinhas. Desvio a sua mão delicada para dentro do cordão de seda. 夜饮 灯下佳人笑语频 酒香微暖入罗巾 拥衾不觉鸡声起 窗外桃花又一春 Bebendo à noite À luz da almotolia, a beldade não pára de rir, de falar, os odores do vinho humedecem o seu lenço bordado. Abraçados sob as cobertas de seda, nem ouvimos o cantar dos galos. Pêssegos em flor anunciam mais uma Primavera. O quarto vazio Adoeci o ano passado durante as chuvas do Outono, tomaste conta de mim durante dois meses, exausta, dia e noite à luz da candeia. Sopraram ventos do oeste, recuperei a saúde, mas silenciosos os teus alfinetes de jade, triste o quarto vazio, a janela para sempre fechada. No ano de 1754, Yuan Mei adoeceu com malária. A concubina Tao, que o poeta muito estimava, cuidou dele com enorme dedicação. Faleceu no ano seguinte, subitamente, com 29 anos de idade. Yuan Mei escreveu então seis poemas breves em sua memória, um deles este último aqui traduzido.